A tragédia humana causada pela maior mineradora do mundo explica sua derrocada nas bolsas. Até a quinta-feira 31, haviam sido confirmados 99 mortos. Outras 259 pessoas continuavam desaparecidas. O fato mais assustador é que o episódio não foi o primeiro. Há pouco mais de 3 anos – em novembro de 2015 –, o rompimento da barragem de Fundão, na região de Mariana, também em Minas Gerais, causou o maior desastre ambiental da história do Brasil e deixou 19 mortos. A barragem pertencia à Samarco, controlada pela Vale e pela BHP. À época, a Vale era presidida por Murilo Ferreira, que seria demitido pouco mais de 1 ano depois. Naquela ocasião, o Ministério Público Federal estabeleceu em R$ 155 bilhões o valor da indenização que as mineradoras deveriam pagar pelos danos causados ao meio ambiente.

Agora, a Vale, sob a presidência de Fábio Schvartsman,que assumiu o comando da empresa em maio de 2017, protagoniza outra catástrofe ambiental e humana. Com o rompimento da barragem de Brumadinho, a  empresa despejou na natureza 12,7 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro, contaminando o meio ambiente e matando centenas de pessoas. Comparando com Mariana, a agressão ambiental será bem menor,  já que o volume representa menos de 25% dos 55 milhões de metros cúbicos de rejeitos que jorraram da barragem de Fundão, em 2015. Por outro lado, no entanto, os danos humanos serão muito maiores. O Corpo de Bombeiros de Minas Gerais já divulgou, com nota de lamento, que é muito pouco provável que se encontre, entre os 259 desaparecidos, alguém com vida. Sendo assim, somando as pessoas que ainda não foram encontradas às 99 mortes já confirmadas, tudo indica que em Brumadinho o número de vítimas fatais ficará em torno de 350. É quase 20 vezes mais do que as mortes registradas em Mariana.

Após o estrago: imagens de satélite mostram que a lama que vazou da barragem da Vale em Brumadinho cobriu uma área de 270 hectares, o equivalente a 377 campos de futebol, segundo o Ibama

Como grande parte dessas vítimas era de funcionários da própria Vale, o desastre já é o maior acidente de trabalho da década em todo o mundo e um dos maiores da história, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E pensar que, ao assumir a Vale, Schvartsman fez questão de frisar: “Mariana nunca mais!”. A realidade se mostrou bem distante das palavras do executivo. “O mais revoltante é a certeza de que essa tragédia de Brumadinho não teria acontecido se a empresa se preocupasse mais com a segurança de suas estruturas e menos com o lucro”, diz o promotor Guilherme Meneghin, de Mariana, que atua no caso do rompimento da barragem de Fundão e tem sido um dos maiores adversários da mineradora no processo de recuperação daquela região.

Os fatos corroboram a declaração do promotor. No ano passado, a Vale resolveu fazer duas novas vistorias na mesma barragem: uma em junho e outra em setembro. Em ambas, o trabalho foi feito pela Tüv Süd, empresa alemã de auditoria técnica. Realizada por dois engenheiros, a análise foi acompanhada de perto por três funcionários da Vale — um geólogo e dois gerentes de área. Nos dois casos, a perícia técnica concluiu que a barragem não apresentava riscos. Os recentes fatos catastróficos indicam exatamente o contrário. Tanto que, na terça-feira 29, a juíza Perla Saliba Brito determinou a prisão dos dois engenheiros e dos três empregados da Vale, salientando que, diante da tragédia ocorrida, a “detenção dos envolvidos era imprescindível”.

