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“Há racionamento caótico em alguns setores. Leva quem chega primeiro”

 

 

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“Maílson diz que a CPMF é uma desgraça, um mal necessário. Está errado”

 

 

DINHEIRO – A recente divulgação sobre a taxa de expansão do PIB no segundo trimestre trouxe à tona a polêmica em torno dos riscos que o atual crescimento econômico traz ao processo de redução na taxa de juros e de controle inflacionário. Essa discussão faz sentido?
CELSO MARTONE – Faz muito sentido. Na verdade, acho até que esse debate já deveria estar num nível de maturação muito maior. Há um aquecimento muito forte da demanda interna, com um crescimento no consumo em patamares elevados, e não só no segmento de alimentos, mas também no setor eletroeletrônico e automobilístico, com expansões muito acima até do que se imaginava. E esse crescimento já acontece em bases fortes, porque tivemos um ano de 2006 bem aquecido. Essa expansão preocupa, e preocupa muito. Ela evidencia os riscos de gargalos e pode dar fôlego a um processo inflacionário em outros segmentos. Não acho que essa história de subida dos preços é só um efeito agrícola, com a inflação do tomate, do leite, do milho, do trigo, ou seja lá o que for.

DINHEIRO – Pode haver um surto de inflação de demanda?
MARTONE – Pode sim haver um fenômeno de generalização com subidas de preço. Temos de lembrar que a capacidade produtiva da indústria brasileira é muito limitada. Não somos a Coréia, que tem um imenso potencial de produção. Aqui, as empresas trabalham da mão para boca, porque o custo de capital é muito alto. Não dá para investir e ficar ocioso, com fábrica parada depois. O que há no País hoje é um racionamento caótico de mercadorias em vários segmentos. Com uma demanda por alguns produtos chegando a 20%, leva o produto quem chega primeiro. O que vale aqui é a regra da fila.

DINHEIRO – O sr. quer dizer que os riscos de gargalo vão permanecer porque o risco de investimento no País ainda é alto?
MARTONE – O que quero deixar claro é que, quando há um surto de demanda, precisa tomar cuidado porque a produção não sobe do dia para a noite. E talvez não suba, porque investir aqui não é barato. E aí digo isso já derrubando a teoria de gente que acha que a importação está segurando esse gap entre produção e demanda interna, e controlando uma potencial subida da inflação de produtos industrializados. A importação não faz milagre, ela ajuda, mas tem os seus limites. É impossível confiar apenas que produto importado pode segurar preço aqui dentro. Isso não existe.

DINHEIRO – Dentro desse cenário de atividade econômica acelerada, como fica o risco de gargalos estruturais?
MARTONE – Nesse caso, o poder público tem interferência direta. Ou o governo cria a estrutura necessária e investe nas áreas que estão sob o comando dele ou cria condições para o setor privado investir. Pode ser por meio das Parcerias Público-Privadas, que não saíram do papel, ou de um marco regulatório estável e confiável. Nada disso foi feito.

Então estamos no pior dos mundos. A economia está crescendo e pressionando essa infra-estrutura, como na questão aérea, dos portos e da energia elétrica. Até o trânsito em São Paulo entra nessa conta. Basta ir para as ruas. Você tem uma oferta de ruas que é fixa, não cresce nada, e a demanda por carros só sobe. Então como fica?

DINHEIRO – A comemoração da equipe econômica, então, após a divulgação do PIB, tem de ser vista de que forma?
MARTONE – Quando a gente fala em crescimento, a gente fala de períodos longos. Não é nada que acontece durante dois ou três anos, é um processo contínuo que demora, no mínimo, sete, oito, dez anos. Não é o nosso caso de forma alguma. Estamos com alguma expansão, um pouco melhor do que vínhamos alcançado em trimestres anteriores, mas é preciso ver alguma sustentabilidade nisso. Nesse curso atual, ainda dependente de expansão do comércio exterior, com uma expansão muito baseada na indústria e com uma máquina pública inchada como está, isso não vai dar certo. Nós vamos quebrar a cara de novo. Aí me dizem: “Ah, você está sendo pessimista.” Não é isso, não estou.

DINHEIRO – O próprio presidente Lula tem dito que tem gente que joga “contra o governo”…
MARTONE – Nossa função, como economistas, é olhar a realidade e projetar as tendências. E aí é fácil ver hoje que isso que se está fazendo não vai dar certo. Vamos cair no precipício de novo. É preciso corrigir essa rota. Então essa é a advertência que a gente faz. Está todo mundo consumindo mais, comprando novos produtos, na fase de bonança em diversos setores da economia, tudo isso é ótimo. Mas preste atenção, porque você está caminhando e tem um abismo aí na frente. E esse abismo tem nome: é o setor público.

