O novo coronavírus mata mais homens que mulheres por razões ainda não muito claras, já sabemos. Mas essa constatação é rasa demais para orientar políticas públicas, e mesmo para entender como esse surto vai afetar, no curto e no longo prazo, outros aspectos importantes da saúde, do trabalho, da economia e da vida em sociedade.

Para chegar aí, seria necessário desagregar os dados por gênero – uma maneira pomposa de falar de algo relativamente simples, mas que permite encontrar soluções novas e eficazes para problemas já caducos. Ainda assim, e mais uma vez, não há qualquer evidência de que essa abordagem esteja sendo usada nesta pandemia segundo o trio de pesquisadoras que acaba de publicar um artigo na revista The Lancet, uma das mais renomadas no mundo científico.

A experiência de surtos anteriores mostra a importância de incorporar uma análise de gênero aos esforços de preparação e resposta, para melhorar a eficácia das intervenções em saúde e promover as metas de igualdade de gênero”, sustentam as autoras. Batendo na mesma tecla de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres e o Women20, do G20, quando apresentam recomendações às autoridades de todo o planeta sobre como acabar com o abismo de oportunidades e direitos que separa homens e mulheres. Sem (muito) sucesso.

O artigo se apoia em exemplos gritantes para mostrar que lições que poderiam ter sido aprendidas com outros eventos críticos acabaram esquecidas, exatamente por falta de um enfoque de gênero. Durante a epidemia de ebola que atingiu a África ocidental entre 2014 e 2016, as mulheres eram o grupo mais vulnerável, na linha de frente dos atendimentos como enfermeiras e assistentes, ou cuidando de parentes. Os números desse surto são discutíveis até hoje, mas o que se sabe é que a maior parte dos 30 mil mortos pela doença eram mulheres, e não há uma explicação meramente biológica para isso.

Nesta pandemia que ainda não acabou, e portanto com números não fechados, as mulheres seguem na linha de frente – a estimativa é de que 70% da força de trabalho dentro dos hospitais seja feminina, com casa, filhos e família no contraturno de sua atuação. No Brasil, o governo dobrou uma ajuda emergencial de R$ 600 para as mulheres chefes de família na base da pirâmide – e ficou nisso. As profissionais de saúde continuam invisíveis quando se trata de apoio específico para suas necessidades idem.

Passado o surto do ebola, a realidade mostrou que homens tiveram mais facilidade que mulheres para recompor sua renda. O bom senso recomendaria, portanto, um olhar atento sobre como os programas com esse fim serão endereçados agora. Mas eles seguem sendo oferecidos em bases neutras até onde a vista alcança, sem amparar devidamente as mulheres. Só de empreendedoras, o Brasil tem 24 milhões, e metade delas sustentam sozinhas suas casas. Também são invisíveis para as ações emergenciais da pandemia.

Outras disrupções sociais como a causada pelo furacão Katrina nos Estados Unidos ou terremotos que atingiram a Nova Zelândia, o Haiti e até o Japão, para ficar em alguns poucos exemplos, elevaram comprovadamente os casos de violência doméstica contra mulheres, mas a lição igualmente se perdeu: estamos, agora, (re)vivendo essa tragédia na quarentena do coronavírus como se ela fosse uma surpresa e, portanto, sem qualquer ação preventiva para proteger as vítimas (tratei desse assunto na coluna da semana retrasada).

Desagregar os dados por gênero e considerar lições como essas, que eles nos contam, requer apenas a chamada vontade política. Pode parecer um assunto menor enquanto atravessamos uma temporada no inferno, como agora. Não é: pelo contrário, é uma maneira de produzir justiça social baseada em dados, o recurso mais valioso dos nossos tempos.

E como esta temporada não será a última, infelizmente, quem sabe dá para aprender até a próxima.