Ainda que soe estranho, nem sempre as instabilidades políticas e econômicas do Brasil são vistas de maneira negativa no mundo corporativo. Na opinião do belga Thomas Dubaere, que há seis meses assumiu o cargo de CEO do grupo Accor para a América do Sul, situações complexas e desafiadoras para as empresa podem ocorrer em qualquer. “Pode ser uma região um pouco mais complicada política, social e economicamente”, afirmou o executivo à DINHEIRO. “Mas, acredite em mim, eu morei em Londres e posso dizer que o Brexit não foi um dos momentos mais fáceis”.

Dubaere, que se mudou para o Brasil em outubro, tem uma trajetória de 15 anos de atuação na maior rede hoteleira do País e uma das maiores do mundo. Bagagem que deverá ser bastante utilizada durante sua estadia na região. Nem é preciso dizer o quanto a pandemia afetou o setor turístico — e por consequência o hoteleiro —, que enfrenta desde o início de 2020 aquela que talvez seja a maior crise de todos os tempos. Com o coronavírus e as medidas de isolamento social implementadas para conter sua transmissão, a participação do turismo no PIB mundial despencou pela metade, passando de 10,4% em 2019 (US$ 9,2 trilhões) para 5,5% (US$ 4,7 trilhões) no ano passado.

LAZER E TRABALHO Líder no Brasil, companhia identificou novo perfil de hóspedes e vai dobrar o número de espaços coworking. (Crédito:Divulgação)

Para a Accor, dona de redes como Ibis, Mercure, Pullman e Sofitel, o resultado não foi nada favorável. No mesmo período, a companhia teve queda de 34% na ocupação global dos quartos. Sem hóspedes, sem faturamento. Resultado: uma receita de 1,6 bilhão de euros, 60% menor ante os 4 bilhões de euros do ano anterior. Apesar de negativos, os dados não assustam o novo CEO. “Não se trata apenas de negócios, é também uma aventura para mim e para a minha família”, disse Dubaere, que está vivendo em São Paulo com a mulher, o filho de 18 anos, a filha de 16 anos e o único membro brasileiro da família: um golden retriever de 5 meses chamado Kiwi. “É uma riqueza você poder experimentar a vivência em países e culturas diferentes.”

FRANQUIAS A busca por aventuras e experiências é também o retrato de um novo perfil de consumidor que deve ser adicionado à estratégia de expansão da companhia. A região é hoje responsável por 8,2% (62,2 mil) do total de quartos das redes Accor no mundo. Europa (46%) e Ásia-Pacífico (32%) lideram a presença. Dobrar a presença da rede hoteleira por aqui foi a missão recebida por Dubaere pelo CEO global da Accor, Sébastien Bazin. Daí a previsão de inaugurar 25 novos hotéis na América do Sul até o final deste ano. Mas o executivo traçou uma estratégia para o crescimento da rede. Ela tem como foco a expansão por meio de franquias. Segundo ele, aproximadamente 65% dos hotéis da América do Sul são independentes. Um mercado que ficou ainda mais promissor após a pandemia. “Eles sofreram porque é um segmento difícil de administrar sem um especialista por trás”, disse Dubaere. “Somos líderes e daremos a marca. É um ganha-ganha”. Hoje, 35% das operações da multinacional na América do Sul são por meio de franquias. A expectativa é que esse porcentual passe para 70%.

Outra novidade virá do próprio portfólio. A Accor tem mais de 40 bandeiras sob sua estrutura, que vão de marcas de luxo às econômicas. Dentro delas, um segmento merecerá atenção: o chamado lifestyle, que reúne opções que vão de espaços com música a bares especializados integrados aos hotéis. No ano passado, foi fechada uma joint venture com a Ennismore, rede londrina dona das marcas Gleneagles, NoCo, The Hoxton e Working From, referências nesse estilo de hospedagem. Na Accor, a rede Jo&Joe ocupa esse perfil e vai inaugurar este ano, no Largo do Boticário, no Rio de Janeiro, seu primeiro endereço na América do Sul.

O crescimento, no entanto, ainda estará atrelado ao cenário sanitário provocado pela Covid-19. Países de todo o mundo fecharam as fronteiras. Sem lazer, sem eventos e sem viagens corporativas, o mercado hoteleiro sofreu forte impacto. Pesquisa realizada pelo Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil (FOHB) mostra que a taxa de ocupação nos hotéis do País começou a cair a partir de fevereiro de 2020 em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Em abril, a redução foi de 91,8%, mas o setor foi se recuperando e fechou dezembro com queda de 38%.

MUDANÇAS Com a pandemia, o setor precisou se reinventar. E a Accor não escapou dessa necessidade de adaptação. Para aproveitar o funcionamento das cozinhas e bares, alguns hotéis da rede entraram no segmento de delivery de comidas e coquetéis. Além disso, com a estrutura, o espaço e os funcionários disponíveis, a Accor reavaliou a função de seus hotéis e apostou em torná-los polivalentes. O primeiro passo foi ampliar um projeto já em andamento: a aposta em espaços coworking através da bandeira Wojo. No Brasil, 100 hotéis são voltados ao serviço. Até o final deste ano, Dubaere prevê que esse número ultrapasse 200 hotéis. “Estamos tentando usar os metros quadrados para outros fins”, afirmou o CEO. “Em algumas redes transformamos quartos em escritórios”.

NOVA APOSTA Rede Jo&Joe chega neste ano ao Largo do Boticário, no Rio de Janeiro, como o primeiro de bandeira lifestyle na América do Sul. (Crédito:Divulgação)

Outra medida adotada pela multinacional hoteleira foi a parceria com a gigante da tecnologia Microsoft para garantir que todos os hotéis da rede consigam atender essa demanda. A companhia francesa também está desenvolvendo serviço de check-in integrado ao celular. Por meio deles, o hospede entra no hotel e vai direto para o quarto, sem precisar parar no balcão para preencher cadastros e retirar chaves. A digitalização caminha em sintonia com a expectativa de permanência das atividades em home office.

RETOMADA Em países onde a imunização contra o coronavírus está avançada, como no Reino Unido, as operações da Accor já estão alcançando os níveis pré-pandemia. Na opinião de Thomas Dubaere, uma prova da correlação entre a vacinação e a recuperação dos mercados. “Acredito que todos já entenderam que a vacinação é a única maneira de retomar os negócios”, disse o CEO. Manoel Linhares, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis Nacional, participou de reuniões com a Anvisa e os Ministérios do Turismo e da Saúde, ainda na gestão de Luiz Henrique Mandetta. De lá pra cá, pouca coisa mudou. “Cada noite não vendida é prejuízo total”, disse Linhares. “O setor hoteleiro também precisa de prioridade na vacinação para que possa voltar à normalidade”.

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Para especialistas, a recuperação brasileira depende do incentivo do governo para o turismo doméstico. O dólar em alta e as barreiras a turistas brasileiros surgem como pontos positivos para o mercado nacional. Mas a vacinação permanece crucial. A gerente de produtos da plataforma ViajaNet Dulce Bonaldo acredita que foi perdido o planejamento a longo prazo. “A recuperação depende primeiro da vacinação e do investimento no turismo local.” É exatamente o potencial turístico interno do Brasil que faz a balança de Thomas Dubaere se equilibrar. Para ele, se de um lado a instabilidade econômica pesa a balança para baixo, as paisagens, a diversidade gastronômica e as diferentes culturas encontradas dentro do País fazem o contraponto necessário.