DINHEIRO – Sobre essa questão do peso do Estado, o sr. relata em artigos algumas decisões cruciais que estão entre as causas que levaram o País a amargar três décadas de crescimento pífio. A máquina pública cada vez mais “inchada” tem participação nisso?
MARTONE – Sem dúvida nenhuma. O que tento explicar nas análises é como foi que conseguimos, num espaço de três décadas, ou seja, em uma geração, crescer a metade do resto do mundo. Pelos dados de FMI e Banco Mundial dá para ver o tamanho do tombo. Enquanto eles cresceram uma média de 5% nós chegamos na metade disso, cerca de 2,5%. Em primeiro lugar, o fato de termos uma economia fechada até os anos 90 impediu que o Brasil se integrasse com o resto do mundo. Abrimos as portas tarde demais e apenas parcialmente. Por mais de 30 anos, vivemos em uma economia autárquica, protecionista e hostil ao comércio exterior. O grau médio de abertura dos países emergentes é superior a 60% do PIB, enquanto que o do Brasil é hoje de 30%, evoluindo dos 14% de apenas dez anos atrás. Em segundo lugar, o que nos atrapalhou muito foi a expansão do Estado brasileiro, com o crescimento extravagante da federação e da burocracia. O tamanho médio do setor público em países emergentes é de 25% do PIB, enquanto que no Brasil é de 40%.

DINHEIRO – As tentativas de controle fiscal pelo governo não estão surtindo o efeito desejado?
MARTONE – As poucas tentativas de controle de gastos do governo fracassaram totalmente. Você teve a Lei de Responsabilidade Fiscal, que foi um passo importante, que diz o seguinte: “Gaste o que quiser, desde que você mantenha o orçamento equilibrado”. Então, a lei não estabeleceu qualquer restrição ao tamanho do setor público.

O que os governantes fizeram? Continuaram tocando o pau na despesa e aumentaram a receita. Aí a carga tributária explodiu mesmo, e cresce, há 13 anos consecutivos, cerca de um ponto do PIB ao ano. Então, vem o Maílson (Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Economia) e diz que a CPMF é uma desgraça, mas é um mal necessário. Está errado. A única forma de controlar o governo é colocar freio no governo.

DINHEIRO – E qual a sua proposta para colocar esse freio necessário? MARTONE – O jeito é limitar o orçamento. Fica decidido que o que se pode tirar da sociedade é ‘x’ por cento do PIB e nada mais. Essa é minha proposta. Acho que o Congresso Nacional deveria estabelecer um programa de desoneração tributária em que, a cada ano, as alíquotas dos impostos mais deletérios seriam reduzidas o suficiente para gerar a mesma receita em termos reais.

Como estamos com a carga tributária muito alta, vamos congelar a carga em termos reais. Ela só vai crescer pela inflação, e como o PIB cresce ano a ano, em questão de seis, sete anos você volta para uma carga decente, de 27%, 28% do PIB. Então, a partir daí fica viável fazer uma reforma tributária, porque com essa redução de carga ela aconteceria no que há de pior no sistema tributário brasileiro, que são as contribuições federais. Ou seja, na CMPF, Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e PIS (Programa de Integração Social).

DINHEIRO – Qual o peso dessas contribuições na carga tributária? MARTONE – As quatro contribuições representam 10% do PIB. E é exatamente essa taxa, de 10%, que a gente precisa reduzir da atual carga tributária. Se conseguisse se livrar disso, nem que por um período de seis, sete anos, ficaria com um sistema tributário normal, equivalente ao que existe no resto do mundo. Inclusive seria possível aperfeiçoar esse sistema, porque ele está realmente maluco, com essa coisa de guerra fiscal e legislações muito díspares.

Enfim, dava para voltarmos a ser um país normal, entende? O problema nessa história é que a gente se acostuma a ficar doente e não sabe mais o que é ser saudável.

DINHEIRO – A possibilidade de se prorrogar a CPMF até 2011, como o governo quer, é apenas uma medida paliativa nesse processo?
MARTONE – Estive em Brasília nos últimos dias, em reunião da comissão especial da Câmara, e sabe o que é uma conversa de surdos? É exatamente isso. Todo mundo já tem o seu voto definido.

A gente argumenta, fala e explica mil vezes. E nada. Fui lá, é claro, chamado pela bancada que é contrária ao estabelecimento praticamente definitivo desse imposto. O Palocci (Antônio Palocci, ex-ministro da Economia) é o relator e o voto dele é para continuar nas bases em que está e não mexer em nada. O governo fez toda uma manobra para ter uma aprovação na Câmara dos Deputados e, passando por lá, vamos ver se passa pelo Senado também. Essa questão da CPMF é isso: eles querem continuar expandindo violentamente o Estado, sob todas as formas. Nós estamos caminhando para um desastre. Não se iludam com esse crescimento melhorzinho porque isso não é sustentável se não forem feitas mudanças sérias no setor público(Na sexta-feira 14, depois da realização dessa entrevista, foi aprovado o relatório de Palloci a favor da prorrogação da CPMF, na comissão especial, por 14 votos a 5).

DINHEIRO – O ministro Guido Mantega diz que tem feito desonerações e que a carga sobre empresas e o consumidor está sendo reduzida… MARTONE – Basta você pegar dados da Secretaria do Tesouro Nacional, do setor público federal e do próprio IBGE, pelas Contas Nacionais, e ver o peso da despesa do Estado em relação ao PIB. Essa taxa é de 40%. Paulo Bernardo, ministro do Planejamento, estava em Brasília, na sessão especial da CPMF de que participei, e disse: “A carga tributária é de só 34%”. Como assim? Que 34%? Se não bateu nos 40% ainda, vai virar nos 40% e não tem jeito.