Como acontece todos os anos nesta época, a partilha do dinheiro público através do Orçamento transforma ministros em adversários. Na divisão dos R$ 937,2 bilhões disponíveis para o próximo ano, colegas de ministério, antes tão cordiais, disputam centavo a centavo, e com pouco cavalheirismo, mais verbas para suas pastas. Também como sempre, lobistas e empresários voltam os olhos para o pesado jogo do Orçamento. Antes de olhar para o jogo, porém, é preciso entender as posições de força no tabuleiro. Por terem as maiores fatias do Orçamento, os ministros da Saúde, José Serra, e da Educação, Paulo Renato de Souza, são os bispos no jogo dos recursos públicos. Paulo Renato faturou o maior aumento percentual do Orçamento em relação ao aprovado no ano passado, de 48%. José Serra é o maior beneficiado em termos nominais; sua verba total de investimentos e custeios é de R$ 18 bilhões. ?Ele é de longe o mais mala, o que mais pede dinheiro?, diz um assessor do Planejamento. Serra passou as últimas duas semanas ameaçando paralisar o programa de combate à Aids caso ficasse sem os recursos que pedia. Ganhou R$ 250 milhões somente para tocar o projeto. Em sua retaguarda, conta com poderosos 50 peões nesse xadrez: a bancada parlamentar da Saúde, considerada o maior lobby formal no Congresso.

Paulo Renato também é conhecido pela persistência. Seu lobby se dá quase todos os finais de semana no Palácio da Alvorada. Na semana passada, aproveitou a pesquisa sobre queda da qualidade de educação para engordar sua fatia no bolo. O ministro da Previdência, Waldeck Ornellas, entrou no jogo quando a questão do salário mínimo virou prioridade na discussão sobre Orçamento. Afinal, a taxação dos benefícios de servidores inativos foi sugerida pelo governo como fonte de receita para o aumento do mínimo. O alívio de Ornellas durou pouco. A oposição derrubou a proposta.

Ruth Cardoso, chefe do Comunidade Solidária, também tem agido de forma sistemática para obter recursos para as obras sociais. A atuação da dama do tabuleiro, no entanto, não é vista a olho nu. Primeiro porque seus programas estão pulverizados em várias pastas. Segundo porque, com sua posição de primeira-dama, ela é forçada a atuar de forma silenciosa e discreta. ?Qualquer pedido de dona Ruth é considerado prioritaríssimo?, confirma um técnico do Orçamento. Outros membros do governo usam táticas diferentes. É o caso do ministro da Agricultura, Pratini de Moraes, uma das torres do tabuleiro. Enquanto participava do empurra-empurra com outros ministros, Pratini movimentou-se para conseguir facilidades na concessão de empréstimos para agricultores na compra de tratores. A idéia é simples: em vez de dinheiro vivo, ele obteve R$ 1 bilhão em recursos baratos ? 8,5% ao ano, fixos ? para aplacar os ânimos de sua base de atuação. ?O que faltar eu consigo por meio de emendas de deputados?, acredita. A mesma sorte no jogo não teve o ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, que tem uma proposta de R$ 1,9 bilhão. As tentativas de Jungmann o colocaram no topo da lista dos ministros que mais reclamaram nas últimas semanas. Para todos os casos, sem exceção, o ministro Pedro Malan recomenda parcimônia à equipe econômica. Não por outra razão é chamado pelos colegas de ministério de ?Malan, mãos de tesoura?. Quem comanda a operação torneiras fechadas é Martus Tavares, do Planejamento. Cabe a ele frear os ânimos dos parlamentares. ?Se eu estivesse em um ministério setorial, também pressionaria o ministro do Planejamento?, admite Martus.

 

Na tropa de oposição, o líder do PT na Câmara, Aloysio Mercadante, atua com a versatilidade de um cavalo, pois já antevê a responsabilidade de quem pode ser governo no futuro. Ele e seus companheiros chegaram a ameaçar impedir o andamento dos trabalhos da comissão, mas recuaram sob uma condição: a comissão teria que encontrar receitas que cobrissem o aumento de gastos com o salário mínimo de R$ 180, estimado em R$ 3 bilhões. O acordo sobre a questão foi fechado apenas na última terça-feira, 29, com o aval e sorriso do presidente Fernando Henrique. Pelo acordo, parte do aumento de despesa será financiado com R$ 1,2 bilhão vindos do combate à sonegação. Um ponto é o da polêmica quebra de sigilo bancário e outro é a utilização de dados levantados com a cobrança da CPMF para efeito de fiscalização. O secretário da Receita, Everardo Maciel, aparece nesse lance com seu habitual jogo de cintura. Para a oposição, diz que o projeto da CPMF poderia levantar R$ 10 bilhões. Mas no gabinete do ministro Pedro Parente, no Planalto, afirma que esse artifício não levantará mais que R$ 1,2 bilhão. O jogo segue na próxima semana, com a votação no Congresso dos projetos de combate à sonegação.