Em meio à operação Lava Jato, a mais abrangente devassa sobre corrupção no Brasil, está sendo investigado um suposto esquema de fraude e operações suspeitas de câmbio no edifício de número 50 da avenida Juscelino Kubitschek, no bairro do Itaim, em São Paulo. A região é conhecida pela concentração de empresas ligadas ao mercado financeiro, como gestoras, corretoras, fundos de private equity e bancos de investimento.

Até a semana passada, esse era o endereço da Gradual Corretora de Valores Mobiliários, que está de mudança para o número 1909 da mesma avenida. Entre administração e gestão de fundos de investimento, a Gradual cuida de R$ 3 bilhões de ativos de terceiros. Conhecida no mercado como uma corretora agressiva, com um histórico de problemas na bolsa, a empresa está sofrendo graves acusações junto ao Banco Central e na Justiça.

À frente da Gradual está Fernanda Ferraz Braga de Lima. Ela assumiu o negócio em 2006, após o falecimento de seu pai, o fundador Paulo Cesar Lima. Com passagens pelo JP Morgan, em Londres, e Merrill Lynch, em Nova York, Fernanda iniciou um ousado processo de consolidação e ampliação das atividades da corretora. O objetivo era aproveitar o crescimento do interesse dos investidores individuais pelo mercado de renda variável e se posicionar como uma alternativa aos bancos. Mas a derrocada da economia nos últimos anos desmoronou os planos de Fernanda.

Nos últimos três anos, ela se envolveu em controvérsias que vão desde multas e perda de selo de operador de qualidade na B3 até a criação de títulos podres, passando por associação com Meire Poza, a ex-contadora do doleiro Alberto Youssef, o homem-bomba da Lava Jato. Para entender essa história, é preciso voltar um pouco no tempo, até março de 2016. No dia 24, a Incentivo Investimentos, que possui aproximadamente R$ 400 milhões sob gestão, encaminhou um e-mail para a Gradual alertando para um “grande engano” num ativo adquirido no dia 10 para o Incentivo Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Multisetorial II.

início: o e-mail da Incentivo alertando a Gradual para o erro na aquisição de um ativo. A partir daí, gestora realizou uma série de denúncias contra a corretora
Início: o e-mail da Incentivo alertando a Gradual para o erro na aquisição de um ativo. A partir daí, gestora realizou uma série de denúncias contra a corretora

A Gradual, no papel de administradora de fundos, havia sido contratada pela Incentivo com a missão legal de zelar pela correta aplicação do regulamento da carteira. Atualmente, a Gradual tem 87 fundos ativos e abertos sob administração. Mas esse caso tinha uma estranha particularidade: a Incentivo que, como gestora, é quem deve escolher o que entra e o que sai da carteira do fundo, não tinha dado a ordem de compra de 974 debêntures ITSY 11, no valor de R$ 10.005.664,13 (debêntures são títulos de dívida emitidos por uma empresa no mercado de renda fixa para captar recursos).

O emissor das debêntures suspeitas era a ITS@ Tecnologia para Instituições Financeiras. Aqui, mais uma falta foi cometida pela Gradual: essa companhia pertence a Fernanda de Lima e seu marido e sócio, Gabriel Paulo Gouvêa de Freitas Júnior, o que indica conflito de interesse. A operação feriu o segundo parágrafo do artigo 21 do regulamento do fundo da Incentivo, no qual “é vedada à administradora, gestor, custodiante ou consultor especializado ceder ou originar, direta ou indiretamente, direitos de crédito ao fundo”.

Na prática, a acusação é de que a Gradual usou dinheiro do fundo da Incentivo (e de seus clientes, portanto) para comprar, sem autorização, uma debênture lançada por seus sócios, que se beneficiaram do desvio de R$ 10 milhões. A primeira explicação de Fernanda e Gabriel para a operação foi de que houve uma falha operacional. A Gradual havia assumido, em fevereiro daquele ano, a condição de custodiante (que assegura a guarda dos papéis) no lugar do Banco Santander, que havia renunciado a continuar com essa prestação de serviço. Foi o que o casal disse aos sócios da Incentivo, André Arcoverde, Maurício Kameyama e Isaltino Andrade, em reunião no dia 19 de abril, conforme documento ao qual DINHEIRO teve acesso.

