Sob a sombra de uma enorme pedra antes submersa em um braço do Rio Paraguai, o pantaneiro passa seus dias. Dali, a menos de dois quilômetros da fronteira com a Bolívia, Máximo Paulo Ferreira, de 68 anos, assiste a sua vida se estreitar junto com o rio. Vara de pescar encostada, senta de cócoras e olha para duas barcaças carregadas de grãos ao longe. “Aqui não passa, baixou demais”, diz.

Entre garrafas plásticas de cachaça, restos de oferendas e peixes mortos na praia de pedras revelada pela estiagem, a pior em 90 anos no Centro-Sul do País, o homem depende do rio para comer. Assim como ele, o Pantanal em que Máximo nasceu se condiciona à mesma água para viver.

Espremido por plantações a norte e nordeste, no Cerrado, e também pelo avanço do plantio de soja no lado boliviano, a maior planície alagadiça do mundo, por ora, sobrevive. As causas vêm de longe, mas os efeitos estão ali. Falta água para que o ciclo de vida no bioma se mantenha. Sobram incêndios, dos dois lados da fronteira.

“As pessoas ficam esperando que chova aqui, em Corumbá. Ajuda a apagar o fogo, mas não é só aqui que isso precisa acontecer. É lá no Cerrado, na cabeceira dos rios que correm para dentro do Pantanal”, diz a bióloga Letícia Larcher, secretária executiva do Instituto do Homem Pantaneiro.

Com 2.695 km, o Rio Paraguai é um dos maiores corredores úmidos do planeta. Interliga Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina. As nascentes de seus principais afluentes estão no Cerrado, na Chapada dos Parecis, em Mato Grosso.

O que se passa fora do Pantanal é tão importante para manter a vida do bioma quanto o que está ante os olhos de Máximo. “É uma sequência de ações. Do desmatamento desenfreado na Amazônia, que influencia o regime de chuvas, à destruição das áreas de nascentes no Cerrado por plantações de soja, tudo influencia o que está acontecendo aqui”, diz Letícia.

André Nassar, presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que representa empresas que têm na soja, girassol, mamona e milho suas matérias-primas, discorda que a seca e o fogo estejam ligados à ocupação agrícola. “Esse argumento (da ocupação das cabeceiras de rios) está errado. A seca é (resultado) da mudança de regime de chuvas. Fica seco e pega fogo.”

Pedro de Camargo Neto, ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira, diz que os motivos da estiagem e dos incêndios são multifatoriais. Ele não exclui o uso do solo em áreas de cabeceira como possível causa da seca e cita o Rio Taquari, onde a ocupação desorganizada da área de nascente, em Mato Grosso, criou assoreamento e prejudicou o Estado vizinho ao sul. Na região, a mudança do curso do rio culminou em enchentes de áreas antes secas e prejuízos milionários para produtores.

Mas o que acontece no Pantanal não resulta só do que está no Brasil. A pressão também vem do lado de lá da fronteira, para onde a soja se expandiu com agricultores brasileiros. “Hoje, lidamos com a pressão que vem daqui e da atividade econômica agrícola que desce da região de Santa Cruz de La Sierra (a maior da Bolívia) nessa direção”, diz o presidente do Instituto do Homem Pantaneiro, coronel Angelo Rabelo. “Grande parte da fumaça que você está vendo aí vem do lado boliviano, dos incêndios de lá”, completa.

Não é preciso andar muito após cruzar a fronteira com a Bolívia para encontrar o que descreve Rabelo. Puerto Quijarro, a 15 quilômetros de Corumbá, é uma cidade típica da fronteira boliviana. Além do incessante vaivém de caminhões e pessoas cruzando a aduana, sem fiscalização, o que se vê é uma terra árida, marcada pelas queimadas. Na Bolívia, brigadistas também tentam conter a ameaça do fogo que chega do território brasileiro.

