A vsegunda semana de junho começou com a Vale brilhando mais que ouro. Entre os analistas do mercado de ações do Brasil, a maior produtora de minério de ferro e de níquel do planeta, com valor de mercado em torno dos R$ 300 bilhões, apareceu como a queridinha da vez. Um detalhado levantamento feito pelo portal de economia Money Times, com trinta analistas de bancos, gestoras, corretoras e casas independentes, colocou a companhia no topo das recomendações dos especialistas para este mês. A Vale recebeu vinte indicações como empresa da qual os investidores devem comprar ações. Ou seja, quase 70% dos analistas que entendem do assunto recomendam investir em papéis da empresa. O desempenho ganha ainda mais força ao olharmos as demais companhias que compõem o top 5 desse cobiçado ranking. Em segundo lugar, surge a Petrobras, com 18 indicações, seguida por Magazine Luiza (13), B3 (12) e, em quinto, Banco do Brasil e JBS, empatados com 11. Os números são claros: a Vale recebeu quase o dobro das recomendações das duas empresas que aparecem em quinto lugar. O que explica tamanho entusiasmo?

O BTG Pactual é uma das instituições que recomendam a Vale na sua carteira de junho. Para os analistas do banco, um dos fatores cruciais para tamanho otimismo é a recuperação da China, que demonstra já estar superando a fase mais crítica da pandemia de Covid-19, com a reabertura gradual da sua economia. Em relatório aos clientes, o BTG destacou outro ponto fundamental: “A demanda por minério de ferro continua forte como sempre no país, enquanto as agudas interrupções no lado da oferta colocam o mercado em um déficit. Os preços spot (mercado à vista) estão acima de US$ 100 por tonelada”. Mesmo com o consenso do mercado de que o minério não se sustentará nesse valor por muito tempo — é provável que sofra uma queda nos próximos meses —, há estimativas de vários especialistas, casas de análise e bancos, inclusive o próprio BTG, de que o produto nessa faixa de preço possa levar o Ebitda da Vale para perto dos US$ 15 bilhões este ano. Se isso se concretizar, representará uma alta de quase 50% diante do Ebitda (lucro antes de impostos, dívidas e depreciações) do ano passado, que foi de US$ 10,6 bilhões — uma queda de 36,2% em relação a 2018.

O ano de 2019 foi realmente péssimo para a companhia. Além da tragédia de Brumadinho, os números da Vale ficaram todos abaixo do que o mercado imaginava. No ano passado, a mineradora registrou uma baixa contábil (conhecido no mercado como impairment) de US$ 4,2 bilhões. Também houve uma provisão de US$ 670 milhões para a descaracterização de barragens e outra de quase US$ 230 milhões para acordos firmados em virtude do episódio em Brumadinho. Feitas todas as contas, a Vale fechou 2019 com um prejuízo de US$ 1,7 bilhão. Isso depois de lucrar quase US$ 7 bilhões em 2018. Mas houve, ao menos, duas notícias no balanço do ano passado que amenizaram o clima: a receita líquida anual subiu 2,7%, indo para US$ 37,6 bilhões; e a dívida líquida da Vale caiu 8,3% entre o terceiro e o quarto trimestres de 2019, fechando o ano em US$ 4,9 bilhões. Hoje, no entanto, mesmo no cenário de pandemia, os especialistas estão apostando que a companhia terá desempenho bem melhor em 2020. São muitos os fatores que trazem o otimismo do mercado de volta à mineradora.

Especialista em Vale, a analista Cristiane Fensterseifer, do escritório de análises Spiti, faz um raciocínio claro e sóbrio sobre a evolução das ações da empresa nas últimas semanas. Segundo ela, há duas questões a serem observadas. A primeira diz respeito às ações tomadas pela Vale e que favorecem a companhia. Uma delas refere-se ao descomissionamento e encerramento de nove barragens de rejeito, todas em Minas Gerais. Dessas estruturas, duas serão completamente eliminadas. Outras cinco, antes de descontinuadas, serão convertodas no modelo a jusante, bem mais seguro do que o sistema a montante.

