Terminou na terça-feira (12) a 13ª edição da Brasil Game Show, a maior feira de games da América Latina. Durante cinco dias, as redes sociais do evento que já reuniu mais de 2 milhões de pessoas desde sua estreia, em 2009, transmitiram uma programação que incluiu competições, novidades do mercado, cenas de títulos inéditos, entrevistas com influenciadores e ações publicitárias. É uma amostra das diversas oportunidades de negócio que esse mercado bilionário oferece. Para ter uma ideia, em 2020 os games movimentaram globalmente US$ 177 bilhões em receita, segundo o Newzoo, especializado em games — valor comparável à indústria cinematográfica de Hollywood e aos esportes americanos combinados. E o Brasil ocupa uma posição de destaque. Com 70 milhões de jogadores, é o mercado mais rentável da América Latina e o 13º no ranking mundial, também segundo dados do Newzoo. Aproveitar as oportunidades envolve entender as mudanças de comportamento do público e a nova dinâmica social que o entretenimento interativo proporciona.

O segmento mais aquecido no momento é o de jogos mobile, desenvolvidos principalmente para smartphones, que contribuiu com 57% desses US$ 177 bilhões de receita. É, inclusive, a principal forma de entretenimento para os jovens brasileiros. Afinal, as versões mais completas do Playstation 5 e do Xbox Series X, consoles da nova geração lançados pela Sony e pela Microsoft, custam pouco menos de R$ 5 mil por aqui. De acordo com dados divulgados pela Pesquisa Game Brasil 2021, maior levantamento do perfil dos jogadores do País, 40,8% dos entrevistados afirmou que joga diariamente em dispositivos móveis. A popularidade dos smartphones e o surgimento de games gratuitos para baixar, mas com conteúdos adicionais pagos, derrubou barreiras de acesso. Antes, era preciso comprar um console ou um computador poderoso para poder jogar. “Houve uma democratização não apenas social, mas também de gênero”, disse a apresentadora e influenciadora Nyvi Estephan, que apresenta competições de e-sports no SporTV e na Globo, além de produzir conteúdos em seus próprios canais na internet. Os números comprovam essa percepção. Ainda segundo a PGB, as mulheres já são maioria entre quem joga no Brasil, mas são ainda mais presentes quando se fala em gamers casuais (55,8%) e na preferência por smartphones como plataforma (62,2%, contra 37,8%).

Com esse público mais amplo e variado, é natural entender o interesse da Netflix, que anunciou neste ano a criação de sua divisão de games, focada justamente em títulos mobile. Os testes já começaram em países da Europa, inicialmente Polônia, Itália e Espanha, com Stranger Things 1984 e Stranger Things 3, baseados na popular série, além de títulos sem conexão direta com suas produções originais. No final de setembro, o serviço de streaming anunciou a compra do Night School Studio, criador de Oxenfree, game para múltiplas plataformas indicado a diversos prêmios. A proposta é oferecer os novos títulos aos assinantes sem custo adicional. E a Netflix não é a única empresa a investir no formato. Até a Activision, desenvolvedora de games para consoles, lançou Call of Duty Mobile, versão para smartphones da terceira maior franquia de jogos da história, que já vendeu mais de 400 milhões de cópias.

POSSIBILIDADES As influenciadoras Camilota XP e Nyvi Estephan, o DJ Alok, que virou personagem em Free Fire, e os games (ainda em fase de teste) da Netflix: o ato de jogar representa apenas uma parte desse universo em que há uma enorme demanda por conteúdo interativo. (Crédito:Divulgação)

CULTURA EM EXPANSÃO A decisão da Netflix — e de outras empresas — em entrar no mundo dos jogos está ligada a uma estratégia de fazer parte de uma cultura muito maior em que o ato de jogar é apenas uma pequena parte. Afinal, muito conteúdo é consumido, de vídeos de análise publicados no YouTube a campeonatos e transmissões ao vivo de influenciadores (os chamados “streamers”), em redes sociais específicas como a Twitch. “O universo gamer é muito grande. Game é entretenimento”, afirmou Tatianna Oliva, sócia da Cross Networking, braço da agência Holding Clube que trabalha criando parcerias estratégicas entre marcas. Nesse cenário, os jogos têm oferecido uma possibilidade de estreitar o relacionamento entre jogadores e ídolos.

Ela está por trás da ação que uniu o DJ Alok ao Free Fire, desenvolvido pela Garena, de Cingapura. No game para smartphones o objetivo é ser o último sobrevivente em uma disputa, formato conhecido como battle royale. Com mais de 150 milhões de usuários ativos por dia no mundo, é um fenômeno de popularidade. Gratuito para jogar, ele oferece conteúdos extras pagos, como as “skins”, roupas para os personagens. “Alok foi convidado para fazer um show dentro da final do campeonato no Brasil. Quando chamamos o pessoal da Garena para conversar, decidimos colocá-lo dentro do jogo”, afirmou Tatianna. A ação acabou ganhando um viés social. A partir da arrecadação com a venda das roupas, o DJ colocou recursos próprios e fechou parceria com a Garena para criar o instituto Alok, que já doou R$ 27 milhões para instituições como o GRAACC (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer).

