O inusitado do agora não me parece estar no fenômeno da pandemia, tampouco na sua letalidade, mas na forma como o vivenciamos. Já o inédito está na dimensão global da peste e na quase obrigatoriedade de acompanhar cada um dos seus movimentos em tempo real.

Tudo tem acontecido de forma tão rápida que se torna quase impossível elaborar uma análise lúcida e consistente do atual estado das coisas. E se assim se configura a situação no presente, imagine no que se refere ao futuro. O que me parece mais adequado neste momento é analisar o que nos revela o agora; o que é possível identificar em termos de contradições humanas e sociais que se tornam explícitas, para só então elaborarmos o que tal identificação pode desencadear nos tempos vindouros.

Conhecida como um dos cavaleiros do apocalipse, a peste parece ter o poder de revelar não só as pessoas, mas as coisas – e principalmente as dinâmicas sociais – como elas de fato o são.

Apesar de todo o desconcerto e incerteza provocados pela pandemia, a crise tem servido para descortinar crenças, valores e realidades que agora mostram de maneira evidente as contradições do mundo. Se por um lado situações como esta revelam virtudes antes desconhecidas, por outro também aclaram vícios, como a ganância, a cupidez, o descaso, o egoísmo e o desprezo pelo próximo, que estavam apenas disfarçados. É a desumanização em tempos de convulsão.

Convém mencionar, ainda, que a atual crise também evidencia fatos desconcertantes, impensáveis em outros contextos. O que dizer da disponibilização de trilhões para salvar empresas e ajudar milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade? Parece que em momentos de excepcionalidade e de ameaça à vida e ao humanismo, as leis de mercado podem ser suspensas. Levando em consideração que mesmo em casos tão extremos os governos talvez não optassem por um gesto suicida, é inevitável se perguntar onde estavam esses recursos e por que apenas agora, como por mágica, eles se tornaram disponíveis. Seria a “humanização do capitalismo”?

Todas essas revelações provocam uma sensação de irrealidade. Paradoxalmente, escancaram as más disfarçadas contradições e mazelas sociais, tanto no âmbito das ideias e práticas institucionais, quanto nos valores e atitudes dos indivíduos.

Ao fim desta crise, levaremos em conta as revelações que tivemos para postular uma nova realidade, como nos ensina Dostoiévski n’O Sonho do Homem Ridículo, ou nos esqueceremos delas, preferindo atribuí-las à irracionalidade caprichosa do nosso inconsciente? Despertaremos para transformar a realidade ou continuaremos fingindo que dormimos, acreditando que o pesadelo se transformará em sonho bom, por força de alguma magia onírica advinda da política?

Albert Camus, em A Peste, leva-nos a concluir que a verdadeira doença não é a transmitida por vírus ou bactérias, mas a que ocultamos e cultivamos em nossos corações: a ignorância e a indiferença em relação ao outro.

Quantas crises ainda serão necessárias para acordarmos para essa realidade?

Dante Gallian é doutor em História pela USP, professor da Unifesp