Dois anos após ter saído dos editoriais de moda para ocupar as páginas policiais, acusada de integrar a lista de fabricantes de vestuário que contratavam mão de obra (em sua maioria imigrantes bolivianos) no Brasil em condições análogas à escravidão, a espanhola Zara, do grupo Inditex, volta ao noticiário. A empresa, controlada pelo bilionário Amancio Ortega, o quarto homem mais rico do mundo, tem lutado para apagar aquela mancha em sua marca e nada indica que a intensa pressão externa vá diminuir. Numa sessão da CPI do Trabalho Escravo, na Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp), no último dia 21, o presidente da subsidiária brasileira, João Braga, teve de explicar detalhadamente as providências adotadas para eliminar o problema.

Insatisfeito com o teor do depoimento, o presidente da CPI, deputado Carlos Bezerra Júnior, do PSDB, mostrou-se particularmente duro com o executivo. “Ele admitiu a existência de trabalho escravo em sua cadeia produtiva”, afirmou o parlamentar. Para ele, a despeito da lista de medidas e dos investimentos milionários adotados pela companhia (leia quadro), a Zara não estaria cumprindo o acordo pactuado com o Ministério do Trabalho num Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). “A direção da empresa chegou ao cúmulo de reportar às autoridades como fornecedores sem problemas, empresas que estavam fechadas havia meses, e outras processadas por trabalhadores pelo não pagamento de salário”, diz Bezerra Jr.

O episódio recoloca na ordem do dia um tema que também afetou recentemente nomes estrelados da indústria e do varejo brasileiros como M. Officer, C&A, Marisa, Pernambucanas e Le Lis Blanc. Como administrar o dano causado à imagem de uma companhia, por infrações do gênero, e virar o jogo? Apesar da distância no tempo, um exemplo celebrizado na crônica empresarial é o da americana Nike que, no final da década de 1990, foi acusada de ligação com fornecedores paquistaneses que adotavam trabalho infantil em suas fábricas. Mais de 20 anos depois, o episódio continua assombrando a mais conhecida fabricante de artigos esportivos do planeta.

“Essas ações sempre demoram a surtir os efeitos esperados”, afirma Eduardo Tomiya, diretorgeral da consultoria BrandAnalitics. No Brasil, as denúncias de exploração de mão de obra, tanto infantil quanto adulta, comumente rotuladas como trabalho escravo, se sucedem e já atingiram uma centena de empresas, de diversos segmentos. A Zara, ícone do chamado fast-fashion, dona de um faturamento global de € 16,7 bilhões, tenta com todas as armas livrar-se do estigma de ter se tornado uma espécie de Nike do século 21. “Temos agido de uma forma correta, transparente”, defendeu-se Braga na CPI do Trabalho Escravo.

Houve problemas, mas por parte de fornecedores que subcontrataram mão de obra escravizada, admitiu a empresa. “Fomos enganados”, disse Raúl Stradera, porta-voz do Grupo Inditex, controlador da Zara. “Houve uma ação deliberada de um de nossos fornecedores de desrespeitar as leis brasileiras e os compromissos assinados conosco.” À primeira vista, há razões de sobra para a indignação de Stradera. A empresa possui um rigoroso código de conduta, chamado de compliance no jargão empresarial. As regras dessa cartilha indicam as boas práticas que devem ser observadas por funcionários e fornecedores em todos os aspectos do negócio.

Cobrem desde a qualidade técnica para produzir as peças de vestuário até a sustentabilidade socioambiental das matérias-primas, passando pelas condições de trabalho da mão de obra, terceirizada ou própria. Desde o início da década, a empresa espanhola é signatária de inúmeros acordos com sindicatos de trabalhadores e também com organismos multilaterais, como a Organização do Trabalho (OIT), mas em algum momento as defesas não funcionaram. “A pergunta que fica no ar é por que a Zara permitiu que isso acontecesse no Brasil”, diz Tomiya. A boa notícia é que a Zara reagiu rapidamente com medidas efetivas para minimizar o prejuízo, ainda que possam parecer insuficientes a alguns críticos, como o deputado estadual Bezerra Jr.

