Quando Marcele Lemos assumiu a presidência da multinacional de seguro de crédito Coface no Brasil, em 2011, ela não imaginava o tamanho da crise que enfrentaria. Em 2015, em meio à onda de empresas entrando com pedido de recuperação judicial, a empresa reportou uma sinistralidade de 134%. Nesse momento, a executiva precisou mostrar suas credenciais para virar o jogo e promoveu uma grande guinada dos negócios. Primeiro, aplicou uma gestão em tempo real para administrar o risco de perdas. Em seguida, preparou a Coface para surfar a onda da recuperação da economia desde o início. No ano passado, a empresa registrou a menor perda do segmento de seguro de crédito. Ela está otimista com a economia brasileira, ainda teme as consequências das eleições de 2018, mas vê a queda da inflação e da taxa de juros como sinais positivos. “A volta do crédito vai dar energia para economia. Vai começar a turbinar e andar”, diz Lemos.

DINHEIRO – Por que o otimismo com o Brasil voltou com tanta força?

MARCELE LEMOS – De uma forma geral, depois de dois anos de uma crise muito profunda vivida pelo Brasil, não dava mais para continuar no buraco negro. Alguma coisa tinha de acontecer para revirar um pouco essa crise muito pesada, que estava assolando o País. Nos primeiros meses do ano, começamos a ver os sinais positivos. Isso tudo foi muito positivo para resgatar a confiança dos executivos, dos empresários brasileiros. A partir daí, vieram as mudanças, como a queda muito forte da inflação; o índice de produção aumentando; uma safra muito boa neste ano, ajudada pelo clima; as exportações em crescimento; o setor automotivo crescendo na exportação, muito impulsionado pela Argentina. Enfim, são vários fatores que contribuíram para a melhora e esse resgate do otimismo do Brasil e dos brasileiros com a economia.

DINHEIRO – O Copom baixou a Selic para 7,5% ao ano e a tendência é cair para 7% e permanecer nesse patamar por um período longo e sustentável. A inflação está abaixo do centro da meta. Como essas quedas mexem com o ritmo da economia?

LEMOS – Houve uma melhora do consumo no Brasil porque havia uma demanda represada nesses últimos dois anos. No começo do ano, a liberação do FGTS ajudou a impulsionar esse consumo e isso acaba se refletindo no nosso negócio, o seguro de crédito, porque temos clientes de diversos setores, como os automóveis, que tiveram de aumentar a produção. Eles, claro, passaram a demandar mais crédito do mercado porque estão vendendo mais. O setor de eletroeletrônicos também ficou aquecido por aquele celular velhinho, que ficou dois anos esperando para ser trocado. A queda da inflação ajuda a melhorar a demanda e o consumo represado. Inflação baixa fomenta o consumo. Já baixando a taxa de juro, empresas começam a tomar mais crédito, que está começando a ser liberado para as empresas começarem a fazer investimentos. Tenho clientes dizendo que estão investindo em plantas e comprando maquinário novo, em razão dos aumentos previstos de produção. Um deles, do segmento de máquinas e equipamentos, disse que as vendas estavam em crescimento. Eu perguntei por que isso estava acontecendo, se a infraestrutura está paralisada. Ele respondeu que era troca de maquinário, pois muitos estavam obsoletos e as empresas não tinham dinheiro para trocar. Agora, com a volta do crédito, estão renovando. A volta do crédito vai dar energia para economia. Vai começar a turbinar e andar.

DINHEIRO – A senhora diria que é o grande acerto do presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn?

LEMOS – As intervenções do Banco Central trazem equilíbrio e é o que vai facilitando a volta do desenvolvimento. Realmente, esse casamento da taxa de juros e da inflação ajuda muito. Ajuda o consumo e o empresário brasileiro a fazer seu investimento, a tomar mais crédito. Começa a fazer essa máquina da economia brasileira voltar a trabalhar.

DINHEIRO – Com essa melhora recente, o Brasil demora para reconquistar o grau de investimento (o selo de bom pagador)?