Arcoverde era um dos mais preocupados com as ilegalidades. [Ele responde a um processo e foi citado na Operação Fundo Perdido, da Polícia Federal, desencadeada em março de 2014, que descobriu um esquema nacional de fraude na gestão de recursos de fundos previdenciários públicos envolvendo prefeituras e empresas no Estado de São Paulo.] No encontro, os sócios da Gradual se comprometeram a estornar o valor, sem prejuízo ao fundo. Foi pedido, porém, um prazo de 90 dias da aquisição, em 10 de março, para a operação ser concluída.

Três dias depois desse encontro, na sexta-feira 22 de abril, as debêntures ITSY11 foram transferidas do Incentivo Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Multisetorial II para outra carteira gerida pela Incentivo, o Piatã Fundo de Investimento Renda Fixa Longo Prazo Previdenciário Crédito Privado. O erro dessa operação também foi reconhecido pela Gradual, em reunião no dia 2 de maio. Fernanda fez a mesma proposta de estornar os ativos do fundo, no mesmo prazo inicial. A promessa, no entanto, não foi cumprida.

Parceiros: Meire Poza, que foi denunciada no final do ano passado na Lava Jato, ajudou o doleiro Alberto Youssef (detalhe) a cometer inúmeras fraudes na emissão de notas
Parceiros: Meire Poza, que foi denunciada no final do ano passado na Lava Jato, ajudou o doleiro Alberto Youssef (detalhe) a cometer inúmeras fraudes na emissão de notas (Crédito:Paulo Lisboa/ Brazil Photo Press/ AE)

A primeira venda aconteceu em 24 de junho, catorze dias depois do prazo acordado. E apenas 374 debêntures suspeitas deixaram o fundo Piatã, restando um saldo de R$ 6.627.848,66. O problema, antes restrito à gestora e à administradora, ganhou mais um personagem. A Cetip, empresa responsável por registro, depósito, negociação e liquidação de ativos e títulos de renda fixa, identificou a irregularidade. A aquisição das debêntures só poderia ter sido realizada pela gestora com um registro da operação no sistema de voz da Cetip.

Esse procedimento de segurança é adotado desde março de 2014. Não só a compra não estava registrada em voz, como a Incentivo nunca havia se cadastrado, até aquele momento, para realizar esse tipo de transação. O problema foi discutido entre a Incentivo, a Gradual e a Cetip numa extensa troca de e-mails, que começou em 29 de junho e se estendeu até 8 de agosto. O alerta da Cetip apavorou os sócios da Incentivo, que passaram a desconfiar de todo o comportamento da Gradual.

Por isso, a gestora deu início a uma investigação própria das atividades da corretora, o que deu origem a uma série de ações judiciais e a duas denúncias no Banco Central (BC), que neste momento estão sob análise dos departamentos de fiscalização, o Difis, e o de supervisão de cooperativas e de instituições não-bancárias, o Desuc. Em nota à DINHEIRO, o Banco Central afirma que, “como é usual, está procedendo à apuração dos fatos e adotará as providências que lhe competir tomar”. Procurada, a Incentivo confirma o “ajuizamento de todas as medidas, mas prefere guardar confidencialidade sobre os temas específicos”.

Na primeira denúncia, a maior preocupação da Incentivo é com a debênture podre. A emissora ITS@ Tecnologia para Instituições Financeiras pertence à GF Systems Tecnologia da Informação, que também tem como proprietários os sócios da Gradual e um capital social, à época da emissão, de apenas R$ 10 mil. A falta de contratos ou de garantias para honrar o título aumentam os indícios de fraude. DINHEIRO enviou um email para Gabriel Freitas Junior, conforme endereço eletrônico que consta na escritura da primeira emissão da debênture, registrada na Junta Comercial do Estado de São Paulo, mas a mensagem foi rejeitada pelo servidor.

DIN1022-gradual4Repetição: a bolsa de valores identificou reiterados desenquadramentos às regras de mercado cometidos pela Gradual e por Fernanda de Lima (dois primeiros documentos); e parte da denúncia entregue pela Incentivo Investimentos ao Banco Central

Em entrevista por telefone, sua esposa Fernanda confirmou a propriedade da empresa. Segundo ela, eles investiram numa companhia de tecnologia chamada Turing, que desenvolvia sistemas de alta frequência (compra e venda automática de papéis) para o mercado de ações. Internamente, o negócio cresceu e ela decidiu realizar um spin off (divisão) dessa área. “No final de 2015, queríamos investir em algumas fintechs e a ITS fez uma captação no mercado”, explica Fernanda. “Os títulos de dívida privada podem ser comprados por fundos. Muitos compraram, tanto que a carteira da Incentivo têm debêntures.”

