Ao se indignar com o voto errado que impediu a criação da idade mínima para aposentadoria na reforma de 1998, um técnico do Ministério da Previdência constatou, na época, que o prejuízo seria sentido em 30 anos. Errou. Vinte um anos depois, o sistema tornou-se insustentável. Engoliu a própria pasta na Esplanada, em Brasília, e passa por outra cirurgia no Congresso. O último apoio que faltou nos anos 1990, porém, parece sobrar agora. Na apreciação em primeiro turno no plenário, o projeto atual passou com o aval de 379 deputados, sob resistência de 131 contrários — para aprovação, são necessários 308 favoráveis, em duas votações. O processo não está encerrado, mas o Parlamento tende a impedir que o Brasil repita o impasse de olhar para o passado daqui alguns anos e se indignar com a chance perdida: evitar que o País passe a gastar o dobro do Japão em Previdência quando atingir o nível de idosos que se tem por lá hoje.

As minirreformas feitas nas últimas duas décadas não bastaram para conter a explosão de despesas com o INSS. A adoção da idade mínima, reapresentada no texto do governo Michel Temer, em dezembro de 2016, é o principal ponto de contenção de gastos do projeto aprovado na Câmara na quarta-feira 10. Quando a transição for finalizada, brasileiros terão de completar ao menos 65 anos para conseguir o benefício, idade que cai para 62 anos para mulheres. Atualmente, não há corte etário. A média de aposentadorias por tempo de contribuição no País é de 55 anos (homens) e 52,8 anos (mulheres). A criação do piso representa metade da economia total de R$ 9807bilhões prevista pelo governo com o projeto em 10 anos. Mesmo que os cálculos estejam superestimados — a Instituição Fiscal Independente (IFI) estima em R$ 714 bilhões —, a cifra é suficiente para sinalizar ao mercado a disposição do País de conter o avanço do endividamento público. Sem as mudanças, a dívida bruta saltaria dos 77% para mais de 100% em 2023.

Caminho livre: equipe do Ministro Guedes poderá focar agora em outros temas da agenda. Para Bolsonaro, previdência é um presente do Congresso (Crédito:Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil e Edilson Dantas / Agência O Globo)

A Previdência é a maior fonte de gastos federais, com uma fatia de cerca de 60% do Orçamento. É o principal motivo por trás do descontrole fiscal que contribuiu para a formação da maior crise da história brasileira. A recessão de 2015 e 2016 deixou claro que a saída envolveria uma solução para reverter a sangria das contas públicas. O risco de insolvência afastou investidores do Brasil e travou decisões de negócios internamente. Empresários passaram a temer um descontrole inflacionário e um quadro de baixo crescimento. Formou-se um ambiente inóspito para novos investimentos. Afastado o problema central, a urgência passa a ser o crescimento: medidas capazes de acelerar a atividade econômica de forma sustentável. Sem voos de galinhas, como no passado. “Havia uma paralisação na comunicação do governo e o que a aprovação da Previdência faz é destravar essa agenda que é conhecida”, afirma o economista-chefe do Banco Votorantim, Roberto Padovani. “O anúncio dela não vai ter a capacidade de gerar crescimento imediatamente, mas vai manter a recuperação nos trilhos.”

O processo de retomada é lento e frustrante. Após dois anos de retração, o Brasil viu o PIB voltar para o terreno positivo em 2017 (1%), mas não conseguiu abandonar esse patamar. A esperança de uma virada em 2019 esbarrou nas dificuldades de articulação política da gestão Jair Bolsonaro. As projeções caíram de 2,5% em janeiro para 0,8%. O legado nefasto de tamanha letargia se expressa nos 13 milhões de desempregados e 25 milhões de subempregados (que gostariam de trabalhar mais horas, por exemplo). Para conseguir reinserir a maior parte deles ao mercado de trabalho, o País precisará crescer 3,3% ao ano até 2030, segundo cálculos da Confederação Nacional do Comércio (CNC). Se as previsões atuais se confirmarem (2,5% ao ano), dois em cada dez desempregados não conseguirão voltar ao mercado. “O governo precisa sinalizar que tem uma agenda de crescimento e não só das contas públicas”, afirma Fabio Bentes, economista-chefe da CNC. “A economia está com um problema muito sério para reagir.”