A magistrada ressaltou o que parece óbvio: o rompimento da estrutura é um fortíssimo indicador de que os laudos técnicos não correspondiam à verdade. E acrescentou: “Não sendo crível que barragens de tal monta, geridas por uma das maiores mineradoras mundiais, se rompam repentinamente, sem dar qualquer indício de vulnerabilidade”. Para ela, o que vem a seguir “trata-se de apuração complexa de delitos, alguns, perpetrados na clandestinidade”. Duas fontes ouvidas pela DINHEIRO afirmam que os engenheiros e funcionários da mineradora não são os únicos que deveriam estar presos. “Nenhum técnico toma a decisão de burlar um laudo por conta própria. É claro que o alto escalão da Vale sabia disso”, acusa um procurador da República. “O presidente da empresa também deveria estar atrás das grades”, emenda um delegado da Polícia Federal que atua na região.

“A Vale foi avisada. Mas os reparos custariam dezenas
de milhões de reais. A empresa priorizou o lucro”

A VALE FOI AVISADA Muita coisa ainda precisa ser esclarecida. Uma das mais graves é sobre o laudo técnico que a Georadar, empresa de engenharia de Minas Gerais, contratada pela Vale, fez sobre a estabilidade da barragem de Brumadinho, em 2016. Fontes do Ministério Público do Estado (MPE) de Minas Gerais, da Superintendência Regional do Trabalho e da Polícia Federal (PF) ouvidas pela DINHEIRO afirmam que esse laudo apontava diversas irregularidades na barragem, inclusive estruturais.

“Mas a Vale engavetou esse documento, sem dar a devida atenção”, diz uma das fontes que pediu para não ser identificada. “Ou seja, a Vale foi avisada. Mas fazer os reparos necessários custaria algumas dezenas de milhões de reais, e a companhia preferiu, como sempre, priorizar o lucro à segurança da sociedade”, destaca o deputado estadual João Vítor Xavier (PSDB-MG), autor de um Projeto de Lei que visava endurecer as leis que regem a atividade da mineração, mas que não foi aprovado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais. “Os interesses políticos de alguns deputados foram maiores do que o interesse pelo bem da sociedade”. Na tarde da quarta-feira 30, quatro auditores fiscais do Trabalho foram à sede da Georadar, em Minas Gerais, e notificaram a empresa, exigindo todos os laudos técnicos elaborados para a Vale, em relação à barragem de Brumadinho. Segundo a própria Georadar, os documentos devem ser entregues aos auditores até o final da próxima semana.

Desastre ambiental: a lama destruiu refeitório e prédio da mineradora, pousada, casas e vegetação. Número de mortos em Brumadinho já ultrapassa 100; mais de 200 pessoas ainda estão desaparecidas

DO CÉU AO INFERNO E a situação só piora para a Vale. Um ano antes de a Georadar realizar essa vistoria em Brumadinho, outro estudo técnico já indicava vários problemas na barragem. Em 2015, laudo da empresa Nicho Engenheiros, contratada pela Vale para fazer um Estudo de Impacto Ambiental (EIA), apontou diversas falhas, como a presença de sedimentos nas calhas laterais da barragem e o mal funcionamento de alguns equipamentos, entre eles, quatro piezômetros e drenos utilizados para medir a vazão de água. Os piezômetros são instrumentos fundamentais à segurança de uma barragem, já que são utilizados para medir o nível da pressão exercida pelos rejeitos e pela água sobre a estrutura. O relatório da Nicho, produzido a partir do trabalho de 27 técnicos e que ocupou mais de 2 mil páginas, indicava que “alguns piezômetros foram danificados ou suspeita-se não estarem funcionando corretamente”. Sem medir corretamente a pressão dos rejeitos sobre a parede de contenção da barragem, o risco de um rompimento se torna altíssimo.

A Vale recebeu esse laudo. Mas o alto escalão da mineradora deu de ombros ao relatório e seguiu trabalhando normalmente. “Há um interessante ditado no setor da mineração: ‘A barragem dá recado’”, diz o deputado João Xavier. Segundo ele, desgraças como a de Mariana e a de Brumadinho não acontecem de uma hora para outra. “São anos de negligência, de empresas que colocam o lucro acima de tudo, inclusive de vidas de centenas de pessoas. A única preocupação desses executivos é terminar o ano com um bônus bem gordo”. A propósito, há estimativas de que o presidente da Vale ganhe cerca de R$ 50 milhões por ano. “Para aumentar o seu bônus de fim de ano, muitos executivos fazem de tudo. O resultado são barragens desmoronando e pessoas morrendo”, observa o deputado. “Esse modelo de gestão está fadado ao fracasso, por ser insustentável. Acaba levando a empresa ao buraco. Nesse caso, literalmente à lama”.