Consulta ao site do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) mostra que, das 16 marcas ligadas aos negócios da Turing, oito tiveram o pedido indeferido e as demais estão aguardando apresentação e exame de recurso contra o indeferimento. Fernanda defende-se dizendo que a fraude foi cometida pela Incentivo. Ela argumenta ter descoberto uma tentativa de um acerto trabalhista da gestora por meio de uma operação que contrariava o regulamento do fundo. Ao se recusar, como administradora, a autorizar o pagamento dessa operação, a Gradual passou a ser atacada pela Incentivo, diz Fernanda. Houve, inclusive, a convocação de uma assembléia entre os cotistas para destituí-la da função como administradora.

Porém, como essa convocação deve ser feita pela administradora e não pela gestora, o encontro em setembro do ano passado não foi considerado legal. “Isso é uma das coisas que eu falo para os cotistas: eles descobriram em março, foi tudo um ilícito, e só vieram falar isso em setembro?!”, questiona ela. No dia 6 de março deste ano, os cotistas dos fundos Incentivo Multisetorial I e II compareceram a uma nova assembléia, concordaram com as explicações da Gradual e destituíram a Incentivo do papel de gestora, ratificando a Gradual nas duas funções, de administradora e gestora. A Incentivo continua com o fundo Piatã, que tem uma nova administradora, e quer reaver os R$ 6,6 milhões das debêntures suspeitas.

MEIRE A segunda denúncia da Incentivo ao BC expõe a ligação entre Meire Bonfim Poza, ex-contadora do doleiro Alberto Youssef, e a entrada da Gradual no mercado de câmbio. No documento, eles ressaltam que a Gradual iniciou essa atividade no mesmo período da liquidação extrajudicial da TOV Corretora pelo BC, realizada em 7 de janeiro do ano passado, por participar de remessas ilegais de câmbio para o exterior, por celebrar contratos de forma manual com inconsistência na identificação dos clientes e por ter sido citada mais de uma vez nos inquéritos da Lava Jato.

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Bens sub judice: a decisão de arresto da Justiça de Luxemburgo (à dir.) e os registros de marca indeferidos pelo INPI

Coincidência ou não, o fato é que, até 2014, a Gradual ocupava a última posição no ranking de operações cambiais do BC e não havia realizado nenhuma remessa de divisas. No ano seguinte, foram enviados ao Exterior US$ 29,4 milhões. Esse volume aumentou exponencialmente em 2016 para US$ 337,8 milhões, num momento em que o montante de câmbio para o exterior do mercado brasileiro diminuiu 8,4%. Segundo o BC, não havia correspondentes de câmbio (empresas que funcionam como extensão de bancos e corretoras) registrados pela Gradual até a metade de 2015.

Nos últimos seis meses daquele ano, ela registrou 21 correspondentes, número que subiu para 68 após 12 meses e chegou a 79, em abril deste ano. Dois pontos, porém, chamaram a atenção na investigação feita pela Incentivo: 59% dos correspondentes de câmbio da Gradual não têm o capital mínimo de R$ 100 mil estabelecido pelo BC como prudência em caso de perdas financeiras; e 38 foram fundados a partir de 2015. O caso guarda muita semelhança com as operações de remessa ilegal para o exterior relatados na Lava Jato.

Inclusive por Meire Poza, que em 2014 prestou depoimento ao departamento de Polícia Federal do Paraná descrevendo como eram feitos os pagamentos e as emissões de notas a pedido do doleiro Alberto Youssef. Ele preferia utilizar a Arbor Assessoria e Consultoria Contábil, de Meire, por possuir, segundo o próprio, maior credibilidade. Foi assim que a contadora encobriu fraudes em contratos do governo federal, como o desvio de R$ 2,4 milhões na contratação da IT7 Sistemas para fornecer softwares e suporte técnico à Caixa. Por esse motivo, Meire foi indiciada pela Lava Jato em novembro de 2016.

