Em setembro de 2011, manifestantes americanos ocuparam um parque próximo ao quarteirão financeiro, em Nova York. Protestavam contra a má distribuição de renda e a influência das corporações no governo. Denominado Occupy Wall Street, o movimento foi reproduzido mundo afora. Por aqui, os participantes do Ocupa Sampa acamparam, no dia 15 de outubro, sob o tradicional Viaduto do Chá, no centro de São Paulo. No início de novembro eles receberam uma visita improvável. Um senhor distinto se aproximou, puxou conversa e ofereceu apoio. “Batemos um papo ótimo, eles expuseram suas posições e eu perguntei como poderia ajudar”, disse, na ocasião, o ex-presidente da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), Raymundo Magliano Filho. Ele ofereceu uma contribuição financeira, mas os manifestantes afirmaram ser contrários ao dinheiro dos mercados. Alimentos seriam mais úteis. O executivo carregou seu carro com arroz, feijão, pão e leite. Levou tudo para os acampados. Pessoalmente. Absurdo? Não para Magliano. “Precisamos aprender a ser tolerantes e a aceitar as diferenças sem preconceito”, disse à DINHEIRO naquela semana.

Quem acompanhou a trajetória de Magliano, que faleceu na segunda-feira (11) aos 78 anos, vítima da Covid 19, não ficou muito surpreso com aquela atitude. Nascido em São Paulo em 1942 e administrador de empresas formado pela Fundação Getulio Vargas, o executivo sempre teve uma atuação social e política muito além dos limites de seu ramo de negócios. E, para ele, diversidade, transparência e representatividade eram valores inegociáveis.

Seu pai, Raymundo Magliano, fundou a corretora de número 1 e presidiu o Conselho de Administração da Bovespa. Seguindo seu passos, Magliano Filho foi vice-presidente da Bovespa entre 1997 e 2000, e a presidiu por sete mandatos consecutivos, entre 2001 e 2008. Sob seu comando, a centenária e vetusta instituição transformou-se em um dos principais pregões de países emergentes.

Quando Magliano ocupou a sala de poltronas de couro, tapetes espessos e pinturas equestres nas paredes com escuros lambris de carvalho, a situação da Bolsa era ruim. Ela estava ameaçada de extinção devido à migração de negócios para outras praças, Nova York em especial. Em valores atualizados para dezembro de 2020, as transações haviam caído para R$ 1,52 bilhão por dia. Sete anos mais tarde, quando entregou o cargo, esse montante havia mais que quintuplicado em termos reais, para R$ 9,34 bilhões. Para comparar, em 2020 o volume médio diário foi de R$ 25,6 bilhões. Um crescimento menor do que o registrado durante a gestão de Magliano.

É necessário admitir que parte desse florescer do mercado de capitais deveu-se a fatores externos à Bolsa, como a alta nos preços das commodities e a farta liquidez internacional. No entanto, não fossem os esforços de Magliano, esse movimento teria passado ao largo do prédio na rua XV de Novembro, no Centro Velho da capital paulista. Um dos melhores exemplos foi a abertura de capital da própria Bolsa, realizada em 2007. Como muitas iniciativas no Brasil, as bolsas nasceram por ordem do governo. Só em meados da década de 1960 a Bovespa deixou de ser estatal e passou a ser controlada pelas corretoras de valores, na época impermeáveis aos avanços em governança e em transparência. Pecado mortal para o executivo, leitor de filosofia e admirador do filósofo italiano Norberto Bobbio.

“Se o pequeno investidor não enxergar a Bolsa como um lugar onde ele se sente representado, ele não vai querer participar do mercado” Raymundo Magliano Filho (1942 – 2021), ex-presidente da Bolsa de Valores de São Paulo.

Ele percebeu logo o que faltava para que o mercado de capitais deslanchasse no Brasil: representatividade perante a sociedade. “A Bolsa era considerada um clube de elite, inacessível para o público”, disse ele à DINHEIRO em uma entrevista logo após deixar a presidência. Ao abrir capital, a Bolsa se tornou uma empresa transparente e com milhares de sócios. Foram 63,9 mil participantes na Oferta Pública Inicial, a quarta maior participação da história do mercado. Magliano também ajudou a costurar a fusão com a Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F), em 2008. E a melhoria da governança também se estendeu às companhias abertas, com a criação do Novo Mercado, em 2004.

Tudo isso já seria suficiente para fazer história. Para Magliano, porém, a menina dos olhos foram as iniciativas para trazer pequenos investidores ao mercado. Quando assumiu, eram pouco mais de 200 mil. Ao deixar o cargo, eram 650 mil. E somavam 3,2 milhões no fim de 2020. Boa parte desse crescimento deveu-se a suas iniciativas. A mais visível delas foi o programa A Bolsa Vai Até Você, lançado em 2002. Um furgão, logo apelidado BovMóvel, levava divulgadores do mercado a locais implausíveis como praias, shopping centers e estádios de futebol em dias de jogos. “Se o pequeno investidor não enxergar a Bolsa como um lugar onde ele se sente representado, ele não vai querer participar do mercado”, dizia ele ao comentar o programa, que realizou cerca de 3 mil eventos e entrou em contato com 300 mil pessoas. “Ele plantou a semente da democratização e do acesso à bolsa e não há orgulho maior para nós do que ajudar a colher esses frutos”, disse o CEO da B3, Gilson Finkelsztain.