Os números recentes aumentaram a pressão sobre a equipe do ministro Paulo Guedes por uma resposta em busca de crescimento. O risco é de que o segundo trimestre registre PIB negativo e coloque o Brasil em estado de recessão técnica (dois períodos seguidos de queda no indicador). Uma agenda de projetos pós-Previdência é cobrada por parte dos economistas para indicar a direção de medidas do governo. O ministro se reuniu com os secretários na quinta-feira 11, para debater o tema. O receituário é consensual entre os analistas e se divide em duas partes: curto e médio prazo. Com o risco fiscal reduzido, abre-se espaço para adoção de medidas imediatas capazes de oxigenar a atividade. O Banco Central terá, finalmente, o colchão de conforto para reduzir os juros. A expectativa é que a taxa básica caia dos 6,5% atuais para 5,5% ao final do ano. Esse cenário é reforçado pelo cenário de inflação completamente sob controle. O índice oficial de junho fechou em 3,37% no acumulado de 12 meses, bem abaixo da meta de 4,5%.

REFORMA TRIBUTÁRIA Faltará avançar em medidas regulatórias e de concorrência para ajudar a diminuir o custo do crédito ao tomador na ponta. A diferença entre a taxa básica e o que os bancos cobram de seus clientes, o spread bancário, é um dos mais altos do mundo hoje e um dos fatores que afetam a produtividade das empresas. Na agenda de redução do custo de capital, estão melhoria das garantias nos empréstimos e o aumento da concorrência por meio de novas tecnologias. O governo pretende avançar ainda para aprovar a independência do Banco Central no Legislativo. Alguns economistas acreditam que mandatos independentes dos diretores aumentam a credibilidade da política monetária (administração dos juros) e ajudam a garantir um ambiente mais saudável para taxas menores.

Clima de festa: parlamentares governistas comemoram os 379 votos favoráveis na votação da reforma, na quarta-feira 10 (Crédito:Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Ainda como solução de curto prazo, Guedes deve lançar mão de instrumentos já experimentados para drenar a roda da economia. A liberação de contas inativas do FGTS e saldos acumulados no PIS/Pasep injetam dinheiro nas famílias e estimulam o consumo. Da mesma forma, a redução dos chamados depósitos compulsórios (fatia de recursos que os bancos precisam manter no Banco Central) contribui para impulsionar o crédito e, por consequência, as vendas. “No primeiro trimestre, o varejo voltou a fechar lojas pela primeira vez em dois anos”, afirma Bentes, da CNC. “É uma luz vermelha que acende, de que precisa haver um estímulo ao consumo no curto prazo.”

De olho num horizonte mais distante e na questão estrutural, a prioridade é dar sequência às reformas no Legislativa. A pauta mais óbvia e urgente é a reforma tributária. As distorções são históricas: o País tem uma das piores posições no ranking de complexidade no pagamento de tributos, gastam-se quase 2.000 horas para conseguir cumprir o processo, o equivalente a 1,2% do faturamento da indústria, segundo a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).  Assim como a questão previdenciária, tentativas anteriores de se avançar no Congresso falharam.

O vendedor de estatais: o secretário de desestatização, Salim Mattar, terá o desafio de acelerar o processo de privatizações (Crédito:Sergio Zacchi/Valor/Agência O Globo)

Há um impasse inicial de antemão: ao menos três propostas diferentes estão circulando em Brasília atualmente. O projeto do deputado Baleia Rossi (MDB-SP) foi aprovado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ). E o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já deixou claro que quer dar andamento na proposta. Maia é considerado um dos responsáveis pelo avanço da Previdência e deve seguir com uma pauta econômica própria, sem esperar o governo Bolsonaro.

