É natural creditar o caos das grandes cidades brasileiras, nas últimas décadas, ao crescimento desordenado e à ausência total de planejamento urbano. Por isso, um fato pouco conhecido fora do setor imobiliário é surpreendente: o de que algumas das mais tradicionais e agradáveis partes da capital paulistana surgiram como bairros planejados e foram elaborados por uma única empresa, a britânica Cia. City. A multinacional foi responsável por desenvolver, como empreendimentos privados, o Jardim América, o Alto da Lapa, o Pacaembu e o Alto de Pinheiros, na primeira metade do século 20.

A companhia, com isso, se tornou o principal personagem da indústria imobiliária da cidade – e continuou fazendo bairros planejados, em menor porte, até 1992, quando entregou o City Jaraguá, na Zona Norte da cidade. Na mesma época, viu outros projetos surgirem, como foi o caso de Alphaville, em Barueri, nos arredores da capital paulista, na década de 1980. Desde então, esse tipo de modelo de lançamento minguou tanto na “terra da garoa” como em outras grandes capitais do País, principalmente devido à falta de terrenos adequados e de uma boa demanda.

Nova luz: o projeto dos sonhos de Meyer Nigri, fundador da Tecnisa, é concluir um bairro (Crédito:Letícia Moreira/Folhapress)

Agora, a maior cidade do País e outros centros imobiliários importantes estão vendo, mesmo em meio a uma grave crise que persiste na economia e no setor de construção, uma explosão de bairros planejados e dezenas de milhares de unidades anunciadas. Os pioneiros são o Jardim das Perdizes, bairro de apartamentos de alto padrão, na Zona Oeste de São Paulo, da Tecnisa, fundada por Meyer Nigri; e o Nova América, da Buriti Empreendimentos, em Campinas. Em Recife, o primeiro bairro planejado pernambucano, o Reserva do Paiva, teve investimento planejado de R$ 2,6 bilhões, em 18 anos, para abrigar 40 mil pessoas. No Rio de Janeiro, a Vila Olímpica, construída pelo Carvalho Hosken, para abrigar os atletas durante a Olimpíada de 2016, se tornou o Ilha Pura, com 31 torres em sete condomínios. Todos eles entraram em fase final de planejamento na virada da última década, durante o último boom imobiliário brasileiro, e depois sofreram com lançamentos realizados durante o auge da crise econômica.

“Quando lançamos o Jardim das Perdizes em 2013, num momento eufórico do mercado, enxergávamos um horizonte mais curto, de até seis anos”, diz Fabio Villas Bôas, diretor-executivo da Tecnisa. “Mas isso foi postergado. Mesmo assim, existe uma grande vantagem de podermos criar as condições da região, em vez de ser apenas um condomínio isolado dentro da cidade, trazendo os problemas de um bairro já existente, de segurança ou de falta de água.” O Jardim das Perdizes se destaca por ter uma grande praça acessível, conceitos de sustentabilidade, iluminação mais econômica e eficiente de LED e câmeras de segurança que identificam as placas dos carros que circulam por ele. Mas, cinco anos depois do início de sua comercialização, foram lançadas apenas 14 das, pelo menos, 28 torres previstas, e metade do valor geral de vendas (VGV) de R$ 7 bilhões projetado.

Esses casos poderiam ser a senha para que outros projetos similares fossem postergados. Mas não é isso o que está acontecendo, e o novo perfil traz iniciativas para a baixa renda. A mineira MRV Engenharia, atualmente a maior construtora da América Latina, está entregando o seu mais ambicioso projeto, o Grand Reserva Paulista, em Pirituba, na capital paulista. Trata-se de um grande empreitada ligada ao programa de moradia popular Minha Casa, Minha Vida. É um investimento de R$ 1 bilhão previsto para um VGV de R$ 1,6 bilhão e 7.296 unidades em 51 torres.

Oportuno: o maior projeto da Helbor, do CEO Henry Borestein, nasceu da ideia de juntar um terreno com o da Tegra (Crédito:João Castellano / Ag. Istoé)

Outra empresa de capital aberto, a Helbor, em conjunto com a Tegra, lançou outro projeto para faixas de renda popular, o Caminhos da Lapa, também em São Paulo, com previsão de 2 mil unidades e mais de R$ 2 bilhões de investimentos. Com as 800 primeiras unidades lançadas, o VGV já atingiu R$ 443 milhões. A Helbor, controlada pela família Borestein, ainda tem outros dois projetos em sua cidade de origem, Mogi das Cruzes (SP), que somam mais de R$ 600 milhões de VGV. Maior do que todos esses há ainda o Reserva Raposo, do grupo Rezek, com 18 mil unidades de baixa renda e mais de 120 torres. Deve ser entregue só na próxima década e se constituir no maior projeto da história da capital paulista. A título de comparação, em 12 meses, até maio deste ano, foram vendidas 27,3 mil unidades em toda a cidade de São Paulo por todas as incorporadoras que atuam no mercado.

