Por Lisandra Paraguassu

BRASÍLIA (Reuters) – Os desenvolvedores da vacina russa Sputnik V enfim conquistaram o acesso ao mercado brasileiro na semana passada, mas a autorização dada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que sejam importadas menos de 1 milhão de doses e com diversos requisitos para uso foi tão restritiva que alguns a comparam a uma repetição de testes finais para uso do imunizante.

A decisão da última sexta-feira da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que estava sob pressão dos governadores e do Supremo Tribunal Federal após rejeitar a vacina russa contra a Covid-19 em abril, incluiu cerca de 20 restrições rigorosas para aplicação da vacina.

Essas restrições atenuaram o impacto da aprovação e repetem uma recepção cautelosa da vacina russa entre muitos reguladores ocidentais, incluindo a Agência Europeia de Medicamentos e a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), que ainda não deram seu aval à Sputnik.

“A impressão que deu é que aprovaram por conta da pressão, dentro de limites que eles tinham. É bom, pelo menos não mata de vez as chances de ter a vacina e se tudo der certo, é mais uma que teremos”, disse à Reuters o imunologista e pesquisador da Universidade de São Paulo Jorge Kalil.

Seis Estados brasileiros poderão importar, por enquanto, vacinas suficientes para imunizar 1% de sua população –longe dos 37 milhões de vacinas encomendadas– e sua aplicação será restrita a adultos em perfeitas condições de saúde.

Com mais de 476 mil mortes causadas pela Covid-19 e um programa de vacinação que ainda anda aos tropeços, os governadores do chamado Consórcio Nordeste foram à luta por vacinas por conta própria, para além do Programa Nacional de Imunização. Mesmo com problemas, a russa Sputnik V era a única disponível para entrega imediata no mercado internacional.

A primeira negativa foi um baque, mas os governadores mantiveram a pressão.

Uma fonte que acompanha o processo dentro da Anvisa admite que o cenário desolador da pandemia no Brasil, com o risco iminente de uma terceira onda com milhares de mortos por dia, pesou na decisão dos diretores da agência.

“Existe sim uma mudança no quadro de documentos recebidos e há um recrudescimento no quadro da pandemia no país. Então foi uma combinação de fatores”, disse a fonte. “Foi uma decisão muito difícil. Estava todo mundo preocupado em construir uma decisão que levasse em conta esses vários fatores de incerteza e fosse exequível ao mesmo tempo. Mas acredito que chegamos em um bom meio termo.”

Antes de ser usada no Brasil, a vacina russa terá que ser analisada pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), ligado à Fundação Oswaldo Cruz, que irá atestar que todos os lotes que chegarem ao país estão dentro dos níveis de qualidade aceitáveis pela Anvisa.

Depois disso, os Estados onde a vacina será usada terão que montar um sistema de acompanhamento de cada pessoa vacinada e relatar em até 24 horas qualquer evento adverso relativo a Sputnik V, uma maneira de compensar o que a Anvisa viu como falta de dados suficientes nos estudos russos. A vacinação também será seguida por testes para verificar a sua eficácia nos brasileiros.

“Basicamente o que se vai fazer é quase reproduzir um estudo de fase três no Brasil. Vamos ter que fazer o trabalho que os russos não fizeram, todo o estudo de fármaco-vigilância aqui”, disse à Reuters Gonzalo Vecina, ex-presidente da Anvisa.

Questionado sobre as condições de aprovação, o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF), que comercializa a vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Moscou, não respondeu imediatamente.

O RDIF declarou na sexta-feira, por meio do Twitter da Sputnik V, que “respondeu integralmente a todas as questões da Anvisa sobre eficácia e segurança da vacina”.

No entanto, a diretoria da Anvisa enfatizou durante as deliberações de sexta-feira que não concederia uma aprovação completa devido a preocupações persistentes sobre dados incompletos de estudo e informações inconsistentes sobre qualidade e segurança do imunizante.

“Ainda há inconsistências, mas em ambiente controlado se pode levar adiante. Por isso colocamos as restrições, mas é possível trabalhar”, disse a fonte que acompanha o processo na Anvisa.

Os números iniciais autorizados pela Anvisa terão pouco impacto na melhoria do cenário de vacinação no país, com pouco menos de 1 milhão de doses autorizadas a serem aplicadas em apenas seis Estados.

Ainda assim, os governadores do Consórcio Nordeste comemoraram a decisão da agência. Outros três Estados da região que ainda não tinham reapresentado os pedidos de importação negados em abril, já trabalham para fazê-lo, assim como Estados da região Norte que também negociam a Sputnik. A Anvisa deverá ampliar a estes a aprovação de importação com as mesmas regras restritas.

Os governadores contam com a promessa da Anvisa de que com resultados positivos, a Sputnik V possa ser liberada para importação total. Esse processo, no entanto, ainda deve demorar.

“Até que isso tudo aconteça (medidas para cumprir as exigências da Anvisa) vai levar uns dois meses ainda para que se possa aplicar essa vacina. No final, isso acaba trazendo uma distensão”, disse a fonte. “Nesse meio tempo muitos documentos ainda devem chegar e até lá a EMA e a OMS devem se pronunciar. Uma decisão desses órgãos vai ter repercussão imediata aqui, seja para um lado ou para outro.”

Entre as restrições está a previsão de suspensão imediata da aplicação da vacina no caso de uma negativa de aprovação por parte da OMS.

A assessoria de imprensa da Anvisa não respondeu de imediato a perguntas sobre pressões políticas ou sobre o cronograma da vacina.

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