Foram oito anos de aversão a holofotes, fuga de microfones e discrição elevada ao extremo. ?O cargo de primeira-dama não existe, é um modelo copiado dos Estados Unidos?, diz dona Ruth Cardoso, disposta a não deixar dúvidas. ?Eu nunca me enquadrei neste figurino.? À sua maneira, ela procurou se colocar longe do centro do poder sem deixar de exercê-lo. Numa estrutura própria, criada por ato do presidente Fernando Henrique, dona Ruth presidiu a partir de 1995 o conselho do Comunidade Solidária. Ali, sem grandes verbas orçamentárias, mas articulando parcerias entre órgãos governamentais e empresas privadas, a primeira-dama, que não gosta deste rótulo, procurou lançar pontes entre o meio acadêmico e populações carentes. Para muitos, teve êxito. ?O regime militar apartou a universidade da população?, lembra a professora Violeta Arraes, reitora da Universidade Regional do Cariri, no Ceará. ?Os projetos desenvolvidos sob a liderança da Ruth resgataram esse envolvimento e estimularam toda uma geração de jovens a trabalhar para a sociedade.?

Com quatro projetos principais ? alfabetização de adultos, capacitação profissional, formação de núcleos de artesanato e envolvimento de universitários em trabalhos voluntários ? , o Comunidade Solidária apresentou no início do mês um balanço do trabalho realizado desde a sua fundação. Foram 3,6 milhões de pessoas alfabetizadas em pouco mais de 2 mil municípios carentes do País por 135 mil agentes educacionais, 114 mil jovens em situação de risco social treinados para o mercado de trabalho, 17 mil universitários e professores atuando em projetos sociais e 76 associações de artesãos criadas. ?Esses números surpreendem pelas parcelas e impressionam pela soma?, julga dona Ruth.

 

Para não deixar que essa massa de trabalho se perca em razão da troca de governo, muitos dos funcionários do Comunidade Solidária serão deslocados para uma organização não-governamental que acaba de ser criada, o Comunitas. Depois de passar férias em Paris na companhia do presidente Fernando Henrique, a partir de janeiro, dona Ruth pretende conciliar atividades acadêmicas com a coordenação da nova ONG. Ela tem convite para tornar-se pesquisadora da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, já aceitou, mas não pretende deixar de atuar na área social no Brasil. Organizadores dos primeiros projetos sociais do governo Lula procuram dona Ruth para entender a experiência do Comunidade Solidária. ?Nossos programas sociais ganharam autonomia porque foram abraçados pelas comunidades. Tenho certeza de que eles continuarão a existir?, afirma dona Ruth. Uma parte desta certeza vem do fato de o Comunidade Solidária ter trabalhado com regimes de parcerias entre órgãos governamentais e empresas privadas. Como a maior parte do orçamento traçado no governo de Fernando Henrique será mantido para o primeiro ano da administração do presidente eleito Lula, acredita-se que haverá solução de continuidade. Do lado da iniciativa privada, mais de uma centena de empresas assinaram convênios. Em alguns casos, como o programa de alfabetização de adultos, essas empresas chegaram a arcar com metade dos custos, com o Ministério da Educação assumindo os outros 50 por cento. Nos cálculos dos técnicos do Comunidade Solidária, alfabetizar um adulto numa cidade carente brasileira chega a custar R$ 35 por mês.

No último ano, fiel ao seu estilo de máxima discrição, dona
Ruth evitou dar entrevistas. Ela não gostava da idéia da
reeleição do presidente e, no segundo mandato, mostrou-se
ainda mais retraída. No final, entusiasmada com a campanha de seu amigo pessoal José Serra, se engajou na eleição e liderava o ranking de apostas para tornar-se uma poderosa ministra da área social. Agora, com a perspectiva do governo petista, ela já se prepara para rebater eventuais críticas dos que consideram que a gestão de Fernando Henrique falhou na tarefa de promoção social da
população carente. ?São críticas infundadas, os indicadores sociais melhoraram e também aumentaram as verbas para a área social?, comentou na reunião do começo de dezembro em que rompeu o silêncio para falar dos programas que coordenou. Nada menos que 300 universidades tiveram alunos participando de algum tipo de ação voluntária. Cerca de dois mil professores também se engajaram nestas tarefas. Centenas de prefeituras foram envolvidas nos esquemas de parcerias. A fórmula do Comunidade Solidária se estendeu ao exterior, com projetos tendo sido desenvolvidos em Timor Leste e países da África. Sem fazer barulho, em razão destas realizações que ajudaram o presidente Fernando Henrique a receber em dezembro um prêmio da ONU pela ação social de seu governo, dona Ruth deixa a cena com a sensação de dever cumprido. E com frieza em relação ao futuro. ?A política social do próximo governo é do próximo governo?, assinala.