A política de redução de danos incluiu o arsenal de medidas que, aos poucos, vai criando uma atmosfera mais favorável à empresa. Entre a comunidade boliviana, que gravita em torno do bairro do Bom Retiro, um dos maiores polos de confecção da cidade de São Paulo, não é difícil encontrar pessoas dispostas a elogiar os esforços dos espanhóis. “A Zara nos beneficiou diretamente”, afirma Roque Pattucci, coordenador-geral do Centro do Apoio ao Migrante. “Antes não tínhamos recursos nem mesmo para contratar pessoas para trabalhar aqui.” A ONG foi fundada em 2005 e, desde então, já atendeu 60 mil cidadãos latino-americanos que buscam auxílio para resolver desde problemas como a regularização de visto de trabalho, até pendências com a Justiça.

Dos R$ 14 milhões investidos na região pela grife espanhola, pelo menos R$ 1 milhão foram destinados ao Centro. O apoio às ONGs no trabalho de legalização e acolhida dos imigrantes, além de sua capacitação profissional e cursos de qualificação das oficinas de costura, incluem o arsenal de medidas reparadoras bancadas pelos espanhóis. “A Zara foi um marco para os imigrantes e até para a nossa luta”, diz Pattucci. “As pessoas passaram a entender a gravidade do problema.” Apesar de ter ido muito além do que havia sido pactuado no TAC, com o Ministério do Trabalho, que previa o pagamento de indenização de R$ 3,4 milhões, a direção da Zara segue sob o escrutínio severo da Justiça.

“Quem contrata define o preço e, por conta disso, não pode se eximir de problemas ocorridos ao longo da cadeia produtiva”, diz o procurador Tiago Muniz Cavalcanti, do Ministério Público do Trabalho (MPT-SP) e integrante da Coordenadoria Regional de Trabalho Escravo. O consultor Tomiya concorda. “A política de otimização de custos é boa para o negócio, mas embute riscos à reputação das empresas”, diz. Para ele, episódios como este fazem com que os empresários de diversos setores se lancem numa reflexão necessária. Isso porque, a cada dia um número maior de consumidores começa a incluir em suas decisões de compra as práticas socioambientais adotas pelos fabricantes e prestadores de serviços.

A reportagem da DINHEIRO percebeu isso durante um rápido giro por uma loja da Zara em um shopping da zona oeste de São Paulo, na noite da quinta-feira 29, em entrevista com clientes da grife, como a farmacêutica Patrícia Alencar. “Não dá para acreditar que eles não sabiam de nada”, afirma ela, que se apressou em dizer que havia entrado na loja apenas para trocar um presente recebido pelo marido. “Não gosto de pensar que estou vestindo uma peça produzida com trabalho escravo.” Outras, no entanto, se mostram mais compreensivas. “É difícil imaginar uma roupa feita na região do Bom Retiro sobre a qual não pairam suspeitas de práticas de contratação irregular de trabalhadores”, afirma a bancária Daniela Rodrigues.

“Pelo menos a Zara, ao fazer esses investimentos na região, mostra preocupação em mudar as coisas.” Desde que saiu dos editoriais de moda para as páginas policiais, a Zara vem adotando uma série de medidas destinadas a reverter sua imagem. A mais recente delas, foi o anúncio da criação de um código (QR Code) que permitirá aos consumidores brasileiros conferir, através da leitura feita pela câmera de um smartphone, onde cada peça foi produzida. “Não temos nada a ocultar em nosso processo produtivo”, diz Felix Poza Peña, diretor de responsabilidade social do Grupo Inditex. Apesar de sua posição de ceticismo diante do elenco de medidas anunciadas, o deputado Bezerra Jr., presidente da CPI da Alesp, nega que seu alvo seja a Zara.

