Autodisciplinado. Prático. Extremamente pontual. Exímio cortador de custos. Recuperador de empresas. Embaixador do carro elétrico. Executivo brasileiro mais conhecido do mundo. Personagem de mangás no Japão. Diversas definições acompanham o perfil de Carlos Ghosn, o brasileiro de 67 anos nascido em Guajará-Mirim (RO), educado no Líbano, radicado na França e fluente em seis línguas (às vezes combinadas na mesma frase). Nenhuma dessas características, no entanto, permitiria antecipar que o executivo acabaria preso, no Japão, por práticas ilegais à frente da Nissan Motor, companhia que ele salvou de uma grave crise, depois de se tornar o primeiro não nipônico a assumir o comando de uma montadora no país. O feito garantiu que Ghon assumisse também a gestão da Renault, com a formação da aliança Renault-Nissan, que o tornou presidente do conselho de administração de ambas. Atualmente, a aliança entre as montadoras envolve também outra japonesa, a Mitsubishi Motors.

O que levou décadas para ser construído ruiu em apenas poucas horas. Na segunda-feira 19, Ghosn e Greg Kelly, diretor da Nissan, foram presos. A acusação, fruto de investigação interna da companhia nipônica, é de “atos significativos de má conduta corporativa”. Segundo comunicado da empresa, “durante muitos anos Ghosn e Kelly divulgavam valores de compensação inferiores aos reais no relatório para a bolsa de valores de Tóquio”, além de outras irregularidades, como “uso pessoal de ativos da empresa”. A acusação principal, evasão fiscal, lembra casos recentes do futebol espanhol, como os que levaram às condenações de Neymar, Messi e Cristiano Ronaldo. Segundo a agência japonesa de notícias Jiji, o brasileiro informava à receita federal do país o recebimento de 10 bilhões de ienes por ano, quase R$ 335 milhões, ocultando outros 5 bilhões de ienes, o equivalente a R$ 167 milhões. A fraude vinha sendo realizada pelo menos desde 2011.

Tanto o comando da Nissan quanto autoridades da França, por meio do ministro das Finanças, Bruno Le Maire, pediram a demissão do executivo. Já Osamu Masuko, presidente da Mitsubishi, afirmou que a aliança entre as três companhias dificilmente será gerenciada sem Ghosn. A união entre as empresas está baseada em estratégia, conveniência e participações cruzadas. O estado francês detém 15% das ações da Renault, que por sua vez possui 43% da Nissan. Já esta última tem 34% da compatriota Mitsubishi. “Há grandes chances de a aliança ser desfeita, o que trará impacto no desenvolvimento de produtos”, diz Fernando Trujillo, consultor da IHS Markit. A imprensa japonesa divulgou relatos de que Ghosn estaria em atrito com o conselho da Nissan, que resiste a uma fusão formal com a Renault.

União frágil: sem Ghosn, pode ruir a aliança de criação conjunta de carros da Renault (à esq.) e da Nissan. O conselho da montadora nipônica, de maior porte, se ressente do poder dos franceses, que possuem mais ações na participação cruzada entre elas

Sem ele, essa união definitiva fica mais distante. O executivo brasileiro era celebrado não só por recuperar as montadoras, mas também por formar um conglomerado que, de um dos cinco maiores do mundo, passou a disputar o primeiro lugar. Em 2017, a Renault-Nissan superou a japonesa Toyota em veículos vendidos. Foram mais de 813 mil unidades, atrás apenas do grupo Volkswagen, que entregou 960 mil automóveis. Considerando as vendas da Mitsubishi e das marcas parceiras Samsung Automóveis, Avtovaz/Lada, Dacia, Infiniti, Datsun e Alpine, o grupo é o maior do mundo.

Por isso, o nome de Ghosn pesa bastante na lista de executivos brasileiros recentemente enroscados com a lei. Nos últimos anos, foram comuns as notícias de profissionais enredados em investigações da Lava-Jato, Zelotes e Greenfield. Altos cargos dos setores de infraestrutura, energia, alimentício, estatais, indústrias e bancos foram afetados. Mas nenhum deles gozava do prestígio internacional de Ghosn. O risco é de que a reputação dos brasileiros, como bons gestores, que cresceu neste novo milênio, seja abalada. No começo da década, diversos CEOs locais ocuparam posições no ranking de executivos-chefe de melhor desempenho do mundo, em estudo da Harvard. Nove deles se colocaram entre os 100 melhores ranqueados. Casos de Roger Agnelli (1959-2016), da Vale, e Maurício Botelho, ex-presidente da Embraer. “Desde 2010, a pressão contra a corrupção corporativa aumentou bastante. Mas muitos executivos criados num período anterior ainda mantêm práticas antigas”, diz Dalton Sardenberg, professor da Fundação Dom Cabral.

Quase como uma tradição anual, Ghosn, que passava o seu tempo entre a França, o Japão e viagens por fábricas de todo o planeta, vinha ao Brasil no período de Ano Novo. Aproveitava para visitar os pais no Rio de Janeiro, acompanhar a situação das fábricas da Renault, em São José dos Pinhais (PR), e da Nissan, em Resende (RJ), e conversar com os jornalistas locais. Nos últimos anos, ele começava a pensar na aposentadoria, que deveria vir no começo da próxima década, depois de popularizar o carro elétrico, tecnologia da qual a Nissan é uma das pioneiras. Tudo isso mudou na segunda-feira 19.