LEMOS – Temos vários sinais positivos na economia. Tivemos downgrades (rebaixamento) na época da crise, mas estamos passando para outro patamar. É possível começar a ver upgrades no risco Brasil. Não creio que seja algo a longo prazo. Está mais próximo.

DINHEIRO – Qual seria a maior preocupação para o Brasil?

LEMOS – Estamos numa tendência muito boa, mas o que me preocupa um pouco são as eleições de 2018. Estamos a um ano das eleições e não sabemos quem serão os candidatos, diferentemente do passado. Nesse mesmo período, já se tinha ideia de quem seriam os candidatos. Hoje, só há especulações e dúvidas. Esse é um ponto que preocupa um pouco.

DINHEIRO – Esse é um fator de risco para o País?

LEMOS – Não diria um fator de risco, porque já vivemos um momento muito pior. E não vamos mais ver nada parecido com o pior que vivemos nos últimos dois anos. Mas é claro que acaba afetando um pouco esse otimismo com a economia. Poderíamos estar melhor. Mas a incerteza política acaba não deixando o Brasil deslanchar como deveria deslanchar. Por exemplo, há muitos empresários que gostariam de fazer investimentos de longo prazo, como no setor de infraestrutura. Em conversas com eles, percebemos que ainda existe uma preocupação. Estão trabalhando com cautela, porque não sabem o que acontecerá no próximo ano, com as eleições. É importante dizer que não estão deixando de fazer. Alguns investimentos estão acontecendo, mas com alguma prudência.

Marcele Lemos elogia a atuação do Banco Central, presidido por Ilan Goldfajn (foto) (Crédito:Wenderson Araujo )

DINHEIRO – Essa incerteza política é apenas por causa das eleições em 2018 ou as seguidas denúncias contra o presidente Michel Temer ainda pesam?

LEMOS – Eu coloco todo o pacote. Está impossível saber o que pode acontecer amanhã. Podemos acordar e ter estourado uma nova bomba política, que pode acabar prejudicando a economia. Seja com o presidente ou alguma outra coisa que possa afetar a confiança. É a sensação de que qualquer coisa pode acontecer e aparecer inesperadamente. Junto a isso tem a pergunta: quem vai ser o próximo presidente para colocar esse País adiante? Com qual plano? Vai sentar lá e dar continuidade a essa tendência de melhora que estamos vendo no Brasil? Impossível saber.

DINHEIRO – Com o afastamento da segunda denúncia contra Temer, o cenário para o Brasil muda?

LEMOS – Com o arquivamento da denúncia contra Temer, o ajuste das contas fiscais deve voltar ao foco. A reforma da Previdência é ponto central para conter o alto déficit público. No entanto uma ampla reforma parece pouco viável por conta da proximidade das eleições presidenciais e legislativas. O governo provavelmente não conseguiria apoio suficiente no Congresso para aprovar uma medida tão impopular. No momento, parece mais factível que o mesmo opte por fatiar a reforma, levando ao Congresso somente alguns pontos que ele considera de maior urgência. Tais como o estabelecimento de uma idade mínima para a aposentaria (65 para homens e 62 para mulheres) e as normas de transição. Uma reforma mais ampla ficaria para o próximo governo. O mercado com certeza reagiria positivamente à aprovação de pequenos ajustes. Porém, no próximo ano deve prevalecer um cenário de cautela por conta da incerteza em relação ao direcionamento econômico do próximo governo.

DINHEIRO – As eleições recentes na Europa afastaram a extrema direita, que vinha conquistando adeptos por lá. De que maneira isso se reflete no Brasil?

LEMOS – É um pouco diferente, embora essa questão de esquerda e direita seja muito relevante aqui no Brasil, também. É um ponto para se ter atenção e que pode mudar todo o ritmo do País.

DINHEIRO – O mundo parece estar em calmaria e extremamente líquido. Esse cenário é persistente e terá continuidade em 2018?