As demais serão reformadas, em até 3 anos, para elevar seu fator de segurança. Depois também serão encerradas. Apenas para esse complexo e importante trabalho, a mineradora teve de provisionar US$ 1,9 bilhão, cerca de R$ 10 bilhões na cotação atual. “Mas não dá para enxergar o descomissionamento dessas barragens como mérito da Vale. Afinal, a empresa só fez isso porque foi obrigada pela Justiça”, afirma o deputado estadual João Vítor Xavier (Cidadania-MG), autor de um Projeto de Lei que visava endurecer as regras sobre a atividade da mineração em Minas Gerais. A proposta, porém, não foi aprovada pela Assembleia Legislativa.

EMBARQUE IMEDIATO O porto de Qingdao, na China, recebe o minério que o gigante asiático compra da Vale. A reabertura da economia
local tem sido fundamental para a companhia. (Crédito:Han Jiajun)

MULTAS PAGAS Mesmo que tenha sido uma ação tomada por imposição da lei, as iniciativas da Vale surtiram efeito. “O fato é que, com isso, os riscos são reduzidos. E isso é ótimo para o investidor”, diz Fensterseifer. Outro ponto favorável é o fato de a empresa já ter arcado com grande parte dos custos pela recuperação das regiões afetadas pelos rejeitos da barragem de Brumadinho. A Vale já quitou cerca de 95% das multas ambientais aplicadas pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad) em virtude do desastre. Entre as infrações cometidas pela mineradora e registradas pela Semad há questão graves como poluição de recursos hídricos, degradação de ecossistemas, entrega de laudo falso e o não atendimento de determinação de órgãos ambientais. Ao todo, a Vale foi multada em quase R$ 105 milhões, dos quais a empresa já pagou, segundo a Semad, mais de R$ 99 milhões. É uma despesa considerável, mas que já entrou na conta da companhia e dos investidores. Mais um fator positivo: há uma grande expectativa de que a companhia anuncie, num curto prazo, que voltará a pagar dividendos aos seus acionistas, prática compreensivelmente interrompida após a catástrofe de Brumadinho.

A segunda questão que tem beneficiado a mineradora é o cenário macroeconômico. E, também nesse caso, o mérito não é da companhia. Depois de ver suas ações despencarem cerca de 30% em virtude da pandemia de Covi-19, a empresa engatou uma bela retomada. No dia 23 de março, a ação caiu a R$ 34, abaixo até das cotações após as tragédias de Mariana e Brumadinho. Na quarta-feira (10), as ações fecharam o pregão a R$ 54,20, apenas 3% abaixo do que valiam na véspera do rompimento da barragem de Brumadinho.

Muito desse movimento deve-se à reabertura da economia da China, após a quarentena. A mesma crise global que derrubou o valor de mercado da companhia também a fez subir. Para compensar as perdas provocadas pela pandemia, as grandes economias do planeta, incluindo Estados Unidos e China, terão de investir em infraestrutura. “O minério de ferro é matéria-prima fundamental nesse processo. Obviamente, minério em alta é excelente para a Vale”, diz a analista Cristiane Fensterseifer. A tonelada do minério já está quase 25% acima da mínima à que chegou durante a pandemia: US$ 81, no dia 2 de abril. A especialista destaca, ainda, outro fato que contribui para fortalecer a mineradora brasileira.

