A mobilização necessária para o atendimento de casos de covid-19 também tem prejudicado o acompanhamento de pacientes atendidos pelo Programa Saúde da Família. Uma das principais atribuições municipais na Atenção Primária, o PSF é mais resolutivo e ajuda ainda a desafogar as salas de emergências, direcionando o atendimento de urgência a quem realmente precisa.

Criado em 1994, o programa tem oficialmente uma cobertura atual de 60% dos domicílios brasileiros, um aumento em relação a 2013, quando esse porcentual era de 53%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas nem todos os cadastrados são atendidos. Do total de residências participantes do PSF há um ano, só 38,4% receberam visita mensal de agente comunitário.

Segundo o especialista em saúde pública Mário Scheffer, a baixa qualificação de parte dos profissionais – muitos deles recém-formados e sem especialização em medicina de família e comunidade – faz ainda com que a rotatividade seja alta.

“É preciso discernir Atenção Primária de atenção precária. A pandemia revelou a falta de estrutura da maior parte das unidades do País, além de baixa articulação com serviços especializados e falta de médicos”, diz o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.

Durante a pandemia, as famílias orientadas pelas equipes de saúde da família puderam conhecer mais sobre os sintomas, reduzindo o risco de contágio. Prefeitos que priorizam a Atenção Primária conseguem diagnóstico precoce de cânceres, de problemas cardíacos e boa parte dos casos de saúde mental. “E também conduzir ações rotineiras de vigilância epidemiológica, inclusive testagem e controle de casos positivos, além de vacinação.”

Vacina

Ela ainda não está disponível no Brasil, mas quando um dos modelos em teste receber aval da Anvisa para ser aplicado em território nacional, milhões de doses de vacina contra a covid-19 vão atender a população nas redes públicas municipais. Apesar de a lei que criou o SUS afirmar que as competências são concorrentes entre os entes da Federação, são os municípios que, historicamente, têm assumido essa atribuição.

Isso quer dizer que os prefeitos e prefeitas eleitos em novembro terão não só a responsabilidade de organizar esse atendimento como convencer a população a aderir à campanha. Vale ressaltar que ainda não há uma determinação judicial que obrigue adultos a se vacinarem.

O presidente Jair Bolsonaro tem declarado publicamente que não pode obrigar os cidadãos a se protegerem da covid19, mesmo se tratando de uma doença contagiosa. O desencontro de informações possibilitado pelo presidente – que já classificou a doença como uma “gripezinha” – vai exigir dos prefeitos e secretários municipais de saúde liderança e credibilidade durante o processo.

Professora da Uerj, Ligia Bahia destaca que a vacina precisará estar à disposição da população no maior número possível de locais. E as prefeituras terão de convencer as pessoas a se vacinarem. Por isso, segundo ela, os futuros secretários e secretárias de Saúde precisarão ser líderes. “A saúde não pode ser moeda de troca política, não pode entrar na barganha com os partidos”, diz.

Como lidar com as Organizações Sociais será outro desafio a ser enfrentado por prefeitos

eleitos em capitais e cidades grandes, onde esse tipo de gestão só cresce. Fiscalizar o atendimento prestado, exigir não só o cumprimento de tabelas de plantão, mas a contratação de médicos de carga horária exclusiva fazem parte do processo de melhoria da saúde.

No Rio, foi um contrato não executado por uma Organização Social (OS) que levou ao afastamento temporário do governador Wilson Witzel (PSC) do cargo, hoje alvo de um processo de impeachment.

Financiamento

Manter o volume de gastos da saúde será, se não o maior desafio a ser enfrentado pelos eleitos e eleitas, o mais difícil de ser alcançado. A Constituição determina que os municípios apliquem ao menos 15% de sua receita na saúde pública. Nas capitais, isso nem sempre é o suficiente. São Paulo, por exemplo, aplicou 18,6% em 2019.

“A pressão por gastos na saúde vai continuar mesmo diante das restrições orçamentárias, afetando todas as prefeituras. E não apenas por motivos além da covid-19, mas pela própria doença, que não vai desaparecer do dia pra noite”, diz a economista Ana Carla Abrão, que defende, para municípios menores, a associação em consórcios para garantir atendimento a seus moradores.

