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Esta é a história do início, apogeu e queda de uma era ? a era da internet. O derradeiro capítulo dessa epopéia foi escrito na semana passada, precisamente na quarta-feira 29, quando a AOL Time Warner, a líder do setor de comunicação no planeta, anunciou um colossal prejuízo de US$ 98,8 bilhões, o maior já registrado em toda a história empresarial mundial. Abatida pela queda de receita, por uma guerra interna devastadora e pela suspeita de fraudes contábeis, a gigantesca organização viu seu balanço ser tomado por um vermelho sem precedentes. É como se a economia de um país como Hungria, Venezuela ou Irlanda fosse varrida do mapa de uma hora para outra. Ou as 75 maiores indústrias do Brasil passassem um ano sem produzir um parafuso sequer.

Foi um dia de fatos simbólicos. Tão logo a notícia sobre o prejuízo veio a público, Ted Turner, o maior acionista individual, despediu-se da vice-presidência da AOL Time Warner para se dedicar a trabalhos filantrópicos. Era o último sobrevivente do trio que há exatos três anos protagonizara o anúncio do mais surpreendente, visionário e bilionário negócio jamais visto na história da humanidade. Abraçados e sorridentes, Turner, Steve Case, o genial criador da America Online, e Jerry Levin, o chefão da Time Warner, proclamavam, em alto e bom som, o nascimento da AOL Time Warner, um colosso de US$ 170 bilhões, dono de um faturamento de US$ 40 bilhões onde trabalhavam quase 90 mil pessoas.

Mas os números superlativos eram secundários diante do papel histórico reservado ao conglomerado recém-nascido. Sim, porque na saga da maior bolha especulativa do século passado, a AOL Time Warner foi a grande e apoteótica experiência. Ela seria o modelo e a referência para a nova fase da indústria da comunicação. Nela todos os meios de comunicação (da televisão às revistas, dos jornais ao cinema) estariam interligados. A internet seria a porta de entrada para esse mundo maravilhoso e a estrada para nele trafegar. A bolha não havia estourado e o futuro parecia promissor. Por isso, o consultor Dario Dal Piza, ex-presidente do Yankee Group no Brasil, classifica a fusão como ?uma aberração?. ?Não eram dois gigantes se unindo?, diz ele. ?Era um gigante e uma empresa de internet sobrevalorizada. Com o preço real dela vindo à tona, o prejuízo contábil era inevitável.?

O que puxou o valor da empresa para o mundo real foi, em parte, o estouro da bolha da internet apenas dois meses depois do anúncio da fusão. Mas um empurrão decisivo veio justamente dos três figurões que avalizaram a operação. A briga entre a velha economia, representada por Levin, e a nova economia, sob o comando de Case, criou um muro de pedra entre as equipes da AOL e da Time Warner. Dentro dos escritórios a união nunca aconteceu. Levin achava que tinha cedido muito poder a Case, empossado como chairman. Este, por sua vez, via em Levin uma ameaça ao projeto da nova companhia. Turner, dono de um cargo decorativo, criticava publicamente a falta de bons resultados. Foi uma disputa de poder e de egos, e no final saíram todos derrotados. Em dezembro de 2001, Levin renunciou repentinamente. Case também saiu machucado do embate, sobretudo depois que a SEC, o xerife do mercado financeiro americano, abriu investigações sobre as contas da AOL. Case e sua empresa reproduziram no mundo corporativo a lenda de Ícaro, o herói grego que voa pelos céus até cair quando suas asas de cera são derretidas pelo calor do Sol. Considerado um mago da internet desde a criação da AOL, ele viu no grupo Time Warner justamente aquilo que faltava em sua companhia: ativos reais, como jornais e revistas, faturamento crescente e lucros incontestáveis. Em troca, ele daria àquele velho mundo uma porta de entrada para o futuro, a internet. Enfraquecido pelos resultados desastrosos do grupo que ele mesmo concebeu, tomou o caminho de casa há duas semanas.

 

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Steve Case no papel de caçador: vitória sobre Levin, da Time (à esq.), foi fugaz.

  

Turner resistiu alguns dias a mais. Entretanto, não resistiu e colocou um ponto final melancólico em uma trajetória fulgurante. Turner tornou-se um ícone no mundo da comunicação ao transformar uma estação de TV tradicional em um canal de notícias 24 horas. Ele também adquiriu fama por seu estilo falador e por utilizar de vez em quando imagens curiosas ? para expressar seu entusiasmo com a fusão há três anos ele a comparou com ?a primeira noite em que fiz amor?. A explosão de felicidade inicial foi logo substituída por contínuas doses de frustração. Os planos para a fusão o privaram de sua autoridade sobre os negócios que havia criado, sobretudo a CNN. A perda de valor do gigante também corroeu sua participação de 4% no capital. Nos últimos seis meses, começaram os sinais de que sua partida era iminente. Aos poucos sua coleção de pinturas da Guerra Civil Americana foi sendo retirada do 14º andar da sede da CNN em Atlanta.

