Nos idos de 2015, ao se licenciar da presidência do conselho de administração da Petrobras, posto que acabaria deixando em definitivo dois meses depois, o executivo Murilo Ferreira fez um diagnóstico sinistro da estatal a um amigo. “A Petrobras não é do acionista majoritário nem do acionista minoritário – ela é da corporação”, disse Ferreira, que também era presidente da Vale, de acordo com o site Brazil Journal. “Se eu fosse morador de Nilópolis, São Gonçalo ou da Baixada (regiões pobres do Rio, onde se situa a sede da empresa), ficaria revoltado com os privilégios que os funcionários da Petrobras conseguiram garantir para si mesmos.”

Desolado com a sua impotência para mudar a situação, ele fechou o desabafo traçando um paralelo entre a Vale, privatizada em 1997, e a Petrobras, símbolo maior do gigantismo do Estado no País: “Na Vale, consegui tirar os carros dos diretores. Na Petrobras, não é possível diminuir qualquer coisa que a corporação não queira.”

Passados quase sete anos do diagnóstico feito por Ferreira, o quadro continua praticamente o mesmo. Desde que ele deixou a companhia, ninguém conseguiu mexer para valer nas benesses do pessoal. Quem tentou, segundo ex-gestores da empresa, tornou-se alvo de ameaças e de campanhas difamatórias promovidas pela tropa de choque da turma.

‘Longe Demais’

Os privilégios, é certo, vêm se acumulando desde a criação da Petrobras, em 1953, no governo Vargas. Mas, conforme relatos feitos ao Estadão, foi durante os governos Lula e Dilma, quando sindicalistas assumiram o comando da área de recursos humanos, que a situação degringolou de vez. “Sempre houve privilégios na Petrobras, mas as concessões feitas naquele período agravaram muito o problema”, afirma um ex-executivo da estatal.

Os salários, que já eram inflados, também engordaram ainda mais. Entre 2003 e 2015, de acordo com dados dos sindicatos dos petroleiros, os funcionários da Petrobras tiveram um ganho real (já descontada a inflação) de 34%. Mesmo com a perda de 5,6% ocorrida nos governos Temer e Bolsonaro, ainda acumulam um aumento real de 26,4% (veja o gráfico). “Acho razoável que haja uma certa liberalidade numa grande empresa”, diz Almir Pazzianotto, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e ex-ministro do Trabalho. “Agora, na Petrobras, eles foram longe demais.”

Pelos cálculos de um ex-gestor de RH da companhia, o custo das “jabuticabas” – como costuma chamar os privilégios que só os funcionários da estatal têm – alcança cerca de R$ 7 bilhões por ano, o equivalente a um terço do gasto total de pessoal, de R$ 21,7 bilhões em 2020, incluindo os encargos sociais e tributários.

‘Coisa de Louco’

As “jabuticabas” fazem tanta diferença no bolso dos petroleiros que, para mantê-las no Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) 2020-2022, ainda em vigor, os sindicatos aceitaram o “congelamento” dos salários por um ano, proposto pela empresa.

Os funcionários da Petrobras recebem, por exemplo, 100% a mais pelas horas extras, em vez do adicional de 50%, previsto na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Enquanto os demais trabalhadores ganham um adicional de 33,33% nas férias, eles embolsam 100% a mais. Recebem também um reembolso de até 90% dos gastos com matrículas e mensalidades escolares de filhos de até 18 anos e uma “ajuda de custo” para assistência alimentar de R$ 1.254 por mês, mais R$ 192 de vale-refeição.

Nas plataformas da empresa, a jornada funciona no esquema de 14 dias de trabalho por 21 dias de folga, em vez dos 14 dias de trabalho por 14 de folga praticados pela indústria de petróleo mundo afora, segundo um ex-dirigente da empresa.

O sistema é tão light, em sua avaliação, que há funcionários de plataformas que moram nos Estados Unidos, em Portugal e em outros países. Chegam ao aeroporto do Galeão, no Rio, vão direto para o heliporto usado pela Petrobras em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade, passam duas semanas em alto mar e depois fazem o caminho inverso. Só voltam a trabalhar três semanas depois. Como não moram no Rio, ainda têm um benefício adicional: o tempo gasto na viagem de ida e volta de helicóptero conta como se estivessem trabalhando.

“É uma chuva de privilégios sem precedentes no setor privado”, diz Paulo Uebel, ex-secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia. “O acordo coletivo da Petrobras é uma coisa de louco, diferente de tudo o que eu conheço”, afirma Pazzianotto.

Mesmo se perdessem os “penduricalhos”, os petroleiros não poderiam reclamar da vida. Pesquisas encomendadas pela Petrobras apontam que seus funcionários ganham de duas a três vezes mais do que a média paga no mercado. Como apurou o Estadão, um “inspetor de segurança”, responsável pela proteção das portarias, recebe de R$ 7 mil a R$ 8 mil por mês, enquanto no mercado a média para o cargo gira em torno de R$ 2,5 mil. Um técnico de operação, que trabalha em refinarias, recebe em média R$ 20 mil mensais, enquanto o ganho no setor privado não passa de R$ 7 mil.

