Não convide para o mesmo evento o empresário pernambucano Adilson Cordeiro e o empreendedor sino-canadense Changpeng Zhao, fundador da corretora (“exchange”) de criptomoedas Binance. Aposentado, Cordeiro tem como atividade remunerada operações de curtíssimo prazo com criptoativos, conhecidas como “day trade”, realizadas em geral por meio da Binance. Há alguns meses, o empresário se interessou por uma promoção anunciada pela empresa de Zhao. “Eles disseram que quem tivesse uma quantidade determinada da criptomoeda XYM teria sua posição duplicada, como cortesia”, afirmou Cordeiro. Dito e não feito: Cordeiro adquiriu as moedas, mas a Binance não honrou sua parte do acordo. “Eles divulgaram amplamente a promoção, mas não cumpriram”, disse. “Já mandei várias reclamações, e eles nem respondem. Não existe a quem recorrer, pois não há um órgão para quem reclamar.” Cordeiro reconhece que a situação poderia ter sido muito pior. “Não perdi, só deixei de ganhar”, disse. Mas a falta de comunicação incomodou e deixou Cordeiro desconfortável em continuar operando com a companhia.
Binance busca aproximação com autoridades regulatórias

O empresário não está reclamando à toa. Entrar em contato com a Binance é difícil. Sua correspondente no Brasil é a companhia B. Fintech Serviços de Tecnologia Ltda, registrada na Receita Federal com o CNPJ 37.512.394/0001-77. Em seu cadastro, a companhia indica o telefone inexistente de nº (11) 1111-1111 e um e-mail que não funciona: aa.aa@aa.com.br. O registro da empresa, cujo objetivo são “atividades de intermediação de serviços e negócios em geral, exceto imobiliários”, indica um lançamento em 24 de junho de 2020, um capital social de R$ 50 mil e a localização em parte da sala 22 de um edifício comercial no nº 1.756 na Rua Américo Brasiliense, Chácara Santo Antônio, na capital paulista. E esses são os únicos dados disponíveis. Essa informação parece tola, mas é importante, como se verá a seguir.

Antes, é preciso explicar a nebulosa situação legal da Binance no Brasil. Voltemos no tempo, mais especificamente a 3 de janeiro de 2009, quando foram mineradas as primeiras bitcoins, em uma tecnologia revolucionária conhecida como blockchain. Essas moedas alternativas são parte da filosofia dos ultraliberais, que querem se livrar de qualquer controle do Estado. Sua face obscura é que a busca de liberdade proporciona espaço para atividades ilícitas. Descontroladas, as criptomoedas podem ser um instrumento eficiente para a evasão fiscal e para a lavagem do dinheiro proveniente de atividades criminosas.

Marco Ankosqui

“O brasileiro pode comprar uma criptomoeda ou pode investir em uma cota de um fundo dedicado a criptomoedas, mas há algumas restrições” Fernando Barrueco, advogado especializado em criptoativos.

Desde seus primórdios, portanto, governos e bancos centrais procuraram limitar ou controlar os negócios com esses ativos. Há casos extremos, como o da China, em que as autoridades simplesmente proibiram toda e qualquer atividade com o bitcoin e demais criptomoedas. No caso chinês, porém, além de uma certa obsessão por controle, a intenção do governo foi abrir caminho para sua própria criptomoeda estatal, o renminbi digital. A abordagem mais frequente é a que vem sendo adotada pelos Estados Unidos e, com algumas especificidades, pelo Brasil. No caso americano, é perfeitamente legal para o cidadão investir em criptoativos ou em seus derivativos, comprar cotas de fundos e fazer todas as operações permitidas no mercado de capitais.

A situação no Brasil, porém, é diferente. As criptomoedas estão em uma zona cinzenta regulatória — e não há qualquer irregularidade nisso, apenas uma ausência de regulamentação. O mercado de capitais é regido pela Lei 6.385, de 1976, que define o que são valores mobiliários. As criptomoedas não estão incluídas. Assim, elas são ativos — como imóveis e empresas — mas não são valores mobiliários. Isso limita a atuação do investidor brasileiro. “O brasileiro pode comprar uma criptomoeda ou pode investir em uma cota de um fundo dedicado a criptomoedas, mas há restrições para alguns investimentos”, disse o advogado especializado em direito de criptomoedas Fernando Barrueco. “Por exemplo, o investidor não pode participar de uma oferta pública de ativos lastreados em criptoativos, como ocorre nas aberturas de capital das empresas.”

Barrueco afirmou que os próprios fundos à disposição dos brasileiros têm limitações à sua atuação. Como as criptomoedas não são valores mobiliários, esses fundos só podem investir fora do Brasil, diretamente ou em cotas de outros fundos dedicados ao bitcoin e outras. Isso exige que os investidores sejam considerados qualificados, ou seja, que tenham pelo menos R$ 1 milhão para aplicar.

