Demorou 30 meses para que a elite político-jurídica brasileira descobrisse que o caráter autoritário de Jair Bolsonaro não acabaria apenas com a economia. Acabaria com a democracia. O inexpressivo e irresponsável militar, também inexpressivo e irresponsável parlamentar, não causava temor enquanto era um em meio a centenas. Mas ao ocupar a cadeira mais pesada de um país, a de presidente, ele mostrou que sua personalidade irresponsável mata. As pessoas. E qualquer projeto de nação. O Brasil vive nos últimos dias a mais infame semana de sua história. Nos dois discursos que fez no Dia da Independência, em Brasília e São Paulo, tendo o vice-presidente e boa parte dos ministros a tiracolo, Bolsonaro jogou gasolina na fogueira. Disse que descumprirá ordens da Justiça, ameaçou novamente o Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que só saíra da presidência preso, morto ou vitorioso. Desta vez, a reação veio no tom que deveria. Luiz Carlos Fux, que comanda o STF e inocentemente acreditava em momentos de civilidade do presidente, saiu da inércia. “Se o desprezo às decisões judiciais ocorre por iniciativa do chefe de qualquer dos poderes, essa atitude, além de representar atentado à democracia, configura crime de responsabilidade, a ser analisado pelo Congresso Nacional”, disse Fux.

No dia seguinte (quinta-feira, 9), o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, também ministro do STF, foi mais duro que Fux. Num discurso com trechos antológicos afirmou que “a democracia só não tem lugar para quem pretenda destruí-la”. Mas no momento mais contundente, disse o que todos já enxergam:

— “Não é só o real que está desvalorizando. Somos vítima de chacota e de desprezo mundial. Um desprestígio maior do que a inflação, do que o desemprego, do que a queda de renda, do que a alta do dólar, do que a queda da Bolsa, do que desmatamento da Amazônia, do número de mortos pela pandemia, do que a fuga de cérebros e de investimentos. Mas pior de tudo. A falta de compostura nos diminui perante nós mesmos”, afirmou Barroso.

Em outras palavras, o Brasil real paga esse pato. No dia seguinte às agressividades de Bolsonaro, a Bolsa desabou 3,78%. Mais 24 horas e o IPCA de agosto foi anunciado pelo IBGE. A inflação oficial ficou em 0,87%, a maior variação para o mês desde 2000. Isso elevou a alta em 12 meses para perto da casa dos dois dígitos: 9,68%. O Boletim Focus divulgado na segunda-feira (6) já trazia previsões de queda para o PIB (pela quarta semana seguida) e alta da inflação (a 22a semana consecutiva).

Um país em paralisia que tenta sair do estado catatônico. Além de STF e TSE, lideranças políticas de todos os matizes elevaram o tom para cima da pauta do impeachment. São mais de 130 pedidos parados na Câmara. O presidente da Casa, Arthur Lira, se finge de morto. Não quer largar o osso de ter o dinheiro que controla e poder de negociação, o que ocorreria com a saída do presidente. E Bolsonaro não está morto. Nem preso. E tem aliados, mesmo os silenciosos. As principais entidades empresariais continuam a não se manifestar de forma mais contundente. Não chega ao escárnio de Augusto Aras. O procurador-geral da República viu nas manifestações de 7 de Setembro uma “festa cívica”.

Uma cegueira que parece não embalar mais o setor produtivo. O empresariado já se deu conta de que marolas políticas acabam em tsunâmis econômicos. E o que vemos está muito distante de ser uma marola econômica. Estudo recente da Universidade de Berkeley, na Califórnia, fez uma análise econômica das manifestações que se propagaram no mundo nos últimos anos e concluiu que um país pode perder até 0,8 ponto porcentual do PIB com pressões populares. Para Beverly Alexander, professora de economia de Barkeley e uma das autoras do estudo, o estrago pode ser ainda maior. “Nem Donald Trump, que o presidente Jair Bolsonaro abertamente admira, incitou uma confusão nessas proporções. A economia brasileira passa por uma forte asfixia”, afirmou. “Incitar manifestações é comum em nações autocratas ou sob regime ditatorial.” Não em democracias. O que diz muito sobre o modus operandi de Jair Bolsonaro. Não se trata de algo aleatório.

