No início dos anos 2000, um grande grupo de startups surgiu no Brasil com planos mirabolantes. Em geral, elas queriam conquistar o mundo e abrir o capital na Nasdaq, a bolsa eletrônica dos Estados Unidos onde estão as principais empresas de internet e tecnologia. Poucas prosperaram. A imensa maioria sucumbiu diante de planos de negócios frágeis que se esqueciam do óbvio: como gerar caixa. Quase duas décadas depois, as empresas inovadoras brasileiras estão começando a descobrir o planeta. Hotmart, iFood, Hotel Urbano, Pipefy e Magnamed são exemplos de startups que estão se aventurando no exterior, deixando as fronteiras locais. Dessa vez, os planos são mais bem pé no chão. Cada passo, agora, acontece de forma cautelosa.

Wataru Ueda, fundador e CEO da Magnamed: “Ainda há muita desconfiança com produtos e serviços que vêm do Brasil” (Crédito:Claudio Cammarota)

A Hotmart, de Belo Horizonte, ilustra bem a trajetória percorrida pelas brasileiras para chegar ao exterior. “O Brasil é um mercado gigantesco, mas a gente sempre quis ir para fora”, diz João Pedro Resende, CEO e cofundador da empresa mineira, plataforma gratuita para hospedagem e venda cursos online, que vão desde aulas de culinária até cursos de programação. “Se você tem a oportunidade e se planeja para isso, faz total sentido internacionalizar.” Com apenas seis anos de vida, a startup já conta com três escritórios espalhados pelo mundo e clientes em 170 países. Mas antes de se internacionalizar, ela se consolidou no Brasil. Só em 2015 resolveu ir para a Espanha. No mesmo ano, chegou à Colômbia e abriu, ainda, um escritório administrativo na Holanda, onde está Kees Koolen, fundador do site de turismo online Booking, e um dos investidores da empresa. Para 2018, o objetivo é chegar ao México.

Há diversas vantagens em se internacionalizar. Uma delas é atender a um mercado bem maior. No Brasil, boa parte das startups brasileiras se concentra no Sudeste, onde está localizado o maior mercado consumidor. Com isso, atendem sempre um público restrito. Outro benefício é ficar imune a crises econômicas de seu país de origem. Por fim, e talvez o mais importante para empresas de internet, é o ganho de escala. O mesmo produto ou serviço pode ser replicado em qualquer país, com pequenas adaptações.

O site de turismo online Hotel Urbano sabe bem disso. A startup iniciou um processo cauteloso de internacionalização. Nessa primeira fase, ela vai ofertar 406 mil hotéis espalhados pelo globo para brasileiros. Em 2018, o plano é traduzir o site para diversas línguas e aceitar diversas moedas para que possa ser acessado por estrangeiros. Só depois está nos planos abrir escritórios fora do Brasil. Mas, mesmo assim, serão apenas três – o primeiro deles deve ser o Chile e os outros dois não são revelados. “Somados esses três países, eles representam um terço do tamanho do mercado brasileiro” afirma João Ricardo Mendes, CEO do Hotel Urbano. “Em dois anos, queremos ser o número 1 nesses locais.”

Alessio Alionço, fundador e CEO da Pipefy: “Expandir para fora do Brasil era uma questão de sobrevivência” (Crédito:Divulgação)

A curitibana Pipefy, dona de uma plataforma online de gerenciamento de processos para pequenas e médias empresas, também está se aproveitando do ganho de escala. Apesar de ter escritórios somente em Curitiba e em San Francisco, a Pipefy conta com 15 mil clientes em 140 países. Isso é possível por que a plataforma foi adaptada e traduzida para o inglês. A inspiração para criar uma empresa global surgiu em uma visita de Aléssio Alionço, fundador da Pipefy, para Israel, berço de empresas como o serviço de GPS Waze (comprado pelo Google) e o aplicativo de mensagens Viber. Por ter um mercado pequeno, as startups israelenses nascem com a necessidade de desenvolver soluções globais. “É uma questão de sobrevivência”, diz Alionço. “Havia um risco real de o nosso negócio ser extinto na próxima década caso focássemos apenas no mercado brasileiro.”

Diferentemente de países como Estados Unidos e Israel, as brasileiras que trilham um caminho internacional ainda são raras. A Associação Brasileira de Startups (ABStartups) estima que 7% das suas quatro mil empresas cadastradas têm atuação global. “Temos barreiras tecnológicas das quais ainda precisamos avançar muito”, diz Marcus Quintella, coordenador do MBA de empreendedorismo da Fundação Getúlio Vargas. A falta de aprendizado de um segundo idioma, a burocratização para a entrada e a saída de dinheiro e a carência de apoio do setor público são outros fatores citados que acabam prejudicando as startups que querem ganhar o mundo. Marcio Kogut, CEO da Kogut Labs, consultoria de inovação corporativa e aceleradora de startups, lembra de outra questão. “Precisa também de investimento”, diz ele. “Levar uma startup para fora não é barato.”

Peculiaridades: ‘‘Foi preciso respeitar as diferenças culturais de cada país para dar certo’’, diz Lucas Melman, diretor do iFood na América Latina (Crédito:Luiza Florenzano)

APORTES

Esse não é exatamente o problema do iFood, que pertence a Movile, startup brasileira que já recebeu US$ 189 milhões de investimentos do fundo sul-africano Naspers e do brasileiro Innova, que tem entre os seus cotistas o bilionário Jorge Paulo Lemann. Com dinheiro em caixa, o marketplace de restaurantes realizou a aquisição de serviços semelhantes que operavam no México, na Colômbia e na Argentina e os transformou em versões alternativas do iFood. “Precisamos adaptar o idioma espanhol para cada mercado, verificar os métodos de pagamento disponíveis e respeitar diferenças culturais e gastronômicas”, diz Lucas Melman, diretor de operações da empresa na América Latina.

A Magnamed, de Cotia, região metropolitana de São Paulo, também está investindo pesado na sua internacionalização. Fabricante de produtos hospitalares de ventilação pulmonar que ajudam a manter os pulmões dos pacientes funcionando em caso de problemas de saúde, a empresa já atinge mais de 50 países. Seu próximo passo é construir uma fábrica nos Estados Unidos. O objetivo é dar mais credibilidade para a marca, além de abrir as portas para o principal mercado do setor, o americano. “Apesar da tecnologia brasileira já ser mundial, ainda há muita desconfiança com o produto nacional”, afirma Wataru Ueda, CEO da companhia. “Queremos mudar esse pensamento ao montar nossos produtos em um país de primeiro mundo.”

Esse cenário de preconceito com startups brasileiras pode começar a mudar em breve. Na semana passada, o governo federal lançou o programa StartOut Brasil. A iniciativa vai levar, a cada ano, 60 startups nacionais para diversos países como Argentina, França e Estados Unidos com o objetivo aumentar o volume de negócios realizados com o exterior. As selecionadas passarão por consultorias especializadas em relações internacionais e comércio exterior, além de mentoria e treinamento de apresentações para investidores. “Esse suporte governamental é muito importante”, diz Quintella, da FGV. “Isso realmente pode ajudar, mesmo sendo poucas as empresas beneficiadas.” Agora só falta saber quem é que vai conseguir carimbar o passaporte.