 

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Steve Case no papel de caça: logo de pois foi abatido por Parsons (à dir.)

 

A cada passo de Case e Turner rumo ao isolamento, o valor da companhia desabava. No momento da fusão, a ação era cotada a US$ 72. Hoje está no patamar de US$ 12. Essa perda de musculatura foi incorporada ao balanço ao longo de 2002, devido à mudança das regras contábeis determinadas pela SEC ? fruto dos escândalos corporativos da Enron e WorldCom. Por isso, o prejuízo é o que os analistas chamam de non-cash phenomenon, o que significa que não envolveu dinheiro real. Em outras palavras, a AOL Time Warner colocou no balanço o valor de mercado de seus ativos, um número bem abaixo do valor contábil registrado até o final de 2001.

As esperanças de sobrevivência para a AOL Time Warner estão nas mãos de Richard Parsons, um executivo de 54 anos formado no setor financeiro americano, que carrega a fama de durão e hábil negociador. Parsons assumiu o posto de CEO há quase nove meses em substituição a Levin. Desde então, ele retirou a companhia de uma complexa joint-venture com a rival Comcast, escalou novos executivos para cargos chaves, sobretudo na área de internet, e discretamente afastou a turma proveniente da AOL. Ganhou a confiança dos investidores e, com a saída de Case, passou a acumular a posição de chairman.

Nada disso parece suficiente para estancar a sangria ? e, por isso, os acionistas estão sedentos por ouvir novidades da boca de Parsons. No mesmo dia em que o prejuízo monstruoso era anunciado, Parsons reuniu uma platéia de analistas e prometeu que 2003 será o ano do reset (recomposição), sem perspectiva de lucros e foco na redução do endividamento de US$ 26,5 bilhões. A meta, disse ele, é abater US$ 2 bilhões da dívida, e colocá-la em um patamar de 2,7 vezes o fluxo de caixa. O ideal seria baixá-la para algo próximo de US$ 20 bilhões, mas nem ele aposta nisso.

Há uma espada pendendo sobre a cabeça de Parsons. Trata-se da ameaça das agências de rating de rebaixar a avaliação do grupo, que já se encontra no limite. Parsons pede paciência até que o programa de redução de custos comece a surtir efeito. Como exemplo desse esforço, ele lembrou a recém-concluída venda dos 8% que detinha na Hughes por US$ 800 milhões. Além disso, a Merrill Lynch foi contratada para localizar interessados em adquirir a divisão de livros do conglomerado, cujas vendas anuais atingem US$ 320 milhões. Negócios não essenciais, como os times de beisebol, basquete e hóquei, podem ser passados adiante. As participações em alguns canais de TV por assinatura também poderão ter o mesmo destino. Em última instância até mesmo um pedaço do capital do grupo poderia ser oferecido a um novo investidor.

A mais fantástica alternativa, porém, passou a circular com força na semana passada. Seria uma compra da unidade de internet pela Microsoft. Isso poderia render US$ 9 bilhões para a AOL Time Warner e daria para Bill Gates o acesso a conteúdo e à rede de usuários que faltam à Microsoft. Ninguém confirmou a informação, mas que ela faria sentido, faria…

 

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Briga de poder e egos: o dono da CNN, Ted Turner, afastado do centro das decisões, criticava publicamente a falta de bons resultados

 

Coincidência irônica, no mesmo momento em que Parsons anunciava o prejuízo histórico da matriz, o braço latino-americano recebia uma notícia que lhe dava fôlego extra. Na manhã de quinta-feira 30, a AOLA reganhou a licença que lhe permite continuar operando na Nasdaq. A empresa quase foi espirrada para fora da bolsa eletrônica porque o número de ações negociadas e o valor dos papéis não atingiam o mínimo exigido. ?No mesmo dia que fomos notificados, enviamos um plano de socorro à Nasdaq?, conta Monique Skruzny, vice-presidente de relações com investidores da AOL Latin America. A proposta era se manter no pregão com valor acima de US$ 35 milhões por um período mínimo de dez dias. O objetivo foi atingido. Como isso foi feito? Os controladores da AOLA, a AOL Inc. e o Grupo Cisneros, converteram suas participações em ações comuns. Isso aumentou o número de papéis negociados e deu um sinal de que os investidores continuavam apoiando a companhia. Por outro lado, os acionistas perderam alguns direitos ao trocar essas ações. Entre eles, abriram mão de dividendos. Ou seja, mais uma vez, financiaram a mal-sucedida operação de internet da companhia.