De ambos os lados da estrada que liga a cidade de 12 mil habitantes a Santa Cruz de La Sierra há campos destruídos pelas chamas. Ali fica o canal de Tamengo, que se liga à hidrovia Paraná-Paraguai, por onde a produção de soja boliviana é escoada. As barcas que passam por ali são as mesmas que Máximo vê do lado brasileiro, sentado ao lado do rio. A Bolívia está entre os dez maiores produtores do grão no mundo e é o quarto na América do Sul, conforme dados do governo americano.

Segundo estudo da plataforma MapBiomas, Mato Grosso do Sul é o Estado que mais perdeu superfície de água em 30 anos – menos 57% desde 1990.

Além disso, o último relatório do Painel Intergovernamental sobre o Clima da ONU (IPCC) aponta que as mudanças climáticas devem aumentar eventos climáticos extremos nos próximos anos no Centro-Oeste brasileiro, com mais estiagens e queimadas, e levar à redução da produção agrícola.

Sem pasto, sem nada

Nos seus 60 anos de vida, Aloísio Couto Moreno lembra de ver seca parecida na década de 1970. Depois disso, nada se equiparou ao que experimenta agora. Peão de fazendas pantaneiras por toda uma vida, o boiadeiro vive há dez anos em um assentamento na região de Corumbá. Por lá, as famílias de assentados criam cerca de 60 cabeças de gado leiteiro. Desde o ano passado, sua rotina mudou.

A estiagem os obrigou a tirar o gado de suas terras, atravessar o braço quase seco do Paraguai e procurar por um pouco de pasto na margem oriental do rio. Todos os dias, sob o olhar perdido de Máximo, Aloísio e outros assentados cruzam o rio de jangada para cuidar da criação. “É o jeito, porque onde a gente mora não tem mais pasto, não tem mais nada”, conta.

O homem embarca em uma canoa com mais três moradores do assentamento para cruzar o braço de rio e cuidar do gado. Sentado sob a mesma pedra, Máximo observa o grupo a distância. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Fogo em terra indígena

Após 18 dias de incêndio no território indígena Kadiwéu, no interior do Mato Grosso do Sul, os brigadistas do Ibama esperam finalizar nesta segunda-feira, 30, o trabalho de combate ao fogo. Cinquenta homens do Prevfogo, ligado ao órgão ambiental federal, se revezaram durante 24 horas na região. As chamas consumiram 48% da área protegida.

Lá, vivem cerca de dois mil indígenas. O local tem cerca de 540 mil hectares – o que equivale a 540 mil campos de futebol – e o acesso é o principal problema. “Os combates não são difíceis, a vegetação é rasteira. Porém, o mais complicado é o acesso. Por vezes o fogo está em cima do morro, é preciso fazer caminhadas de 10, 12 quilômetros, e é uma encosta com muitas pedras soltas”, conta Bruno Águeda Ovelha, supervisor de brigadas.

Assim como o Estadão mostrou no sábado, os brigadistas combatem o fogo sem usar água por causa da dificuldade de acesso às regiões mais remotas do Pantanal. “Aqui o soprador de ar foi fundamental para esse tipo de combate de fogo rasteiro. Com ele, conseguimos fazer a extinção do combustível e combater o fogo por abafamento”, afirma Ovelha. Movido a combustível, o equipamento ajuda a mudar a direção do fogo.

Neste fim de semana, as chuvas voltaram a cair em Mato Grosso do Sul, o que aliviou o trabalho dos brigadistas. O volume da precipitação, porém, tem sido bem menor do que o previsto para esta época do ano.

Até domingo, quando brigadistas e Corpo de Bombeiros tentavam conter o fogo na estrada Transpantaneira, em Mato Grosso, o Pantanal havia registrado 1.463 focos de incêndio, em agosto.

No ano passado, o bioma bateu recordes históricos de focos de incêndio e área destruída pelo fogo. Apesar de abaixo dos números de 2020, isso coloca o bioma acima da média histórica. E o pico de queimadas ainda não chegou – é esperado para setembro.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, mostram que o fogo castiga outros biomas. A Caatinga teve crescimento de 157% nos focos de incêndio de janeiro a agosto, ante igual período de 2020. No Cerrado, a alta é de 33%, e na Mata Atlântica, 28%. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.