Os games também funcionam como uma vitrine para as marcas, que veem no entretenimento interativo uma chance de criar experiências. Com a pandemia, essa avenida de oportunidades ganhou peso. São inúmeros exemplos. Grifes de luxo, como a Gucci e a Louis Vuitton, lançaram roupas virtuais em jogos como o Roblox com preços muito mais acessíveis do que as versões físicas. A Jeep colocou a nova versão do Compass dentro do GTA on-line, com direito a test drive e visita a uma concessionária. O Boticário também criou uma boutique virtual dentro do game Avakin Life, semelhante ao The Sims, em que os avatares podiam interagir com os cosméticos, e a loja recebeu nove milhões de visitas durante os meses em que ficou disponível.

Há casos em que os limites entre o virtual e o real ficam mais tênues. O iFood também escolheu a Cidade Alta, ambientação de GTA, para fazer uma ação em que os jogadores podiam se tornar entregadores dentro do game, e pedir os lanches da lanchonete virtual Avalanches no mundo real. A Amaro transformou sua personagem virtual, Mara, em um avatar dentro do Animal Crossing, da Nintendo. “Entramos no jogo para interagir com outros gamers em busca de tendências que estavam sendo desfiladas no ambiente virtual”, disse Luciana Cardoso, diretora criativa da Amaro. “Mas, para nós, o ‘pulo do gato’ dessa ideia foi trazer para o mundo real o que vimos no game”, afirmou. De fato, a marca lançou uma coleção cápsula em suas lojas, a Cross Collection. É uma via de mão dupla. A Ford vem usando técnicas de gamificação para levar insights obtidos em um ambiente virtual para os carros que são produzidos em sua linha de montagem: da preferência pelo acionamento de botões para ativar o estacionamento automático ao tempo de resposta de manobras a obstáculos nas ruas. Fica claro que existem casos de conversão mais rápida em vendas, enquanto outras ações fazem parte de uma estratégia de longo prazo de construir uma futura clientela e manter vivo o desejo por seus produtos, como é o caso das montadoras.

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“É importante mostrar que todo mundo é gamer. Esse universo do game é muito grande e todos fazem parte” Tatianna Oliva, da Cross Network.

PODER DA INFLUÊNCIA Nesse cenário, os influenciadores de games têm um papel importante em fazer a ponte entre marcas e público, já que eles têm milhões de seguidores e dialogam diretamente com eles de maneiras que marcas mais tradicionais ainda não conseguem fazer. No início de outubro, hackers vazaram uma lista com informações sobre a Twitch, incluindo a remuneração de alguns dos maiores streamers da plataforma. Os números surpreendem, mostrando que muito dinheiro circula nesse meio. Há brasileiros no ranking, como Alexandre Borba Chiqueta, conhecido como Gaules e dono do terceiro canal mais assistido do mundo na plataforma, que recebeu US$ 2,8 milhões (R$ 15 milhões) entre agosto de 2019 e outubro de 2021 — e os valores não contemplam doações de seguidores nem os ganhos com publicidade. Jogadores profissionais de esportes eletrônicos também usam suas redes para transmitir partidas, dar dicas e, às vezes, simplesmente entreter seus seguidores — lucrando milhões no processo. São ídolos com tanto poder de influência quanto um jogador de futebol.

“Há um desejo das marcas de rejuvenescer seu público”, afirmou Gabriel Lima, COO da MField, agência que trabalha com marketing de influência. “E os influenciadores são amplificadores da mensagem. Eles estão dentro dos games e sabem se comunicar com a galera”, disse Lima. Essa comunicação passa por uma mudança de hábitos de consumo de entretenimento, antes dominado pela TV. Hoje, os gamers acompanham transmissões regulares no Twitch e no YouTube, assistindo a seus streamers favoritos em uma programação totalmente feita para a internet. O smartphone não é apenas uma ferramenta para jogar, mas também para consumir esse universo de conteúdo.

A atriz e influenciadora Camila Silveira, a Camilota XP, que apresenta o maior campeonato de Free Fire do Brasil, faz ações de marcas que representa como embaixadora e também mantém um canal ativo no YouTube, vê esse interesse das marcas como um processo. “É ótimo. Quanto mais marcas entrarem, mais os nossos jogos serão bem vistos no cenário mundial, afirmou. “Mas é preciso entender o nosso segmento, convidar quem faz parte e dar um passo de cada vez, para não fazer algo cringe, como diz a nova geração.” Gabriel Lima, da MField, concorda. “A comunidade é mais exigente, não aceita qualquer tipo de publicidade”, afirmou. “Mas as marcas que tiverem receio de entrar no mundo dos games e não pensarem em uma construção de longo prazo ficarão para trás”.