De tempos em tempos a história precisa rever alguns termos para renomear conceitos. Isso serve para atualizar nos registros do tempo o que significa, para aquele momento, a palavra em questão. E o Fundo Monetário Internacional (FMI) resolveu revisitar a expressão ultraliberalismo. Amparado por estudiosos da economia e da história, em especial os da Universidade de Cambridge, o objetivo foi avaliar a ascensão de políticos que usaram o termo ultraliberalismo para se eleger e depois adotaram medidas populistas, eleitoreiras e com pitadas de autoritarismo durante o exercício do mandato — parece um texto feito sob medida para Jair Bolsonaro. No caso do Brasil, a usurpação do termo e sua distorção foram comparadas ao uso de “uma capa falsa de um best-seller em um livro de baixa tiragem e qualidade”. O resultado disso são gestões “nem-nem-nem”. Nem liberais, nem populistas, nem autoritárias (mas que, no caso brasileiro, até cabe). Uma espécie de Frankenstein econômico que pode não durar muito no poder, mas tem uma capacidade alta de devastação.

Um dos autores do estudo foi o professor Solomos Solomou, que leciona História da Economia pela Universidade de Cambridge e escreveu livros como Economic Cycles & Phases of Economic Growth: 1850-1973. Segundo ele, os presidentes de países emergentes, em especial no início dos anos 1990, foram picados pela mosquinha do liberalismo. “Havia um interesse na construção de governos como os de Ronald Reagan (EUA), Margaret Thatcher (Reino Unido), ou [mesmo de socialistas como] François Mitterrand (França) e Felipe González (Espanha)”, disse. Marcados por desenvolvimento rápido, esses governos conseguiram reduzir as contradições que o liberalismo carregava e deu ao mundo a sensação de solução milagrosa.

Logo os emergentes perceberam que o liberalismo pressupõe algo que nunca tiveram: Estados não gigantescos, nem burocráticos ou concentradores de renda e privilégios. Então houve um novo contorno ideológico. No caso do Brasil, as políticas das gestões petistas, pautadas no desenvolvimentismo keynesiano e no bem-estar social, represaram os problemas, mas não os solucionaram. Então, com a chegada da crise, a exposição de corrupção e o empobrecimento da nação, ganham força os discursos que colocam no Estado toda a culpa dos problemas. E Bolsonaro usa disso. “São iniciativas a que se dá o nome de ultraliberalismo”, disse Solomou.

AS FACES DO CONSERVADOR

PROJETO PENSADO Meredith Crowley, professora de macroeconomia e relações internacionais, entende que a estratégia de Bolsonaro foi um processo metódico e pensado. Por um lado usa-se o discurso de menos Estado para desmontar as políticas públicas e agências reguladoras. Por outro, abusa de falas antidemocráticas para enfraquecer também os outros poderes. “E não há nada menos liberal que isso.” A base do pensamento liberal não é a ausência do Estado por total, a isso é dado o nome de anarquia. E tampouco um presidente que ataca as instituições. Nesse caso o nome é autoritarismo.

O resultado dessa bagunça é uma economia agonizante. Segundo o FMI, o Brasil encara seu pior momento dos últimos anos, com perspectivas ruins de crescimento, emprego e renda, inflação, e taxa de juros. “E reverter essa situação num curto prazo exige uma guinada tão forte que penso ser quase impossível”, disse Meredith Crowley.

Mas a conta, segundo Solomou, é simples. Para ele, a solução é direcionar todo recurso público disponível na eficiência e operação do Estado. Na educação e na saúde pública, por exemplo, usar as agências reguladoras efetivamente na fiscalização do uso desses recursos. Por outro lado, será preciso abrir um pacto com o capital privado e oferecer, inclusive, financiamento público por meio de bancos estatais com juros reduzidos. “Nenhum dos grandes liberais da segunda metade do século 20 faria 10% do que conseguiram sem o apoio do Estado”, disse.

Na visão do economista inglês, o uso dos bancos públicos como financiador não é apenas uma estratégia, é um statement. “Se um governo banca [juros baixo] é porque acredita no próprio projeto.” Por fim, a principal arma para que a capa do livro do liberalismo seja condizente com os dizeres da obra é abandonar de vez os discursos autoritários e esquecer a política do conflito como estratégia de governo. Não é nosso caso.