O escritor Lima Barreto (1881-1922) afirmou uma vez que o Brasil não tem povo, tem público. Ele se referia à falta de participação popular na criação da República, mas sua frase atravessou os tempos e continua contemporânea, ainda que de outra forma. Ao acompanhar as últimas deliberações das Casas Legislativas, a impressão é de que o povo realmente apenas assiste a um filme sobre um país que não é o Brasil. Ou, pelo menos, não o Brasil real. Em apenas cinco sessões (parte na Câmara, parte no Senado) foram aprovadas seis determinações de uso do dinheiro público que não interessan ao contribuinte. São medidas gastadoras e eleitoreiras, cujos impactos podem superar R$ 16 bilhões entre o segundo semestre deste ano e o fim do ano que vem. É um número estrondoso para qualquer economia, mas especialmente problemático porque é só uma fração de uma agenda repleta de bombas a serem lançadas do Legislativo para que o Executivo pague.

O aumento dos gastos em ano eleitoral não é novidade. Em busca de votos, senadores e deputados tendem a aprovar pautas que tenham mais apelo com o eleitorado. Elas são, em geral, custosas. O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL) também vai participar da corrida eleitoral, e por isso abraça medidas desse tipo, naturalizando um hábito que prejudica as contas públicas. Se o hábito é antigo, torna-se pior neste ano. Com a inflação fora de controle, o custo da dívida pública brasileira disparou. Projeções realizadas pela gestora de investimentos Armor Capital apontam que o custo da dívida pública deve atingir R$ 760 bilhões em 2022, uma alta de 70% na comparação com 2021, quando o gasto somou R$ 448,4 bilhões.

70% é o avanço do custo da dívida pública em 2022 ante a 2021, pela alta inflação. Com os novos gastos, esse valor ainda vai subir

TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO Isso tudo sem envolver novas despesas e desonerações, como as aprovadas nos últimos dias. Uma das mais custosas, inclusive, envolve manutenção de benefícios para elos da cadeia produtiva. Em tecnologia da informação, especificamente. Por meio da Emenda Constitucional 121 foi promulgada a manutenção dos benefícios fiscais no setor, o que significa cerca de R$ 6,1 bilhões em desoneração em toda a cadeia, segundo o Instituto Fiscal Independente. Quem também está muito perto de conseguir desoneração fiscal é o setor aéreo. A Câmara aprovou o PL 1094/21 que alivia a tributação em aeronaves (sejam próprias ou leasing) das companhias áreas e de fretamento, o que implicaria em uma renúncia de R$ 375 milhões do governo federal ao ano.

Outro recurso liberado foi um crédito extraordinário para compra de imunizantes contra a Covid, feito pela MP 1083/21. Serão mais R$ 6,4 bilhões destinados a esse fim. A cifra, ainda que necessária, poderia ter sido absorvida em outras contas do Ministério da Saúde, se houvesse um pouco mais de controle de gastos e despesas durante toda a pandemia.

MAIS GASTO ELEITORAL Além de todos os projetos que irão elevar de modo definifivo os gastos da União, a Câmara também aprovou mais dinheiro para a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro. (Crédito:Alan Santos)

Entre as aprovações com maior apelo ao eleitorado estão duas demandas de servidores públicos. A primeira é o aumento no piso salarial dos profissionais de enfermagem e agentes de saúde. Segundo o Portal da Transparência, apenas para a União o novo piso salarial (de R$ 4,5 mil) custará R$ 50 milhões ao ano, a determinação foi realizada por meio de um Projeto de Lei, o 2546/20. Quando o filtro abarca também os estados e os municípios, o valor chega a quintuplicar. Gerando um problema em cascata. Também terá efeito cascata a MP 1080/21 que versa sobre benefícios de policiais federais. A decisão do Legislativo foi flexibilizar o uso do Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal (FUNAPOL) para que abarcasse também o pagamento de planos de saúde e afastamento dos servidores. Pelas estimativas da Transparência, se levado a todos os servidores da categoria, o fundo precisaria de um reforço de cerca de R$ 100 milhões ao ano.

E não dá para dizer que o Congresso só bate no Executivo com novas despesas, eles também elevam os gastos afagando Bolsonaro. Um exemplo disso é a PL 4059/21, que flexibiliza a capacidade do governo fazer propaganda eleitoral por meio de publicidade institucional em ano eleitoral. Esse tipo de publicidade é composta por inserções e publicações em veículos de mídia que divulgam atos, obras e programas dos governos. E eles liberaram mais R$ 25 milhões para que o presidente Bolsonaro use essa prerrogativa. O tema ainda deve ser levado ao STF porque uma medida eleitoral, segundo as regras do TSE, não pode ser aprovada e entrar em vigor no próprio ano eleitoral. E que me desculpe o Lima Barreto, mas fica difícil ser povo quando somos colocados na condição de espectador.