NOVO COMANDO O engenheiro Eduardo Bartolomeo assumiu a presidência da Vale no ano passado, pouco depois da tragédia de Brumadinho. É dele o desafio de fazer a empresa seguir crescendo. (Crédito: Aline Massuca)

Há uma briga acontecendo entre China e Austrália, justamente o maior vendedor de minério ao gigante asiático, fornecendo pouco mais de 60% do produto importado pelos chineses. O Brasil vem em segundo lugar, com cerca de 30%. O governo australiano fez duras críticas à maneira com que o presidente Xi-Jinping administrou a crise do coronavírus em seu país. Irritado, o mandatário chinês reagiu impondo barreiras ao comércio com a Austrália. “Mais um fator favorável à Vale, que é a mais cotada para suprir a demanda da China que deixará de ser atendida pelos australianos”, observa Fensterseifer. Colocando todos esses ingredientes na panela, chega-se a uma receita que indica que as ações da Vale podem se aproximar dos R$ 70 ainda este ano, o que representaria uma alta de 30% em relação ao valor da quarta-feira (10). Entre analistas, investidores e empresários do setor, não há dúvidas de que o futuro se mostra promissor à mineradora. Ocorre que, quando se trata de Vale, os problemas também não são poucos.

A começar pelos ecos incessantes das duas catástrofes causadas pela companhia. O rompimento da barragem de Mariana, no dia 5 de novembro de 2015, mostra isso com perfeição. Em fevereiro deste ano, 4 anos e 3 meses após a tragédia, a mineradora desembolsou US$ 25 milhões (cerca de R$ 120 milhões) por um acordo preliminar para encerrar uma ação coletiva contra a empresa nos Estados Unidos em virtude do caso Mariana. O processo foi movido por diversos investidores estrangeiros que acusam a companhia de ocultar informações sobre suas políticas de riscos e procedimentos de segurança. Esses R$ 120 milhões, porém, parecem troco de padaria se comparados aos cerca R$ 7 bilhões que a mineradora depositou nos caixas da Fundação Renova, criada para coordenar os trabalhos de recuperação social, ambiental e econômica dos 41 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo atingidos pelo lamaçal que escorreu da barragem de Fundão. Há, ainda, uma seríssima questão social, já que esses trabalhos de recuperação estão muito atrasados e as famílias que perderam suas casas no episódio até hoje estão morando em pousadas, hotéis e apartamentos alugados pela Renova (leia no quadro).

CASO DE POLÍCIA A catástrofe de Brumadinho causou a morte de quase 300 pessoas e tornou executivos da Vale réus por homicídio. (Crédito:Douglas Magno)

É provável que algo semelhante ocorra em relação a Brumadinho, que causou a morte de cerca de 300 pessoas e danos ambientais incalculáveis. Há cerca de dez escritórios de advo­cacia nos Estados Unidos processando a mineradora na Justiça americana, em nome de investidores estrangeiros. Um desses escritórios é o Pomerantz LLC, que comandou um processo contra a Petrobras, em virtude dos casos de corrupção, e conseguiu um acordo de quase US$ 3 bilhões. Como o episódio de Brumadinho envolve, além do prejuízo financeiro, as mortes de quase 300 pessoas e provas documentais de que a Vale sabia dos riscos na barragem e não agiu para evitar a tragédia, estima-se que uma eventual derrota da mineradora nesses processos possam custar até US$ 5 bilhões (cerca de R$ 25 bilhões) à empresa.

Também é péssimo para a companhia o fato de que, em fevereiro deste ano, onze de seus executivos se tornaram réus por homicídio doloso duplamente qualificado, em virtude de Brumadinho. Entre eles está o ex-presidente da companhia, Fábio Schvartsman, retirado do comando da mineradora em meio à repercussão internacional do episódio. Na ação, o Ministério Público Estadual (MPE) de Minas Gerais afirmou que ficou demonstrada a intenção de “esconder do poder público, sociedade, acionistas e investidores a inaceitável situação de segurança de várias barragens de mineração mantidas pela Vale”. E a coisa fica pior. Em abril deste ano, a Agência Nacional de Mineração (ANM) divulgou relatório apontando barragens em situação de risco no Brasil. Ao todo, são 47 estruturas nessa situação, das quais 26 pertencem à Vale. Em resposta à reportagem da DINHEIRO, a mineradora informou que “está trabalhando para eliminar os riscos de todas as suas barragens”.