Retificação

Nas posições de nível superior, como engenheiro, geólogo e psicólogo, a remuneração média é de R$ 25 mil por mês, podendo chegar a R$ 40 mil, conforme o tempo de serviço do funcionário, enquanto no setor privado a média fica ao redor de R$ 12 mil.

Um levantamento divulgado recentemente pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest), vinculada ao Ministério da Economia, mostrou que, na média, a remuneração dos funcionários da Petrobras atingiu R$ 25.164 por mês em 2020. A maior remuneração mensal foi de R$ 145,2 mil e a menor, de R$ 1,5 mil. Pelo estudo, que incluiu as 46 estatais controladas pela União, o ganho médio na Petrobras só foi menor que o do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), onde chegou a R$ 31 mil mensais.

Apesar de os dados divulgados pela Sest terem sido fornecidos pela própria Petrobras, a empresa agora informa que a remuneração média em 2020 ficou em R$ 18,6 mil por mês, enquanto a maior foi de R$ 97,7 mil, e a menor, de R$ 3,3 mil. Mesmo que a retificação seja procedente, não altera muito o quadro. Em vez de ocupar o segundo lugar na lista das maiores remunerações das estatais, a Petrobras passaria para a terceira posição, atrás também da Embrapa, onde o ganho médio foi de R$ 20,2 mil por mês em 2020.

Monopólio

Na visão de Paulo Uebel, a situação chegou a esse ponto porque a Petrobras detém o monopólio no setor de fato, embora não de direito, já que a “reserva de mercado” que a favorecia caiu oficialmente em 1997. Isso, segundo ele, dá um poder enorme para os sindicatos e favorece a realização de greves com enorme impacto na vida dos cidadãos e das empresas. Uebel é favorável à privatização da Petrobras, combatida de forma feroz pelos sindicatos, mas pondera que, enquanto ela não vier, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) deveria limitar sua participação de mercado, nas diferentes áreas em que atua, a no máximo 60%. “É preciso quebrar o monopólio não só de direito, mas de fato”, afirma. “Só assim será possível reduzir a força da corporação.”

De acordo com Uebel, o quadro atual se deve também às decisões da Justiça do Trabalho, que garantem estabilidade no emprego aos funcionários de estatais, apesar de eles serem contratados pela CLT e poderem negociar aumentos salariais e benefícios por meio de acordo coletivo. “No poder público, isso não existe: ou você tem estabilidade e só pode criar benefícios e definir reajustes salariais por meio de lei ou não tem estabilidade e aí pode negociar tudo por meio de acordo coletivo.”

Uma saída, para Uebel, seria realizar uma reforma administrativa que incluísse o corte dos privilégios existentes nas estatais, sujeitando seus funcionários às mesmas regras e aos mesmos princípios da administração pública direta.

Pazzianotto sugere que a Petrobras contrate “gente de fora” para conduzir as negociações trabalhistas com os sindicatos. “É uma forma de evitar possível conflito de interesses por parte de advogados da empresa, que se beneficiam do acordo coletivo ou de uma decisão favorável aos trabalhadores na Justiça.”

Preço dos Combustíveis

Os sindicatos rejeitam, obviamente, a percepção de que os benefícios recebidos pelos funcionários sejam “privilégios”. “A CLT é um piso”, diz o presidente do Sindipetro de São José dos Campos (SP), Rafael Prado, secretário de comunicação da FNP (Federação Nacional dos Petroleiros. “Isso não quer dizer que não seja possível negociar um acordo coletivo melhor.”

Para Prado, os altos lucros da Petrobras justificariam os benefícios e salários recebidos pelos funcionários. “Isso precisa ser encarado dentro da realidade do setor de petróleo e gás. Como ele tem uma rentabilidade muito superior à média da economia, paga salários melhores”, afirma. “Isso significa que parte da riqueza toda gerada no setor fica com os trabalhadores.”

A questão é que, independentemente dos fartos benefícios e salários recebidos por seus funcionários, a Petrobras já lhes concede participação nos lucros. Oferece também um programa de bonificação baseado no desempenho individual e coletivo, que é outra forma de reconhecer o papel dos trabalhadores no negócio. “A fatia que fica com os trabalhadores é ínfima perto do lucro que eles produzem.”

Com os preços dos combustíveis na estratosfera, a tentação de atribuir o problema aos privilégios e à remuneração generosa dos petroleiros é grande. Mas não dá para dizer, segundo ex-gestores da Petrobras, que o impacto nos preços seja significativo. O que se pode afirmar é que isso afeta a eficiência e a produtividade, assim como a capacidade de investimento e de pagamento de dividendos aos acionistas, inclusive a própria União. “Embora o custo de extração seja muito baixo, há uma estrutura pesada, que é muito cara. O custo de refino também é muito alto por causa disso”, diz um ex-executivo da empresa. Não é pouca coisa. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.