Em um país com mais de 100 milhões de pessoas sem acesso a água e esgotos tratados, estranha-se que a discussão no Congresso Nacional sobre a universalização do saneamento básico tenha demorado quase 10 anos para sair do papel. Em um dos poucos momentos de harmonia entre os poderes Executivo e Legislativo, foi aprovado na quarta-feira (24) o novo marco regulatório para o setor, com estimativa de investimento de R$ 700 bilhões até 2033.

Em um acordo que envolveu o governo federal, por meio do ministro da Economia, Paulo Guedes, e partidos de diferentes posições ideológicas (entre eles DEM, PSL e PSDB), o texto que pode transformar em realidade o sonho de levar saneamento a 99% dos brasileiros foi um dos mais bem aceitos dentro do Senado desde o início da gestão Bolsonaro. Houve 65 votos favoráveis às mudanças e 13 contrários. O relator do projeto, senador Tasso Jeiressati (PSDB-CE), afirmou à DINHEIRO que o momento para retomar a discussão se tornou propício por se tratar de um mecanismo que também irá estimular a economia. “Essa Casa e os demais Poderes buscam soluções para o momento atual, e o novo marco, além de estimular a economia, tem um peso social enorme”, disse. A aprovação, portanto, pouco se deve a qualquer esforço do presidente.

Como a discussão era antiga, a chegada da pandemia e a necessidade de buscar alternativas para estimular a economia deram o empurrão final para que o tema avançasse efetivamente. Até então, a proposta emperrava em uma questão de viabilidade econômica: como garantir que as cidades menores, com número de habitantes insuficiente para gerar lucro ao concessionário, pudessem se tornar atrativas para a iniciativa privada?

Para equacionar esse problema foi encontrada uma solução parecida com o modelo atual. Hoje, empresas públicas controladas pelos governos estaduais fazem o chamado financiamento cruzado, em que os municípios menos rentáveis recebem recursos de vizinhas cidades de maior porte e capazes de gerar mais arrecadação. No texto aprovado pelo Senado o desenho é bem similar. A ideia é construir blocos para concessão, em que a empresa vencedora assuma mais de uma cidade, podendo assim investir em municípios menores com a garantia de lucro. Atualmente, apenas 6% dos municípios brasileiros possuem o serviço de saneamento básico privatizado. O motivo para tão baixo índice é, justamente, a falta de rentabilidade – que pode ser obtida se houver coordenação entre os vizinhos.

Apesar do ambiente parecer favorável para o início da implementação de um novo marco, vozes dissonantes ainda são ouvidas. Uma delas é de Sérgio Gonçalves, diretor da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes). Para ele, o marco desconsidera a construção coletiva de pelo menos outras seis leis de alcance nacional que foram implementadas nos últimos 20 anos em nome da universalização da água. “Não há problema algum em mexer nas leis. A questão é que o PL não foi debatido coletivamente e atropela todas as outras leis existentes.” Segundo ele, o projeto aprovado não informa de onde virá o dinheiro para investimentos.

Pedro Ladeira

“Buscamos soluções e o novo marco, além de estimular a economia, tem um peso social enorme” Tasso Jereissati, senador (PSDB-CE).

Entre os ambientalistas, a discussão é sobre o direito universal de acesso à água. Para o engenheiro ambiental e professor de reservas e recursos naturais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Caio Madureira, a lógica do lucro sobre um serviço básico não diminuirá o déficit de acesso ao saneamento e pode aprofundar o abismo entre as cidades grandes e as pequenas. “Não há como capitalizar um recurso esgotável como commodity sem excluir uma parcela significativa da população para que o preço do recurso aumente”, afirma.

Estudo divulgado em março pelo Instituto Trata Brasil e a Go Associados mostra o tamanho do abismo quando o assunto é saneamento. Avaliando números de 2018, o que se nota é que mais de 46% da população não tem acesso a esgoto tratado. A maior parte reside nas regiões Norte e Nordeste do País. Ao avaliar a série histórica, entre 2014 e 2018 foram investidos R$ 22,1 bilhões em saneamento nas capitais brasileiras. Desse total, 47,7% foram realizados em São Paulo, com R$ 10,5 bilhões. Em um distante segundo lugar aparece o Rio de Janeiro, com R$ 1,73 bilhão. O investimento médio por habitante na capital paulista gira em R$ 173, ao passo que a capital com a pior colocação do ranking, Belém, investe apenas R$ 27.