O projeto de Rossi é baseado na redação elaborada pelo ex-secretário de Política Econômica, Bernard Appy, por meio da Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). Prevê a unificação de cinco tributos por um único, com um período de transição para o novo sistema e sem aumento de carga tributária. Entre eles, está o ICMS, um dos mais complexos tributos e sobre o qual é mais difícil conseguir. Em reunião no início deste mês, secretários de Fazenda estaduais defenderam mudanças na proposta, mas sinalizaram que apoiarão o projeto, se atendidas as reivindicações. “A reforma tributária é o principal fator para a competitividade”, afirma Flavio Castelo Branco, economista da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Ao onerar o processo para o produtor brasileiro, perdemos em competividade para o estrangeiro. Precisamos retirar essa desvantagem.” Branco acredita que o amadurecimento do debate nesses anos abre margem para uma aprovação da reforma agora, assim como o caso da Previdência.

Legislativo protagonista: os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, lideram agenda própria para o PIB (Crédito:Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

MAIS R$ 1 TRILHÃO Outro tema considerado urgente é acelerar o processo de privatizações e concessões. Sob a liderança do secretário de Desestatização, Salim Mattar, fundador da Localiza, o governo prevê levantar R$ 1 trilhão com a venda de empresas e participações societárias. Embora Mattar contabilize um total de R$ 50 bilhões já levantados em 2019, a maior parte está concentrada na venda de participações e leilões iniciados na gestão anterior.

Superado a Previdência, a equipe poderá dedicar mais esforços em enfrentar as resistências no caminho para a venda de ativos. Eles são essenciais para aumentar a produtividade no longo prazo — o nível de investimento em infraestrutura hoje é insuficiente para fazer frente à depreciação das estradas, pontes e ferrovias —  melhorar a alocação de recursos públicos e aumentar a eficiência da máquina pública. De quebra, são uma poderosa fonte de crescimento. Sem o fantasma da bomba previdenciária, consolida-se a confiança para maior participação do investidor privado, de modo a compensar a anemia de recursos estatal.

Olhar para fora: a abertura comercial é vista como essencial para aumentar a produtividade da economia brasileira, mas ainda sofre resistência de lideranças internas (Crédito:Moacyr Lopes Junior/Folhapress)

Ainda surgem como temas prioritários as reformas microeconômicas, como a abertura do mercado de gás, já iniciada pelo governo, aprimoramentos na lei de falências, redução da burocracia, entre oturos. Na esfera macroeconômica, outro ponto de avanço que começou a caminhar e terá de ser acelerado é a abertura comercial. O Brasil é um dos países mais fechados do mundo, a soma das exportações e importações é inferior a 30% do PIB, ante uma média mundial de 60%. O primeiro passo foi dado com a conclusão do acordo entre União Europeia e Mercosul, que reduzirá tarifas com o bloco em 15 anos. Guedes já sinalizou com um corte na tarifa média de importação dos 14% atuais para 4% em 2022 — um movimento que sofre resistências na indústria e que trará impacto para todo o mercado.

Somente uma agenda ambiciosa de reformas e ajustes pode reverter a prostração estrutural da economia brasileira. O País perdeu fôlego e vê hoje a economia crescer em linha com o avanço da população apenas, sem ganho de renda. Não é à toa que as provisões sugerem um crescimento próximo de 2,5%. “Parte da razão das baixas projeções de médio e longo prazo são de que essas reformas profundas não devem ter tanto sucesso”, afirma Bruno Lavieri, economista da 4E Consultoria. “As pequenas reformas têm de acontecer num ritmo maior.”

No cenário mais provável da consultoria, o PIB no ano que vem avança para 2,4% e depois vai convergindo para 2%. Num quadro otimista, em que a reforma tributária e outros ajustes são encaminhados, o País poderia chegar a 4%. Para isso, porém, seria preciso vencer o fenômeno classificado de “fadiga reformista”, o estresse resultante da aprovação de pautas ambiciosas como a Previdência. Há uma boa notícia por trás dessas contas: o cenário pessimista ficou muito mais improvável. Nele, haveria nova queda do PIB.