RISCO ELEVADO Uma das barragens da companhia incluídas na lista da ANM é a de Gongo Soco, em Barão de Cocais (MG). A situação é tão grave que os moradores da vila mais próxima à estrutura foram retirados de suas casas e estão morando em pousadas pagas pela Vale. A barragem de Gongo Soco está sob nível de emergência 3, que aponta risco altíssimo de rompimento. “Como uma empresa que já causou duas catástrofes ambientais e humanas continua trabalhando da mesma forma irresponsável?”, questiona o deputado João Xavier. “A Vale deixa cada vez mais claro que, para ela, a vida humana tem preço. À empresa, o lucro importa mais que tudo”. Há, ainda, outras questões aparentemente menos complicadas, mas que também entram na conta dos problemas. Principalmente, em relação à imagem que uma corporação passa ao público e aos acionistas.

É o caso do bônus de R$ 19 milhões que a Vale decidiu, há dois meses, pagar aos seus executivos pelo desempenho em 2019, ano do desastre de Brumadinho. “É uma afronta à sociedade! A empresa causa a morte de quase 300 pessoas e ainda paga bônus milionários a seus diretores”, reclama o deputado. Segundo a Vale, “a remuneração variável não inclui executivos envolvidos nas investigações em curso”. No início de junho, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais mandou encerrar as operações de três estruturas da Vale no município de Itabira, em virtude do coronavírus. Funcionários testaram positivo para a Covid-19. Enfrentar problemas nunca será novidade para uma companhia de força global, uma das maiores do mundo no seu setor. E a Vale já mostrou que tem vigor e resiliência para superar crises. Para tirar de vez o pé da lama e seguir caminhando em solo firme, só não pode cometer os mesmos erros do passado.

O duro trabalho de recuperação

MARCHA LENTA Quase 5 anos após a tragédia de Mariana, a reconstrução do povoado de Bento Rodrigues ainda não foi concluída. (Crédito:Christophe Simon)

Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), causou o maior desastre ambiental da Históia do Brasil e matou 19 pessoas. Para reparar os danos sociais, econômicos e ambientais dessa tragédia, as mineradoras Vale, Samarco e BHP – proprietárias da barragem – criaram a Fundação Renova. Para isso, a entidade recebeu cerca de R$ 10 bilhões. Desse total, a Renova afirma já ter aplicado quase R$ 8,5 bi em ações de recuperação, compensação, indenizações e auxílios financeiros para cerca 320 mil pessoas. Segundo a fundação, mais de 1,6 mil obras já foram executadas ao longo do território atingido, que abarca cerca de 40 municípios em Minas Gerais e no Espírito Santo. Há, no entanto, um grande problema. Até hoje – passados quase 5 anos —, as pessoas que tiveram suas casas levadas pelo mar de lama continuam morando em pousadas e apartamentos pagos pela Renova. Sendo que a própria fundação chegou a divulgar que as obras da nova vila de Bento Rodrigues estariam concluídas em meados de 2018. Em Brumadinho, os problemas também continuam. Um ano e meio após o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, também da Vale e que causou quase 300 mortes, os vestígios da catástrofe fazem parte do dia a dia dos moradores. O Secretário de Meio Ambiente de Brumadinho, Daniel Freitas, conta que o rompimento da barragem causou alterações irreparáveis para todo o ecossistema da região. Mas o trabalho está sendo feito. “A Vale pagou R$ 108 milhões em autuações. Esse dinheiro está sendo investido em obras de infraestrutura”, diz Freitas. Em resposta à DINHEIRO, a Vale informou que já celebrou mais de 8,5 mil acordos, beneficiando familiares de trabalhadores próprios e terceiros vitimados pelo rompimento da barragem e outros moradores da região. Além desses, segundo a mineradora, mais de 100 mil moradores do município já receberam auxílio financeiro emergencial. Ao todo, a companhia afirma já ter destinado mais de R$ 3 bilhões a esses programas.