DATA PARA TERMINAR Novo marco aponta que, até 2024, nenhum município brasileiro poderá ter lixão a céu aberto em operação. (Crédito:Divulgação)

Problema equacionado Apesar das discussões, entidades favoráveis ao marco mostram que esses temores podem ser mitigados. O diretor executivo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Percy Soares Neto afirma que a questão de investimento em municípios pequenos foi superada com a criação da proposta dos blocos regionais. De acordo com ele, isso garantirá investimento em cidades menores. Soares refuta a ideia de que empresas privadas não têm interesse em municípios pequenos. Para rebater esse argumento, ele menciona um estudo da Abcon, em que 58% das concessões privadas do serviço de água e esgoto estão em municípios com menos de 20 mil habitantes. “Dizer que não haverá operação privada em município pequeno não é verdade”, sustenta. “Essas cidades têm na regionalização a saída para manter economia de escala”, completa.

Na esfera federal, quem avalia os serviços de tratamento de água e esgoto é a Agência Nacional de Águas (ANA), que aponta números alarmantes. Em Rondônia, apenas 4,9% da população possui rede de esgoto. Cidades inteiras, como é o caso de Mirante da Serra, não possui infraestrutura alguma de saneamento. O município, com cerca de 11 mil habitantes, é um dos que teriam pouco apelo para a iniciativa privada. Refutando a ideia de baixo interesse por parte dos investidores, o especialista em saneamento e consultor do PSDB do Senado para assuntos de privatização, Roger Reconello, diz que a ótica precisa ser outra. “Não podemos olhar apenas para o dado de que a arrecadação é baixa, mas prever que ela subirá quando a infraestrutura chegar.” Para ele, quando a cidade tiver saneamento, haverá interesse de novas empresas se instalarem no local. Isso elevaria a arrecadação municipal, beneficiando a própria cidade.

AUTONOMIA DOS MUNICÍPIOS Outro ponto polêmico do texto envolve a capacidade do município de decidir como proceder no quesito saneamento básico. Segundo a Constituição Federal, é de responsabilidade dos prefeitos garantir que os cidadãos tenham acesso aos serviços, e ao estado cabe fazer a infraestrutura que liga uma cidade a outra. A União, por sua vez, cuida de fazer valer as regras e serve como avalista e curadora dos projetos por meio de financiamento. A princípio, o marco dizia que a adesão aos blocos de concessão era compulsória, ou seja, as cidades seriam incluídas de acordo com a decisão dos estados e União. Por conta de pressão da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) essa regra caiu, tornando a adesão uma decisão do prefeito. O problema é que as cidades que não aderirem aos blocos não receberão recursos federais para sustentar seus projetos de saneamento básico.

OLHAR ECONÔMICO Ministro Paulo Guedes se apoia nas obras de saneamento para retomada do investimento privado e atividade econômica do País. (Crédito:Pedro Ladeira)

Cláudia Lins, técnica em saneamento e especialista da CNM, afirma que o governo municipal que se recusar a participar dos blocos deve estar convencido de que poderá investir de forma autônoma em saneamento. “Nossa preocupação é que a autonomia municipal seja respeitada.” Com essa adesão voluntária, outro problema é o eventual desequilíbrio dos blocos. Se houver adesão de apenas uma cidade rentável e outros 10 pequenos municípios, a sustentação do financiamento cruzado não acontece.

Para Sérgio Gonçalves levar a discussão do marco exclusivamente para o campo econômico tira dessa questão o peso social que ela exerce. “A discussão econômica é importante, mas não pode reduzir a uma pauta econômica como se o saneamento fosse mercadoria”. Para ele, o marco apenas instala a competição no setor. “Há estatais excelentes e eficientes. Não é a competição, necessariamente, que leva à eficiência.”.No meio de tantas incertezas, ainda que caibam bilhões de reais em investimento no setor, é preciso cautela para que nem o dinheiro do empresário e nem o bem-estar da população escorram pelo ralo.