A GERENTE Mayra Siqueira, que responde pela Binance no Brasil. Segundo entrevista ao programa Loira Pod, a empresa está sendo estruturada para atender o mercado local, mas não precisa serguir as regulações. (Crédito:Divulgação)

IRREGULARIDADES Isso faz toda a diferença e explica o porquê de algumas das práticas da Binance por aqui ferirem a lei. Voltemos ao início desse texto e ao telefone e ao endereço de e-mail que não funcionam. A página da Binance em português é clara em anunciar investimentos. Uma das alternativas à disposição do investidor é uma “poupança”, em que os saldos de criptoativos nas contas são “rentabilizados”. A Binance não pode oferecer isso aos brasileiros. Por seu registro na Receita Federal e na Junta Comercial de São Paulo, nenhuma das atividades que ela informa praticar é regulada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou pelo Banco Central (BC). Há outros problemas. O site da empresa não indica nenhum e-mail ou telefone para que os investidores reclamem ou tentem solucionar problemas, algo que Adilson Cordeiro, o empresário e “day-trader” mencionado no início desta reportagem, sabe muito bem. Isso contraria não apenas as regulamentações dos mercados financeiro e de capitais, mas também as regras do Código de Defesa do Consumidor.

O que poderia ser um mero detalhe burocrático faz toda a diferença, disse o presidente da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), Rodrigo Monteiro. Em abril deste ano, a Associação queixou-se de atitudes consideradas anticoncorrenciais da Binance junto às autoridades — CVM, Receita e no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Monteiro é cauteloso ao comentar o caso. Ele frisou que o objetivo da ABCripto não é banir a empresa do mercado brasileiro, mas questionou suas práticas. “A Binance tem sua representatividade, é importante, e por isso queremos que ela atue no País nas mesmas condições das demais empresas e respeitando a legislação”, disse ele. “Ela tem de respeitar as legislações tributária, trabalhista, ambiental e de proteção ao consumidor, além de estar obrigada a ter canais para bloquear atividades suspeitas e informá-las às autoridades.” No caso, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Gerente da Binance para a operação no Brasil, Mayra Siqueira informou em entrevista ao programa Loira Pod que a empresa está se estruturando no Brasil mas não tem CNPJ por aqui e não está sujeita a regulações locais.

A Binance é a maior corretora de criptomoedas do Brasil. Não há números consolidados, mas quem conhece o mercado estima que ela processa de 30% a 40% das transações com esses ativos originadas por brasileiros. Daí a reserva com que os especialistas procurados pela DINHEIRO demonstraram ao falar. Mesmo assim, há casos comprovados de que a ausência de controles da Binance foi lesiva à economia popular. Em setembro, a operação Kryptos, da Polícia Federal, prendeu o ex-garçom Glaidson Acácio dos Santos, o “faraó do bitcoin”, por operar um esquema bilionário de pirâmide e lavagem de dinheiro na cidade de Cabo Frio que atraiu incautos prometendo uma rentabilidade polpuda de 10% ao mês. A estimativa é que a pirâmide tenha movimentado R$ 38 bilhões.

PIRÂMIDE Glaidson Acácio dos Santos, o “faraó da bitcoin”, montou um esquema de pirâmide que movimentou R$ 38 bilhões. Desse total, R$ 1,2 bilhão passou pela Binance. (Crédito:Divulgação)

Segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro, ao menos R$ 1,2 bilhão foi depositado em contas na Binance. Santos usou outras corretoras. E, apesar de ele ter sido arrolado no inquérito, não é possível afirmar que Changpeng Zhao participou do esquema. No entanto, mesmo presumindo a boa fé da Binance, se ela seguisse as regulamentações das autoridades o esquema bilionário do “faraó da bitcoin” poderia ter sido descoberto antes. Em especial a exigência do “conheça seu cliente”, ou “know your costumer”, que obriga empresas financeiras e gestores de recursos a comunicar movimentações suspeitas — como as de um ex-garçom que passa a investir bilhões sem que a origem desse dinheiro seja conhecida.

INVESTIGAÇÕES Na terça-feira (16), a Binance divulgou globalmente seus “Dez princípios fundamentais” para os usuários de criptoativos. Em uma ofensiva publicitária que estampou anúncios de página inteira nos principais jornais do mundo, a empresa defendeu publicamente que “todo ser humano tem acesso a instrumentos financeiros”, que as plataformas de negociação têm a responsabilidade e a obrigação de trabalhar com as autoridades para evitar crimes financeiros e que “regulação e inovação não são mutuamente exclusivas”. O comunicado representa uma guinada na atitude da empresa, que vem sendo tratada com rigor pelas autoridades financeiras globais. O Departamento de Justiça e o Fisco dos Estados Unidos iniciaram uma investigação na empresa após suspeitas de manipulação do mercado, em abril.

