Quando criança, meu pai me perguntava o que eu queria ser quando crescesse e eu respondia: índio”, afirma o designer Humberto Campana. A infância na pequena Brotas, cidade turística de pouco mais de 20 mil habitantes no Oeste paulista, oferecia o contato com a natureza e seus intermináveis ciclos de renovação – até hoje, sua maior inspiração. Seu irmão Fernando tinha outro fascínio. No mesmo quintal, os materiais que o mundo oferecia viravam naves espaciais, copiadas do filme “2001, Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick.

O cinema era uma fonte de inspiração constante de Fernando. Mas, assim como o irmão, oito anos mais velho, ele encontrava na abundante natureza do interior de São Paulo as ferramentas para dar vazão à sua criatividade. Fernando e Humberto são unha e carne. “Ele sempre foi meu guia”, diz o irmão mais novo, a respeito do mais velho. Juntos, eles revolucionaram o design ao formarem a mundialmente conhecida dupla Irmãos Campana. Da cabeça e pelas mãos dos irmãos, surgiram peças de mobiliário que são verdadeiras obras de arte – ou obras de arte que podem ser usadas como móveis, dependendo do ponto de vista.

Caso da Poltrona Vermelha (1993), feita a partir de um único rolo de corda, que foi exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). A resignificação de objetos cotidianos sempre fez parte do trabalho dos irmãos. Agora, essa habilidade caminha lado a lado com o processo do redescobrimento, de si, do mundo e, especialmente, de um Brasil interiorano que parece esquecido. “O brasileiro não conhece o interior”, afirma Humberto. Os Irmãos Campana estão entrando em uma nova fase, calcada em dois movimentos e em mudanças no mercado de design. O primeiro dos movimentos é a busca por uma identidade fora da dupla.

Macacos e robôs: obra que faz parte da mostra de Fernando Campana na Galeria Baró, em São Paulo. A inspiração na infância em Brotas fica evidente nos retratos de macacos (Crédito:Divulgação)

Os Campana querem se tornar, aos olhos do mundo, Fernando Campana e Humberto Campana. O segundo movimento é o de assumir a condição de artista, se distanciado da parte puramente industrial do design. Humberto, no momento, trabalha com esculturas. Ele acaba de estrear uma exposição em Nova York, chamada Hybridism (Hibridismo), na galeria Friedman Brenda. As obras capturam momentos cotidianos, como as corridas matinais de Humberto por São Paulo, e retratam a ideia da natureza “se entrelaçando pelo tecido urbano de nossa própria imaginação”, como descreve o texto de lançamento da mostra. “Tenho trabalhado com ferro e coisas pesadas”, diz Humberto. “É um reflexo desses tempos atuais, de muito retrocesso, no Brasil e no mundo.”

Embora os trabalhos ainda sejam creditados ao Estúdio Campana, empresa criada para produzir as obras dos irmãos, Humberto, claramente, encabeça o projeto, algo que deve acontecer com mais frequência no exterior. “Eu estou me concentrando mais no Brasil, deixando o Humberto responsável pelas iniciativas lá fora”, afirma Fernando. O irmão mais novo também acaba de inaugurar uma exposição, na Galeria Baró, em São Paulo. Sua arte é a pintura. A mostra apresenta quadros que retratam macacos e robôs. A inspiração na infância em Brotas é evidente. Assim como a presença da veia do design. As molduras dos quadros, produzidas por ele, extrapolam os limites da pintura, se transformando em um elemento significativo.