Em 31 de março daquele ano, um incêndio destruiu o escritório de Meire, em São Paulo, e ela passou a dividir um endereço na avenida Santo Amaro com o advogado Carlos Alberto da Costa, ex-braço direito de Youssef e réu em dois processos na Lava Jato. Ele ficou preso por cerca de seis meses em Curitiba, mas foi solto após colaboração. Meire e Costa se conheceram enquanto faziam contratos fictícios entre a GFD Investimentos e empreiteiras. Apesar da parceria entre eles, Meire mal frequentava o escritório, pois sua rotina estava ligada à Gradual, onde ocupa uma sala, com um assistente.

Espelho: Meire (de laranja) acompanha um colega na portaria do prédio da Gradual, em março deste ano
Espelho: Meire (de laranja) acompanha um colega na portaria do prédio da Gradual, em março deste ano (Crédito:Divulgação)

Meire não é funcionária nem tem contrato com a Gradual, mas possui um endereço eletrônico em nome da corretora. DINHEIRO fez um pedido de entrevista à Meire, por e-mail, mas não obteve resposta. Seu e-mail na Gradual não foi rejeitado pelo servidor. “A Meire Poza não trabalha aqui”, afirma Fernanda. “Lá atrás ela chegou a dar cursos de imposto de renda para investidor, na época em que a bolsa estava bem no boom. E nem fui eu quem contratou, foi o diretor de marketing na época, que conhecia ela”.

A presença de Meire coincide com o fim do negócio entre a Gradual e a Bridge Trust Administradora de Recursos. Em fevereiro de 2015, Zeca Oliveira, sócio da Bridge, e Fernanda assinaram um compromisso de compra de 70% da Gradual. A Bridge fez um adiantamento de R$ 22 milhões por essa participação e recebeu em troca uma debênture da Gradual, com vencimento em março de 2017. Esse prazo serviria para as partes esperarem a aprovação do BC e, no final, a Bridge poderia decidir se exerceria a compra ou não.

A partir de então, as duas empresas passaram a fazer uma gestão compartilhada e Zeca nomeou novos diretores e começou a organizar a Gradual. Em setembro, a Gradual deixou de cumprir uma janela de liquidação na BM&FBovespa (atual B3) e perdeu o PQO, o selo de qualificação operacional. No dia seguinte, toda a equipe da Bridge teve o acesso bloqueado na Gradual e o negócio foi desfeito. A informação é que a debênture da Gradual foi paga no prazo. Procurado, Zeca Oliveira não retornou o pedido de entrevista. A relação entre a Gradual e a bolsa de valores é repleta de advertências. Ela já pagou mais de R$ 620 mil em multas em razão de diversas irregularidades.

No processo administrativo de fevereiro do ano passado, ao qual DINHEIRO teve acesso, a Gradual foi acusada de insuficiência de patrimônio líquido para ser um agente de custódia pleno e Fernanda foi apontada como responsável, pois não tomou as medidas cabíveis. Na decisão, o diretor de autorregulação, Marcos Rodrigues Torres, afirma que “a Gradual possui histórico de reiterados desenquadramentos por não ter cumprido os requisitos financeiros e patrimônio exigidos pela BM&FBovespa”. Nas últimas duas semanas, a Incentivo conseguiu pedir o arresto dos bens de Fernanda e Gabriel no exterior. No dia 31 de maio, o tribunal de Luxemburgo acatou o pedido (veja documento). O mesmo aconteceu em 1º de junho na Suprema Corte de Nova York, que marcou audiência para o dia 8 de junho para definir os valores.

Na segunda-feira 5, a Gradual, em nota à imprensa, afirmou “que são falsas as informações sobre ações de arresto de ativos da sua Corretora determinados por qualquer Tribunal dos Estados Unidos e de Luxemburgo, assim como são infundadas as acusações de que atos fraudulentos tenham sido cometidos nos fundos sob sua administração. A Gradual também nega veementemente que seus sócios e administradores mantêm ativos e recursos financeiros em contas bancárias no exterior”. Mesmo assim, a empresa contratou o escritório de advocacia Simpson Thacher & Bartlett LLP na mesma segunda-feira para se defender. O escritório pediu o adiamento do julgamento para 13 de junho. A briga vai longe.

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