Divulgação

“A Binance é importante, e por isso queremos que ela atue no País nas mesmas condições das demais empresas e respeitando a legislação” Rodrigo Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto).

A empresa também vem enfrentando restrições das autoridades em vários países (leia o quadro à página 30). No Brasil, apesar das representações setoriais e de ter sido arrolada no inquérito do faraó da bitcoin, a empresa ainda não tem tido problemas desse tipo.

O aperto das autoridades levou a companhia a iniciar as atividade de uma subsidiária nos Estados Unidos, algo inédito em sua história, e a pelo menos declarar que está disposta a cumprir a lei. Se vai colocar suas palavras em prática, só o tempo dirá. Até agora, a postura da companhia tem sido de confronto. Ela foi fundada em 2017 por Zhao, que nasceu na China, mas emigrou jovem para o Canadá, onde se formou em ciências da computação. Sempre se anunciou como uma empresa “da nuvem” — sem sede própria, apenas registros em paraísos fiscais como Malta. Por não existir formalmente em nenhum país, a Binance sempre se declarou desobrigada de tarefas como observar leis e pagar impostos. A divulgação dos dez princípios mostra que pelo menos no discurso, essa caixa-preta pode começar a ser quebrada. Procurada, a Binance não respondeu aos pedidos de entrevista.

Posicionamento da Binance

Durante a apuração da reportagem de capa, DINHEIRO enviou algumas perguntas à Binance. As respostas a seguir foram enviadas após o fechamento, ou seja, após a conclusão do texto impresso.

A Binance é uma instituição financeira regulamentada pelas autoridades brasileiras?

Resposta: A Binance é uma instituição financeira global, que atualmente não possui uma unidade operacional no Brasil. No entanto, estamos no processo de estabelecer uma entidade centralizada que trabalhará mais estreitamente com os reguladores locais.

Em sua página de internet, a Binance oferece uma “poupança” em que remunera as aplicações do cliente. Como funciona essa rentabilidade?

Resposta: Não oferecemos um “produto de poupança” em si, no entanto, suponho que você esteja se referindo ao Binance Earn, que é uma oferta padrão no mercado, que permite aos indivíduos fazer staking de seus ativos virtuais para garantir acesso à rede.

Em seu cadastro junto à Receita Federal, a empresa B Fintech Serviços de Tecnologia Ltda., inscrita na Receita Federal do Brasil com o CNPJ de n° 37.512.394/0001-77 informa o telefone (11) 1111-1111 e o endereço de email aa.aa@aa.com.br. Esse telefone e esse e-mail não existem. Isso foi um equívoco no ato de constituição de empresa em 24/06/2020? Se sim, por que não foi corrigido até agora?

Resposta: Em primeiro lugar, a B Fintech não representa operações da Binance no Brasil. De qualquer maneira, este foi um erro administrativo e que já foi corrigido, atualizado com o número de telefone e endereço de e-mail corretos do escritório de contabilidade que auxiliou neste processo.

Em sua página na internet dedicada aos clientes que falam português, a Binance não informa nenhum telefone de contato, linha 0800 ou e-mail para reclamações de clientes, como é de praxe nas empresas prestadoras de serviços. Por que?

Resposta: Atualmente, a Binance não possui uma linha direta de atendimento telefônico, o que acontece na maioria das bolsas de valores e empresas digitais. No entanto, estamos explorando opções adicionais de suporte ao cliente além de nosso serviço de chat em tempo real.

Hoje, o suporte é fornecido através de vários canais, incluindo um serviço de chat ao vivo para usuários logados no sistema. Os usuários que falam português têm acesso à nossa equipe de atendimento ao cliente 24 horas por dia, 7 dias por semana.

A Binance considera que a sua atuação no Brasil segue fielmente as regulamentações do Banco Central, da Comissão de Valores Mobiliários e do Código de Defesa do Consumidor? Sim, não, por que?

Resposta: Atualmente, não temos operações como uma exchange baseada no Brasil. No entanto, acreditamos que o mercado brasileiro será um líder de blockchain na região e atualmente estamos trabalhando para tomar as medidas necessárias para ser uma plataforma totalmente licenciada e adequada ao mercado. Como a maior e mais sofisticada empresa de blockchain do mundo, temos o compromisso de trabalhar com reguladores e legisladores para fornecer aos usuários brasileiros de cripto acesso à plataforma mais segura do mundo.