A catástrofe de Brumadinho mudou por completo o rumo que a Vale vinha trilhando. A empresa viveu um verdadeiro céu de brigadeiro em 2018, com sucessivas quebras de recordes na produção e nas vendas de minério de ferro. Seus resultados financeiros saltaram a níveis históricos. “O único risco para a Vale é o de a economia global virar de cabeça para baixo”, disse Fabio Schvartsman, durante conferência para analistas no segundo trimestre do ano passado. A economia global tem mostrado sinais de enfraquecimento, mas não virou de cabeça para baixo. A derrocada da Vale ocorreu dentro da própria empresa, com a tragédia de Brumadinho. Na sexta-feira 25, poucas horas após o rompimento da barragem, Schvartsman deu uma entrevista coletiva e foi obrigado a reconhecer o inegável. “Não podemos dizer que aprendemos com a tragédia de Mariana”, disse o executivo.

Ainda assim, especialistas do mundo corporativo enxergaram com bons olhos a postura do presidente da companhia. “Fabio não ficou atrás de um staff com respostas burocráticas. Logo depois da tragédia, ele já estava dando declarações, admitindo que essa tragédia no aspecto humano seria muito mais grave”, diz Luiz Marcatti, especialista em governança corporativa da consultoria Mesa Corporate Governance. Na noite da terça-feira 29, Schvartsman fez outro anúncio importante, ao afirmar que a Vale irá interromper as operações em dez barragens que seguem o mesmo modelo de Mariana e de Brumadinho. Todas ficam em Minas Gerais e usam o método de alteamento a montante, uma estrutura mais barata, mas considerada menos segura. A empresa informou que esse processo deve ocorrer ao longo de três anos deverá custará algo em torno de R$ 5 bilhões.

FAMA DE ARROGANTE Segundo Fabio Schvartsman, a desativação dessas barragens já estava sendo cogitada antes da tragédia. Mas esse plano, se realmente existia, provavelmente não incluía a operação em Brumadinho, que deveria elevar ainda mais sua produção. A mina Córrego do Feijão, onde está localizada a barragem que se rompeu, integra o complexo minerador Paraopeba, que ajudou a empresa a conquistar recorde histórico de produção no Brasil, de 104,9 milhões de toneladas no terceiro trimestre de 2018. Os números elevados fizeram com que a Vale alcançasse um lucro líquido de R$ 5,75 bilhões no mesmo período — o lucro recorrente acumulado entre janeiro e setembro foi de R$ 21,7 bilhões, avanço de 35% em relação ao igual período de 2017. O forte desempenho foi reflexo de uma melhor posição da empresa no mercado de produtos premium. Com a demanda em alta, a ideia da companhia era ampliar a estrutura de operação em Brumadinho, elevando a capacidade produtiva da mina Córrego do Feijão e de uma área contígua chamada de Jazida, de 10,6 milhões para 17 milhões de toneladas por ano.

Caos na Vale: manifestantes protestaram em frente à sede da empresa no Rio (à dir.), o CEO da mineradora Fabio Schvartsman (ao centro) e Makoto Manba, um dos engenheiros presos na terça-feira 29

Discreto e focado em resultados nos negócios. Arrogante na visão de ambientalistas e de pessoas do mercado, Schvartsman tem aparecido abatido nas entrevistas pós-Brumadinho. Engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), tem um currículo rico, com mais de 40 anos de experiência em cargos executivos de empresas como Klabin e Grupo Ultra, com passagens pelos conselhos de administração do Grupo Pão de Açúcar, Gafisa, Contax e hospital Albert Einstein. “Fabio chegou com uma visão de melhorar a empresa, reduzir dívidas, se desfazer de ativos não interessantes e melhorar a estrutura de capital para ter uma política de remuneração mais adequada”, diz Pedro Galdi, analista da corretora Mirae.