Para Ana Lucia Lupinacci, coordenadora do cursos de design da faculdade ESPM, de São Paulo, essa nova fase dos Campana influencia e, ao mesmo tempo, é um reflexo de mudanças significativas no desenho industrial. “Os Irmãos Campana foram os primeiros a levar o design para o mundo da arte”, diz Lupinacci. Há uma diferença fundamental entre design e arte, que é a preocupação, do primeiro, em criar objetos úteis e replicáveis. Para entender melhor o que significa o trabalho dos Campana, pode-se traçar um paralelo com as obras de Andy Warhol, que transformou em arte objetos cotidianos, como uma lata de sopa, por exemplo. “Só que no caminho inverso”, explica a professora. “O design pode ser dividido em duas fases: antes e depois dos Irmãos Campana”, afirma Mauricio Tortosa, diretor-presidente da Escola Britânica de Artes Criativas (EBAC). “Eles também foram responsáveis por introduzir elementos brasileiros no mercado mundial.”

Metais pesados: escultura exposta na galeria Friedman Brenda, em Nova York. Humberto vem trabalhando com ferro e coisas pesadas, um reflexo dos tempos atuais (Crédito:Divulgação)

Hoje, esse processo de fusão entre arte e design está cada vez mais difuso. Avanços tecnológicos, como a impressão 3D e os softwares de desenho, permitem quebrar a barreira entre o manual e o industrial. Ao mesmo tempo, a demanda dos consumidores é por uma “exclusividade replicável”, no sentido em que o móvel segue tendo sua função clássica, porém a beleza não está apenas na forma, mas também no significado de suas alegorias. Uma cadeira é facilmente produzida industrialmente. Porém, ao ganhar um elemento feito à mão, talvez um bordado inspirado no trabalho de uma pequena comunidade interiorana brasileira, ela se torna um objeto “semiartístico”. E, portanto, mais vendável. “A tecnologia permite, hoje, que tudo seja replicado mais facilmente”, diz Lupinacci.

O desafio, agora, não é inserir o artesanato no universo do desenho industrial. O caminho é inverso. Como cada vez mais as empresas querem que seus produtos tenham um diferencial exclusivo, a dificuldade é fazer com que os processos industriais se adaptem à tecnologia manual. Não por acaso, na última década, os Campana firmaram parcerias com empresas de variados setores, participando do desenvolvimento de produtos como sandálias, para a marca Melissa, joias, para a H.Stern, e, mais recentemente, móveis populares para a Tok&Stok.

Trata-se de um negócio lucrativo para os dois, que recebem uma porcentagem sobre cada venda – o valor, geralmente, não é revelado, mas, no caso da Melissa, era de 3%. “As pessoas entendem o valor do design assinado e buscam esse tipo de produto”, afirma Ademir Bueno, gerente de design e tendências da Tok&Stok. A popularização do trabalho dos Campana, no entanto, não interfere no valor das suas criações mais luxuosas. A fabricante italiana de móveis de luxo Edra continua vendendo o mobiliário dos irmãos a preços singulares, como o do sofá Boa, que chega a custar US$ 40 mil. Tampouco reduz a importância da busca por incorporar elementos originalmente brasileiros ao design, que está presente nos primórdios criativos dos dois.

Nesse sentido, por meio do Instituto Campana, os irmãos realizam um verdadeiro inventário de habilidades manuais brasileiras. Humberto e Fernando costumam viajar pelo País em busca de técnicas ancestrais de artesanato, pouco difundidas. Já são mais de 30 anos de registros catalogados, que são incorporados às atividades no Estúdio Campana e em projetos sociais, como o Futuro Artesão, em parceria com o Oratório Domingos Sávio, cujo objetivo é dar oportunidades para jovens em situação de vulnerabilidade desenvolverem técnicas e habilidades manuais em espaços profissionais.

No fundo, como diz a professora Lupinacci, os Irmãos Campana são, na verdade, grandes observadores. O que eles fazem é capturar a essência das coisas imateriais, como as lembranças de uma infância no interior, e transformá-las em objetos, sejam eles úteis ou apenas contemplativos. Nesse processo, eles revolucionaram o mundo do design ao levar o caos da natureza para a sala de estar, rompendo com a lógica utilitária da indústria. Nessa nova fase, ao abraçarem a arte como principal forma de expressão e buscarem uma identidade fora da dupla, tentam dar novo significado aos seus trabalhos criativos. Pode ser o início de uma nova revolução.