“Essa é uma saída que funciona, pois permite um uso mais eficiente dos recursos. Os consórcios possibilitam a lidarmos com o fato de que no Brasil os municípios foram se multiplicando sem necessariamente ter recursos para isso”, afirma.

A pesquisadora Márcia Fausto, da Fiocruz, concorda. “Município não tem que ter tudo mesmo.

Quando se pensa assim o resultado é que cada um faz pouco e todos não fazem muito. Mas isso é consequência das interferências políticas e partidárias. Os prefeitos querem ter o seu próprio posto de saúde, hospital. Mesmo que a população não precise”, diz Márcia.

Consulta online dá mais acesso

Apontada por especialistas como uma ferramenta capaz de melhorar a qualidade do serviço prestado pela rede pública, a telemedicina ainda é incipiente no Brasil. Segundo dados da Fiocruz, 43% das Unidades Básicas de Saúde do País não utilizam a Telessaúde, programa do Ministério da Saúde dedicado a ofertar de forma online conteúdos educacionais, consultorias, diagnóstico e monitoramento.

Entre os empecilhos apresentados pelas UBSs estão problemas que vão desde dificuldades de conectividade, como falta de internet ou rede lenta, ausência de treinamento e de infraestrutura, incluindo computadores insuficientes e salas inadequadas. Em 2017, 48% das UBSs nem sequer tinham uma linha de telefone.

“Ter acesso à telemedicina é mais fundamental ainda em locais remotos, onde é muito difícil chegar de forma presencial. A tecnologia favorece a qualidade do cuidado com o paciente, seja ajudando no diagnóstico ou fornecendo uma segunda opinião sobre tratamento. E, a médio prazo, ainda pode reduzir custos”, diz a pesquisadora Márcia Fausto, da Fiocruz.

Mesmo na maior cidade do País, o uso da tecnologia ainda engatinha na saúde. Em uma sala pequena, com apenas três computadores, uma equipe de 15 médicos de diferentes especialidades se reveza para ajudar remotamente 600 profissionais de UBSs das zonas norte e oeste de São Paulo. Pioneiro, o projeto foi criado em julho do ano passado e hoje soma pouco mais de 1,3 mil atendimentos.

“A ideia surgiu a partir de dificuldades que percebemos em relação à contratação de especialistas, demora nas consultas e faltas de pacientes por conta de grandes deslocamentos”, conta o pneumologista João Ladislau Rosa, diretor técnico da Rede Assistencial da Supervisão Técnica de Saúde (Rasts) Vila Maria/Vila Guilherme.

O funcionamento é simples: toda vez que um profissional tem dúvidas sobre o diagnóstico do paciente que está atendendo, pode preencher um formulário eletrônico e solicitar ajuda a um especialista. A “ajuda” se dá então por meio de uma conversa, na presença ou não do paciente. E pode ainda ser realizada por videoconferência ou mesmo a partir de um chat que permite não só a troca de mensagens, mas também o envio de fotos e exames.

“Com a telemedicina, você aumenta a resolutividade da ponta duas vezes. Primeiro, quando orienta o médico e resolve o problema do paciente ali no atendimento, evitando que ele enfrente filas para consultas. Segundo, porque capacita aquele profissional, que depois de algumas dúvidas vai saber resolver o caso sozinho”, explica a pneumologista Silvia Rondina Mateus, que presta atendimentos e é assessora técnica da rede. Outro benefício é a identificação de casos urgentes já na UBS.

Mas se São Paulo enfrenta desafios para a implementação da telemedicina, que dirá o restante do País. O sistema exige treinamento dos profissionais e disponibilização de computadores em todos os consultórios, o que ainda não é realidade, segundo Ladislau. A experiência na capital mostra é que os resultados valem a pena.

“Como há uma qualificação do atendimento, há uma necessidade menor de exames de alta complexidade, o que já reduz os nossos custos”, diz Silvia. Além disso, ela afirma que a resolução de casos na UBS evita idas desnecessárias ao pronto-socorro e internações.

Segundo Márcia Fausto, se a pandemia fez com que a sociedade valorizasse novamente o SUS, ela também mostrou que investir em telemedicina é investir na qualidade do sistema. “O atendimento presencial nunca será subjugado, é claro, mas a tecnologia pode favorecer em todos os sentidos.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.