Para ele, mais que acionar apenas uma empresa específica, o papel da CPI será o de combater um esquema que faz com que grandes empresas pressionem os fornecedores de menor porte, usando-os para driblar as leis e fugir da fiscalização. Com os holofotes sobre os bairros onde se concentram o setor têxtil, muitos subcontratados estão fugindo para a periferia da terra da garoa, e até mesmo para cidades do interior. As empresas ligadas ao escândalo que atingiu a Zara, por exemplo, atuavam em Americana, cidade distante 130 quilômetros da capital. Mas o cenário, no geral, está muito longe de melhorar.

Algumas, como a brasileira M.Officer estão no radar da CPI e do MPT-SP, que esperam aplicar-lhe medidas contundentes, já que a grife preferida de consumidores descolados foi acusada, pela segunda vez em menos de seis meses, de cometer práticas ilegais. “Com eles, não tem acordo”, diz Cavalcanti. “Vamos ingressar na Justiça para conseguir uma punição exemplar.” A ambição do promotor é enquadrar a M.Officer na nova lei de combate ao trabalho escravo, em vigor no Estado de São Paulo. Além de multas pesadas, existe a possibilidade de suspensão ou até a cassação da inscrição estadual de quem cometer esse tipo de delito.

A holandesa C&A, a Casas Pernambucanas, a Le Lis Blanc e outras que são objeto da ação da CPI também estão sendo acompanhadas de perto pelo Ministério Público. Em nota, a direção da Pernambucanas garante que zela pelas condições de trabalho de seus contratados. Lembra, porém, que nenhuma empresa está livre da eventual má-fé de algum integrante da cadeia produtiva. A C&A Brasil, em nota, afirma que desde 2006 “realiza um trabalho contínuo e sistematizado com o objetivo não só de combater, como também o de prevenir, qualquer tipo de irregularidade nessas relações, seja em seus fornecedores, ou em seus subcontratados.”

Também por meio de nota, a Marisa afirma que reformulou suas auditorias e adotou novas práticas para aprimorar seu programa de responsabilidade social. Por último, a chefia da Restoque, empresa responsável pela Le Lis Blanc, diz que segue “rigorosamente o compromisso firmado com o MPT em 2013 e repudia com veemência toda e qualquer forma de contratação irregular”. Procurada, M.Officer não se pronunciou até o fechamento desta edicão. Apesar de todo bombardeio sofrido no âmbito legislativo e judiciário, a direção do grupo Inditex confia em reverter a situação no Brasil. Até porque, apesar de ser associada a um escândalo com grande potencial ofensivo, sobretudo à sua imagem, a empresa se mantém como queridinha dos investidores e analistas globais.

Isso, em boa medida, se deve ao excelente desempenho financeiro. O grupo fechou 2013 com lucro recorde de € 2,4 bilhões, para um faturamento global de € 16,7 bilhões, montante 5% acima do obtido em 2012. Desfazer a reputação ruim é mesmo uma tarefa difícil, mas não impossível, se a disposição de consertar os malfeitos for para valer. Um dos casos mais bem-sucedidos ocorreu com o empresário mato-grossense Blairo Maggi. Ele passou do inferno ao céu em menos de uma década. Graças à perseguição implacável de ONGs como o Greenpeace, que o acusavam de devastar a Floresta Amazônica para plantar soja, o que lhe rendeu o troféu Moto-Serra de Ouro em 2005, Maggi era considerado uma espécie de “inimigo público número 1” do meio ambiente.

Em vez de bancar o avestruz e esconder-se dos problemas, passou a adotar medidas de controle e implementou as boas práticas sustentáveis em suas fazendas. Resultado: de vilão, Maggi passou a ser um interlocutor privilegiado dos conservacionistas, recebendo do britânico Forest Footprint Disclousure (FFD), em 2012, o título de empresa socioambientalmente correta no agronegócio. Se quiser, Amancio Ortega, o homem que criou o fast fashion, sistema produtivo que revolucionou o varejo de moda, tem em quem se inspirar. É só seguir o mesmo caminho e apostar na transparência.

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