LEMOS – Globalmente, estamos com uma perspectiva bastante favorável. Estamos num bom momento e todos os países estão, relativamente, bem. Não tem país como o Brasil do ano passado, numa crise profunda. O mundo está se mantendo em crescimento. Mas tem alguns aspectos que é preciso ter atenção. A questão do câmbio, por exemplo. Os movimentos da taxa de juros dos Estados Unidos podem ter reflexos nas moedas e, claro, na política cambial brasileira. É preciso atenção em razão de uma desvalorização do real. Por outro lado, o mundo como um todo tem uma boa liquidez, o que favorece bastante o Brasil, principalmente nas exportações. Isso é favorável. A América Latina como um todo é uma região que ainda tem muito a se desenvolver.

DINHEIRO – Quais são as perspectivas para o seu negócio?

LEMOS – De 2011 a 2015, o seguro de crédito cresceu a uma média de 10% ao ano. Em 2016, cresceu 18%. Por quê? Justamente porque a crise abre uma janela de oportunidade. Os executivos, que no passado falavam que não precisavam de seguro ou proteção porque vendiam há muitos anos para determinado cliente e tinham uma relação comercial duradoura, tiveram perdas inesperadas e sofreram com a crise. A recuperação judicial aumentou 55% no Brasil, em 2015, e 45%, em 2016. Essa é uma perda inesperada e reaver esse montante só daqui a 15, 20 anos, e com deságio de 40% ou 50%. Isso pode prejudicar o fluxo de caixa de uma empresa.

Quem serão os candidatos em 2018? Na foto, manifestantes criticam o ex-presidente Lula, atual pré-candidato do PT (Crédito:Eraldo Peres)

DINHEIRO – A crise contribuiu para o crescimento do seguro de crédito.

LEMOS – Sim, porque foge um pouco do “querer pagar”. Ele quer pagar, mas não tem condição de pagar. Acho que a crise acabou contribuindo para que o seguro de crédito no Brasil crescesse. Tanto o mercado interno como o externo, daí a alta de 18%. Quando a gente olha os dados da Susep, que são os dados oficiais, a gente percebe que 70% do total de prêmios emitidos vêm do seguro de crédito para o mercado interno e somente 30%, da exportação.

DINHEIRO – Como está a inadimplência das empresas?

LEMOS – Em 2015 foi uma catástrofe. A questão da recuperação judicial, que aumentou 55%, obviamente nos afeta. Para se ter uma idéia, em 2013, eu recebia um aviso de sinistro a cada quatro meses. Em 2015, virou 10 a 12 por mês, só de recuperação judicial. Tirando os outros sinistros, por mora simples. Então, isso afetou muito o mercado como um todo, tanto que a sinistralidade ficou em 131%. Foi uma perda muito alta. Em 2016, chegou a 133%, quase no mesmo nível. No nosso caso, fizemos um exercício muito grande em 2016. No ano anterior, tivemos um loss ratio (índice de perdas) muito alto, de 134%.

DINHEIRO – O que isso significa?

LEMOS – Estamos falando da parte de informação dos compradores, do limite de crédito. Houve melhora do monitoramento. Hoje, são cerca de 20 mil CNPJs por dia analisados. É uma ferramenta nova que nos permitiu ter rapidez em detectar qualquer fragilidade e receber informações novas das empresas com mais agilidade.

DINHEIRO – Nesses anos de crise terrível no Brasil, além dos acertos para enxergar os riscos, qual foi o seu papel como gestora? Foi preciso se reinventar?

LEMOS – Nos momentos de crise, o mais importante é a proximidade da equipe, é ser muito transparente sobre a situação e reforçar a missão da empresa, engajando e encorajando todos os colaboradores para a ciência que, com a colaboração e o trabalho de todos, os obstáculos serão superados. No meu caso, essa atitude fez com que nós conseguíssemos reverter um cenário de sinistralidade extremamente elevado.

DINHEIRO – Como a senhora tem analisado o processo de maior participação da mulher em cargos de liderança? Como tem colaborado com isso?

LEMOS – Hoje vemos muitos grupos empresariais inserindo a diversidade como uma questão estratégica e entendendo que a diversidade, seja ela de gênero, raça e todas as demais, traz benefícios valiosos para as empresas. No entanto, esta transferência ainda ocorre de forma lenta. A minha colaboração está na participação de fóruns específicos para engajamento de outros executivos nessa causa e no desenvolvimento de mentoring com executivas que buscam crescimento na carreira.