Tinha tudo para dar certo. Até não dar mais. O processo de privatização dos maiores terminais aéreos do País — plano que tiraria do Estado a obrigação de limpar banheiros de aeroportos, conferir cartões de embarque e operar raio-x de bolsas e mochilas — virou dor de cabeça para algumas empresas vencedoras dos leilões. Depois de as concessionárias Aeroporto Brasil Viracopos (Triunfo), gestora do terminal aéreo de Campinas (SP), e a argentina Inframerica, de Natal, pedir à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), em março de 2020, a devolução do aeroporto para o governo, na semana passada a concessionária RIOgaleão, administradora do Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, fez o mesmo.

O consórcio controlado pelo grupo Changi Airport International (CAI), de Singapura, afirmou que desde 2014 investiu R$ 2,6 bilhões no Galeão e construiu um novo píer (extensão do Terminal 2), mas que a crise econômica reduziu o movimento de passageiros e a pandemia agravou a situação. Assim como ocorre com Viracopos, o governo aceitou fazer uma nova licitação. O procedimento é previsto na Lei nº 13.448, de 5 de junho de 2017. Assim, o Galeão será leiloado com o Aeroporto Santos Dumont, também no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2023. Até o final desse processo, a concessionária RIOgaleão permanecerá responsável pela operação. A Changi detém 51% da concessionária e a Infraero os 49% restantes.

Os problemas envolvendo a maior terminal aéreo do Rio de Janeiro e o quarto do País com 8 milhões de passageiros no ano passado — atrás apenas do GRU AirPort, em Guarulhos (SP), Congonhas (na capital paulista) e o de Brasília — não são recentes. O contrato de concessão assinado em 2013 passou a gestão para a Odebrecht. A então gigante do setor de infraestrutura venceu o leilão com um lance de R$ 19 bilhões, valor 293,91% acima do mínimo pedido. Em 2017, já corroída pela Lava Jato, a Odebrecht (atual Novonor) decidiu vender sua participação no consórcio para se capitalizar e evitar a falência.

Sobre a saída no Galeão, a CAI culpa a crise econômica do País e a pandemia pela decisão. “Em 2020 e 2021, o governo federal atuou de forma diligente no apoio ao setor de aviação civil”, afirmou a RIOgaleão, em comunicado. “A recuperação, no entanto, foi lenta e a Covid-19 continuará afetando a indústria da aviação nos próximos anos.” A drástica iniciativa de fazer as malas e deixar o Brasil para trás se explica também pelo endividamento acumulado pela Changi, de R$ 7,5 bilhões.

GRUPO DE REPARO Diretor da Anac, Luiz Nascimento (acima), e ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas (pagina anterior), buscam solução para as concessões (Crédito:Divulgação)

A companhia propôs à Anac abater as perdas das parcelas que deve pelo direito de uso do aeroporto, mas a agência não aceitou. No comando da Agência e com perfil discreto, figura o tenente-brigadeiro-do-ar Luiz Ricardo de Souza Nascimento, que ainda não falou oficialmente sobre as devoluções, e nem qual papel adotará se houver outros movimentos similiares. Quem também tem olhado com atenção tais movimentações, inclusive em um aspecto mais amplo, é o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas. Em algumas ocasiões ele sinalizou estar atento ao movimento e diz estar em diálogo com as empresa para avaliar caso a caso os problemas.

Até agora, nove ativos concedidos anteriormente voltaram para as mãos do governo, sendo três aeroportos, cinco rodovias e uma ferrovias. Entre os grupos que já devolveram concessões estão a Concebra (liderada pela Triunfo), a Rota do Oeste (encabeçada pela Odebrecht), MS Via (da CCR), Malha Oeste (liderada pela Rumo), Via 40 (da Invepar) e Autopista Fluminense (sob a Arteris).

ÚNICA SAÍDA Para o especialista em contratos de concessão em infraestrutura Antonio Coutinho, sócio do Piquet, Magaldi e Guedes Advogados, as devoluções mostram um problema mais profundo. “As licitações aeroportuárias foram projetos mal estruturados, que partiram de premissas irreais de demanda de passageiros”, afirmou Coutinho, que alerta para a mesma situação nas concessões rodoviárias realizadas entre 2013 e 2014. Para ele, o fato de as concessionárias em crise terem como acionistas grupos de empreiteiras que jamais voltaram a se estabelecer economicamente, desde os escândalos retratados na Lava Jato, “agrava demais a situação.”

Na visão do especialista, a única saída é reprogramar os investimentos (medida que esbarra em normativas do Tribunal de Contas e Ministério Público). Caso não seja possível, resta a a devolução, novos estudos e novos parceiros a encontrar. Também é preciso olhar com cautela a questão da outorga e o valor de amortização que a União precisa pagar para os investimentos já realizados. Uma situação de neblina no horizonte que exige paciência e assertividade de quem comanda esta aeronave.