BARROSO, DO TSE “Somos vítimas de chacota e desrespeito mundial. Mas o pior de tudo é que a falta de compostura nos diminui perante nós mesmos”. (Crédito:Suamy Beydoun)

COINCIDÊNCIAS? E fica fácil dizer quem inspirou Bolsonaro. O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump convocou a manifestação de apoiadores para pressionar o Congresso a avançar com pautas do Executivo. Na época, inclusive, o assessor especial de comunicação do presidente norte-americano era Jason Miller, o mesmo que foi parado pela Polícia Federal no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, na terça-feira (7) para responder a questões sobre o inquérito das Fake News que tramita no STF. Miller estava no Brasil para participar de um Congresso de conservadores e apresentar sua nova rede social voltada para representantes e adeptos da extrema direita, projeto que nasceu após o banimento de Trump das principais redes sociais.

O encontro de Miller com Bolsonaro se deu no mesmo dia em que o Planalto despachou uma medida provisória dificultando espaços como Facebook, Google e Instagram de derrubarem publicações contendo informações falsas. “É inocente pensar que tudo isso é coincidência”, afirmou Beverly Alexander. “A extrema direita tem nas redes sociais a força de massa que a esquerda havia conquistado nas ruas no final da Guerra Fria. Bolsonaro é um experimento social para extrema direita.” Assim, ao subir o tom no discurso para seus milhares de apoiadores na avenida Paulista (125 mil, nas contas da PM), Bolsonaro sabe onde quer chegar. Ao usar frases como “supremo é o povo” e “queremos liberdade de expressão” ele aciona gatilhos para uma multidão em busca de salvar o país. “Há um poder gigante nas palavras. E Bolsonaro usa as mesmas palavras de Trump”, disse Beverly.

Com um agravante, no caso brasileiro. Eliane Ricin, economista e professora da Universidade de São Paulo, afirma que a insegurança criada e alimentada por Bolsonaro atinge uma economia já fragilizada, o que não era o caso dos Estados Unidos. “Quando começou a questionar a legalidade da eleição, Trump já havia controlado a perda de renda dos americanos, liberado um pacote de estímulo equivalente ao do pós-segunda guerra e comprado vacinas”, disse. No caso por aqui, nada semelhante ocorre. “No curto prazo, o que teremos no Brasil são empresas retendo investimentos; o capital estrangeiro desviando e as famílias gastando menos.” Para o médio prazo ela entende que a pressão do exterior deve aumentar, principalmente com o avanço do dólar. “O Brasil pode perder grau de investimento muito rápido. Também pode sofrer sansões de países democráticos”, disse. Para a economista, a forma como os outros Poderes vão reagir para cercear o capitão também terá um peso importante.

Nelson Jr

“Incentivar o descumprimento de decisões judiciais e propagar o ódio são práticas antidemocráticas, ilícitas e intoleráveis” Luiz Fux, Presidente do STF.

VACA FOI PARA O BREJO Dentro do ministério da Economia, o clima é de frustração. Assessores próximos ao ministro Paulo Guedes temem não ser possível avançar com mais nenhuma reforma importante, e até mesmo as concessões estão sob análise. “Mas o problema maior do ministro é a questão dos precatórios”, disse um técnico próximo a Paulo Guedes. O acordo para aliviar o valor dos precatórios em 2022 e garantir que o governo tivesse recursos para bancar os projetos que poderiam ajudar na tentativa de reeleição de Bolsonaro estava sendo costurado pelo STF, sob a condição de o presidente se mostrar mais moderado em seu discurso. “Agora a vaca foi para o brejo”, disse o assessor.