Gabriel Liguori voltou ao hospital após sete dias de seu nascimento para nunca mais se afastar de uma unidade de saúde. Por dois motivos que estão em seu coração. Primeiro, para tratar de uma cardiopatia congênita. Segundo, porque escolheu ser médico cardiovascular. Hoje, leva dentro do peito a ambição de ser a primeira pessoa no mundo a criar um coração artificial em uma bioimpressora 3D, por meio da startup TissueLabs, que fundou com o engenheiro de computação Emerson Moretto. “Quando a gente chegar lá, a empresa atingiu seu objetivo. Mas estamos longe. Igual Elon Musk [dono da Space X] indo para Marte”, disse Liguori à DINHEIRO, por videochamada da Suíça, onde vai ficar por dois meses em preparação para a expansão da sua biotech, criada há dois anos.

Mas não dá para falar do nascimento da startup sem falar do início de vida de Liguori. Aos 2 anos, em 1991, enfrentou uma delicada cirurgia para corrigir seu problema cardíaco. A operação foi feita no Incor, o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Continuou indo ao hospital com muita frequência, para continuidade do tratamento, consultas e exames. Aos 4 anos já sabia o que queria: ser médico. “Queria fazer para outras crianças o que eles estavam fazendo por mim.” O menino cresceu, estudou e conseguiu entrar na Faculdade de Medicina da USP, aquela mesma universidade responsável pelo Incor, onde passou boa parte de sua infância e adolescência. Formou-se em 2014 e especializou-se em cirurgia torácica e cardiovascular pediátrica. Mas o despertar pela Tissue nasce ao assistir, num congresso, à apresentação de uma doutora holandesa sobre a fabricação de vasos sanguíneos em laboratório. “Vi que era o futuro da medicina. Em vez de tentar consertar órgão que não vai ser regenerado, substitui por um novo”, disse Liguori.

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“Queria fazer para outras crianças o que eles (médicos) estavam fazendo por mim” Gabriel Liguori, fundador e CEO da Tissuelabs.

O médico, então, arrumou as malas e foi fazer doutorado na Universidade de Groningen, fundada em 1614, na Holanda. Com 406 anos, é tão tradicional quanto inovadora, listada entre as 100 melhores do mundo em várias listas influentes. Sua tese foi baseada nas novas abordagens de engenharia de tecidos para substituição vascular. Justamente uma das vertentes de negócio da TissueLabs, que criou em 2019 assim que voltou ao Brasil. Pela atuação na academia e na biotech, ele acaba de ser apontado pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, na sigla em inglês) como um dos cinco brasileiros empreendedores com menos de 35 anos mais inovadores e capazes de transformar seu mercado na América Latina – Innovators Under 35 Latam 2020.

MISSÃO Esse trabalho de pesquisa e desenvolvimento objetiva a fabricação de órgãos 3D em bioimpressora e tem em sua missão final a construção do coração artificial, o que deve acontecer em um período estimado por ele entre 10 e 15 anos. Não há legislação para implante desses órgãos e tecidos artificiais em humanos ainda. Edson Moretto, sócio de Liguori, afirma que tudo ainda é muito transformador. Mas inevitável. “Cedo ou tarde teremos de enfrentar esse debate”, disse Moretto.

PESQUISA EM ÓRBITA Cientistas da Nasa fazem testes em micriogravidade para avaliar o comportamento dos tecidos celulares no espaço. (Crédito:AFP PHOTO)

Há um caminho longo a ser percorrido, mas os resultados já aparecem. Desde sua criação, a startup incubada no Cietec (Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia) da USP já recebeu aportes que somam R$ 3,6 milhões. Foram R$ 2,1 milhões de incentivos públicos para avanços em pesquisas e R$ 1,5 milhão para manter seus 13 colaboradores e acelerar no seu outro modelo de negócio, de venda de matriz extracelular para a comunidade acadêmica científica e pesquisadores da indústria privada. Os cientistas pegam esse material e misturam a células-tronco do órgão que desejam formar. Depois de um processo de maturação, forma-se o elemento real. “Somos os únicos no mundo a produzir 11 tipos de matrizes”, afirmou Gabriel Liguori. As matrizes extracelulares da startup brasileira também são usadas para criar tecidos e órgãos para testes de medicamentos. Em vez de aplicar possíveis remédios diretamente em humanos, as drogas são provadas nesses biomateriais.

Há ainda uma procura que não estava no plano inicial na TissueLabs, na área alimentícia, para estudos de produção de carne em laboratório. Um grupo mexicano, mantido sob sigilo, adquiriu a matriz extracelular da biotech. “Não era nossa expectativa, foi grande surpresa”, disse Liguori. Outra utilidade é na pesquisa que observa o comportamento de tecidos celulares no espaço, realizada por uma empresa americana que presta serviço para a Nasa.

IMPRESSORA A bioimpressora 3D TissueStart é outro produto comercializado pela biotech. O equipamento, juntamente do software próprio, é vendido em torno de R$ 30 mil reais – com desconto para cientistas brasileiros. É semelhante às impressoras 3D convencionais, porém, é projetada para permitir a extrusão do que os cientistas chamam de ‘biotintas’, combinações de hidrogéis com células, em altíssima resolução. Se houver muita pressão da impressora na seringa que contém a matriz extracelular, as células morrem. É esse equipamento que vai levar aquela criança que nasceu com problema cardíaco congênito a fazer história a ciência e a emoção, com a razão e o coração.