?O prejuízo da AOL Time Warner é a sirene que faltava para o mercado brasileiro de provedores de acesso?, afirma o consultor Dal Piza. ?A convergência entre provedores e empresas de conteúdo, com certeza, ocorrerá um dia. Mas o problema é descobrir qual o modelo de negócios ideal para isso.? Quando desembarcou no Brasil em novembro de 1999, as expectativas sobre a AOLA eram grandes. A empresa prometia investir US$ 200 milhões por aqui. A América Latina, segundo Steve Case, tinha potencial para se tornar o segundo maior mercado do planeta em negócios virtuais. Uma das primeiras iniciativas dos executivos americanos foi tentar comprar o Universo Online, maior e mais antigo provedor do País. A operação só não se concretizou porque os executivos do UOL recusaram a oferta. Em maio de 2000, a AOLA fechou uma parceria com o Banco Itaú, na qual se tornaria o provedor preferencial de acesso aos clientes. Em troca, o Itaú levaria 12% das ações. O banco se comprometeu a colocar 450 mil assinantes pagos no provedor até 2004. Do contrário, pagaria uma multa de US$ 185 milhões. Mesmo assim, o negócio parecia atrativo. No País, a AOLA possuía apenas 103 mil assinantes, enquanto que o Itaú oferecia livre acesso a uma carteira de 10 milhões de clientes. Bastava que 10% dos correntistas adotassem a AOLA para que ela se posicionasse entre os maiores provedores do País na época.

A companhia também reservou uma verba anual de marketing de US$ 30 milhões e adotou a mesma tática que empregara em todo o mundo: a distribuição de CDs a granel. Mas acabou cometendo algumas trapalhadas. No início, ou os CDs danificavam o computador do usuário ou continham apenas músicas de um grupo de pagode. ?Os brasileiros estavam começando a lidar com a rede. Para muitos, esse erro era imperdoável?, diz Daniel Domeneghetti, da e-Consulting. No auge dos gastos de marketing, a companhia comprou o patrocínio exclusivo do festival Rock in Rio 3, em janeiro de 2001, mas foi pouco notada pelo público.

Sem conseguir arrebanhar um número de clientes expressivo, os presidentes foram se sucedendo na cadeira com velocidade. Foram três presidentes em pouco mais de um ano. Os headhunters da Spencer Stuart suaram para conseguir um candidato ao cargo no Brasil. Em maio de 2001, a empresa anunciou a escolha de Carlos Trosli, vindo da Quaker, que precisou longo treinamento para se inteirar das peculiaridades do mundo tecnológico.

Tantas idas e vindas acabaram por desagradar o parceiro local. Em agosto último, o presidente do Banco Itaú Roberto Setúbal informou em uma carta à Securities Exchange Comission que estava se retirando do conselho da AOLA. Depois de muita negociação, ele também conseguiu desfazer o acordo. Não teve que pagar multa à AOLA nem cumprir as cotas de captação de novos assinantes.

A AOLA diz que tem 1,2 milhão de assinantes em toda a região entre pagantes e inadimplentes. Um número levemente superior ao total de correntistas que acessavam o Itaú na internet dois anos atrás (hoje, o total de correntistas que acessam o banco pela internet é de 2,7 milhões). Fontes do mercado, porém, dão conta de que apenas 25% dos usuários pagam mensalidades. Para comparar, o concorrente UOL tem uma carteira de 1,5 milhão de assinantes. Há alguns meses, Charles Herington, executivo responsável pela América Latina, afirmou que tem dinheiro em caixa para mais um ano de operação e que não iria sair da região antes desse prazo. É possível que tenha de usar esse capital para ajudar a cobrir o prejuízo da matriz. ?Eles podem tentar mais uma ou duas campanhas de marketing. Depois, arrumam as malas?, arrisca um analista. Também comenta-se que a filial brasileira poderia abrir seu conteúdo, contrariando o modelo de negócios adotado ao longo de toda sua existência pela matriz. A revitalização da parceria com o Itaú e um acordo com o McDonald?s estão sendo negociados. Só resta saber se a paciência dos investidores não se esgotará antes de que isso aconteça ? nos Estados Unidos nem mesmo a mística em torno de Case e Turner lhes deu a sobrevida que a filial brasileira pretende ter.

Com Juliana Simão e Duda Teixeira