Os bairros planejados são projetos que representam as empreitadas mais ambiciosas da história de suas empresas, e com a capacidade de decretar o sucesso ou fracasso de suas organizações pelos próximos anos. São planos que podem levar mais de uma década até serem concretizados. “O modelo é um negócio de oportunidade, que o empreendedor tem a sensibilidade de perceber a demanda habitacional do país e trabalhar com os dados demográficos da região”, diz Flavio Amary, presidente do Secovi-SP, o sindicato da habitação. O problema do grande número de quebras de contratos que fizeram explodir os estoques até o ano passado, garante o especialista, passou. “Agora, não temos mais a questão do excesso de estoque concentrado em obras já lançadas, ou mesmo dificuldades do comprador contrair crédito. O problema é de confiança”, afirma Amary. “O momento ainda é de incerteza política e de impacto econômico que a greve dos caminhoneiros estendeu, tirando a confiança do comprador.”

Mas por que, mesmo sem o País ter deixado a crise para trás, empreendimentos tão grandes saem do papel? “Nossa matéria-prima é o terreno”, diz Sérgio Paulo Amaral dos Santos, diretor-comercial da MRV, dono do projeto em Pirituba. “Essa era uma área muito cobiçada que o Santander leiloou 10 anos atrás. Depois que compramos, levamos oito anos para aprovar o projeto. Mas vale a pena porque em São Paulo é cada vez mais difícil comprar grandes terrenos perto do centro.” As vantagens são também a proximidade de uma estação da rede ferroviária e de um shopping center. A MRV ainda entregará uma creche e um batalhão da Polícia Militar.

Pioneirismo: a Vila dos Atletas da Olimpíada de 2016, que se tornou a Ilha Pura da Carvalho Hosken, no Rio de Janeiro, foi um dos primeiros bairros da nova leva (Crédito:Tomaz Silva/Agência Brasil)

Serão R$ 60 milhões investidos em equipamentos públicos, projetos sociais e urbanização. “Vamos ter cabeamento subterrâneo, coisa que só a Avenida Paulista e a Rua Oscar Freire, partes nobres da cidade, possuem”, diz Santos. Tanto investimento durante a crise não assusta. “A faixa da Minha Casa, Minha Vida tem acesso muito grande ao crédito e sucesso garantido”, diz o executivo. “Ainda temos um ganho de escala.” A MRV lançou 1,5 mil unidades no primeiro ano de vendas, desde março de 2017. Mas o projeto está apenas no início: dois dos 25 empreendimentos que o Grand Reserva inclui estão iniciados.

O negócio de oportunidade é apenas um dos benefícios percebidos pelas empresas que embarcam em projetos tão ambiciosos. O Caminhos da Lapa, da Helbor e da Tegra, nasceu quando as duas empresas perceberam que lançariam na mesma época dois empreendimentos um de frente para o outro numa área anteriormente fabril, e resolveram juntar os esforços, em sociedade dividida meio a meio. “Em vez de dois projetos, resolvemos fazer um gigante”, diz Marcelo Bonanata, diretor da Helbor. “Poderíamos promover uma transformação urbana, com mais apelo e história para contar.” Dessa forma, esforços de marketing que poderiam estar pulverizados em diversos empreendimentos foram concentrados. Também é mais fácil direcionar o corpo de vendas para um projeto de longo prazo, o qual vai conhecer melhor com o tempo. “E, no meio do caminho, podemos ir mudando de acordo com o mercado”, afirma ele. “A demanda é muito cíclica e sazonal.”

Desde que a Helbor começou a tratar do projeto, no começo desta década, o mercado mudou de pedir apartamentos grandes, que passaram a ficar muito custosos, para unidades menores no centro da cidade. Agora se notou uma lacuna de projetos de dois a quatro dormitórios que o Caminhos da Lapa espera preencher. Se os bairros planejados da atualidade encontrarão a demanda esperada, só será possível saber em alguns anos. Mas, até lá, certamente muitas regiões serão completamente transformadas por essas empresas.