A antiga Fábrica São Pedro, importante produtora de fiação e tecelagem fundada nos anos 1930 e que foi à falência em 1982, poderia ser apenas mais um espaço ocioso em Itu, cidade no interior de São Paulo. Não fosse o olhar atento de Marcos Amaro, ex-dono da Óticas Carol e herdeiro de Rolim Amaro (1942-2001), ex-dono da companhia aérea TAM, ela estaria abandonada. O empresário investiu R$ 100 milhões do próprio bolso para transformar o galpão de 25 mil metros quadrados, patrimônio tombado, em um museu com um acervo de 1,5 mil obras contemporâneas de artistas brasileiros e latino-americanos, avaliado em torno de R$ 70 milhões. Batizado de Fábrica de Arte Marcos Amaro (Fama), o novo espaço foi aberto ao público em junho deste ano. E consolida a instalação como um importante contraponto ao histórico descaso do País com a preservação de seu patrimônio cultural, algo que veio novamente à tona no início deste mês, com o incêndio que atingiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro.

A Fábrica de Arte começou a ganhar forma em 2013, quando Marcos alugou o imóvel abandonado para instalar o seu ateliê. Como artista plástico, ele busca inspiração em algo que sempre fez parte de sua vida. Suas esculturas são criadas a partir de peças recuperadas de aviões antigos. E lhe renderam, em 2016, os prêmios de melhor obra ecosustentável em Salerno, na Itália, e o de melhor escultura, no Visual Arts Press Awards, nos Estados Unidos, em 2017. Sua obra mais cara foi vendida por R$ 100 mil para um colecionador, durante a Art Basel, em Nova York. “Desenho desde pequeno. Sempre fui envolvido com esse universo”, diz Amaro. “Mas o mundo corporativo me ajudou a profissionalizar o negócio das artes.” É com essa visão diferenciada que ele tem um plano bem traçado para a Fama. Os recursos para o projeto vieram da venda do controle da Óticas Carol, em 2013, para o fundo britânico 3i, por R$ 108 milhões. Roberto Bertani, coordenador de artes da faculdade Belas Artes, elogia a ousadia de Marcos. “Precisamos de mais iniciativas como essa”, afirma. “Ele foi muito corajoso. Temos poucos museus fora do eixo das capitais.”

Mecenas: o artista e empreendedor Marcos Amaro em sua casa, em São Paulo. À esquerda, a esculura ˜Penetraveis˜, da artista brasileira Amelia Toledo e, ao fundo, uma obra de sua própria autoria

Além da localização, o acervo, de propriedade de Marcos, também chama a atenção pela riqueza e diversidade. Ele inclui obras como a “111”, do paulista Nuno Ramos, uma instalação na qual cada detento do Carandiru morto no episódio de massacre do dia 2 de outubro de 1992 é representado por uma pedra. Outro destaque é a obra “Ruína e Charque” (2002), de Adriana Varejão, avaliada em R$ 4 milhões. Engenheira de formação, a artista usa materiais de construção, como azulejos, e, em 2011, teve o quadro “Paredes com incisões à la Fontana” vendido por 1,1 milhão de libras em um leilão na Christie’s. O montante foi o segundo valor mais alto pago por uma obra de uma artista brasileira viva. Nelson Leirner, filho da famosa escultora Felícia Leirner, também dá o ar das graças na Fama com a obra “Futebol” (2001), adquirida por R$ 1 milhão. O artista tem um perfil marcadamente político e trabalha com objetos recolhidos da rua. Na peça em questão, ele reconstrói a cena de um jogo de futebol com elementos que fazem parte da cultura brasileira, como santos (iemanjá), anjos e palhaços. Apesar de pertencer à fase do barroco, estilo que floresceu entre o final do século 16 e meados do século 18, a escultura “Nossa Senhora das Dores”, de Aleijadinho, avaliada em R$ 4 milhões, é mais uma peça relevante do museu.

Desde a sua inauguração, o local recebeu, em média, mil visitantes por mês. As entradas são gratuitas. A meta é ampliar esse volume para 3 mil pessoas nos próximos meses. “Se conseguirmos esse número, nos colocamos entre as dez maiores instituições do País em termos de visitação”, afirma Amaro. Para isso, uma das estratégias previstas é a construção de uma pousada para abrigar colecionadores, artistas e o público em geral. O projeto também passa por parcerias para a instalação de restaurantes de chefs renomados no local. “Museus mais interativos e fora do padrão tradicional costumam receber mais visitas, principalmente do público jovem”, diz Bertami, da faculdade Belas Artes.

A sustentabilidade do museu inclui ainda outra estratégia. Marcos está criando um endowment, como são conhecidos os fundos patrimoniais privados de longo prazo que atraem recursos financeiros por meio de doações de pessoas físicas e jurídicas. O uso dessa prática para a manutenção de museus, universidades e outras estruturas similares é bastante comum no exterior. Um exemplo é o Museu de Arte Moderna de Nova York. No Brasil, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) foi a primeira instituição cultural do País a adotar esse expediente, em 2013, para não fechar as portas devido a problemas financeiros. O fundo da Fama vai começar com um caixa de R$ 10 milhões. “Quero colocar a casa em ordem primeiro”, diz o empresário.

Amaro é um dos poucos nomes do empresariado nacional que investem seu próprio dinheiro no mundo das artes. “É um mercado de grande potencial, mas que trabalha com o que chamam de especulação e isso acaba afastando muitos dos meus pares”, diz. Ele observa, no entanto, que existe uma carência de instituições culturais no Brasil, que precisa ser preenchida por projetos desse porte. “Os últimos incidentes envolvendo os museus mostram a precariedade e falta de cuidado com nossa cultura”, afirma o empresário, relembrando também o incêndio que atingiu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, há três anos. “Mas também chama atenção das pessoas para valorizarem mais esses locais.”

O Museu Nacional do Rio, o maior museu de história natural do Brasil, com um acervo de 20 milhões de itens, apresentava problemas estruturais de má conservação e vinha sofrendo com falta de recursos. E o desinteresse não está restrito apenas à esfera governamental. Um projeto elaborado pela Associação Amigos do Museu Nacional (SAMN) para captar R$ 17,6 milhões, via Lei Rouanet, para a prevenção de incêndios, arrecadou apenas R$ 1 milhão, entre 2010 e 2018. “Falta sim investimento e engajamento da iniciativa privada. “Precisamos de mais Marcos”, diz Bertani, da faculdade Belas Artes. A coordenadora do curso de produção cultural da FAAP, Ana Farinha, chama a atenção para outro ponto. “É preciso investir em capacitação para gerenciar esses patrimônios”, diz. “É a falta dessa gestão que também tem dificultado a aplicação dos recursos.”

Se depender do histórico da família, o projeto da Fama deve decolar. O pai de Marcos, Rolim Amaro, foi um dos responsáveis pela transformação da TAM, hoje LATAM Airlines Brasil, considerada a maior empresa do segmento no País. O empresário começou como comandante na companhia, em 1961, e, em 1972, tornou-se sócio minoritário, com 33%. Em quatro anos, Rolim assumiu o controle da operação. Com as lições do pai, Amaro também conseguiu fazer da Óticas Carol uma das maiores redes varejistas do segmento de óticas no Brasil. Durante o período em que esteve sob seu controle, entre 2008 e 2013, a empresa, até então familiar e mais concentrada em São Paulo, profissionalizou a gestão e decidiu focar sua expansão apenas no modelo de franquias, o que acelerou sua chegada, na época, a 19 Estados. Agora, o objetivo de Marcos é fazer com que a arte tenha o mesmo sucesso.