Sob seu comando, o endividamento da mineradora foi reduzido em mais de US$ 23 bilhões, para cerca de US$ 10 bilhões. No ano passado, a Vale anunciou dividendos de R$ 7,7 bilhões a seus acionistas e programa de recompra de ações de R$ 1 bilhão. Os ótimos resultados financeiros fizeram com que o conselho de administração da companhia aprovasse, em dezembro, a renovação de contrato com diretor-presidente por mais dois anos. Com o acordo, Schvartsman deveria ficar à frente da Vale até abril de 2021. Deveria porque seu afastamento do comando da maior mineradora do planeta tem sido cogitado pelo Governo Federal – um dos maiores acionistas da empresa – e até mesmo dentro da companhia, apesar de negativas oficiais.

Na segunda-feira 28, o então presidente em exercício, Hamilton Mourão, foi firme, ao falar sobre o afastamento da atual diretoria da empresa. “Essa questão da diretoria da Vale está sendo estudada pelo grupo de crise”. Na época da privatização da companhia, em 1997, durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, o governo federal ficou com algumas ações de classe especial chamadas “golden shares”. Hoje, a fatia do governo na Vale é de quase 28%.

“A Vale não havia avaliado adequadamente o risco
e o potencial de danos de uma quebra de barragem”

PREJUÍZOS E PROCESSOS Dados preliminares divulgados pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis), na quarta-feira 30, mostram que o rompimento da barragem da Vale na Mina do Feijão, em Brumadinho, devastou pelo menos 204 hectares de mata, o equivalente a 377 campos de futebol. Limpar tudo isso não vai sair barato. Segundo o analista americano John Tumazos, a mineradora terá de arcar com um custo de quase R$ 6 bilhões para limpeza, indenização, reforço e transferência de outras barragens. Haverá, ainda, os custos das indenizações a ser pagas às famílias das vítimas fatais e aos demais afetados. Segundo cálculos do Ministério Público de Minas Gerais, a Vale terá de desembolsar cerca de R$ 12 bilhões nesse processo.

Durante os três dias que se passaram após o rompimento da barragem, a Vale sofreu diversos bloqueios em suas contas. Até a quinta-feira 31, a Justiça já havia bloqueado R$ 12,6 bilhões da empresa (um dia antes eram R$ 11,8 bihões), além de multas aplicadas pelo governo mineiro e pelo Ibama. Os congelamentos visam o imediato e efetivo amparo às vítimas e redução das consequências da tragédia, além de garantir recursos para reparar os danos causados. É um golpe muito duro para a mineradora. No final do ano passado, a Vale possuía R$ 24,4 bilhões em caixa. Ou seja, os bloqueios atuais já representam mais da metade do caixa da companhia. “Mas não podem congelar muito mais além disso, porque a empresa não pode deixar de pagar salários, impostos e cumprir com seus compromissos”, diz Galdi.

E os problemas da Vale estão longe de terminar. Alegando danos causados a investidores, dois escritórios de advocacia dos Estados Unidos já entraram com ações coletivas contra a empresa: Bragar Eagel & Squire e o Rosen Law Firm. Ao mesmo tempo, os escritórios Wolf Popper, Schall Law Firm e Bronstein, Gewirtz & Grossman abriram investigações. “A Vale não havia avaliado adequadamente o risco e o potencial de danos de uma quebra de barragem em sua mina de minério e os programas da empresa para mitigar incidentes de saúde e segurança foram inadequados”, diz Robert Finkel, sócio do escritório de advocacia Wolf Popper. A mineradora brasileira pagará um preço alto, por não ter evitado que outra tragédia como a de Mariana acontecesse. Nenhum valor será tão elevado quanto a dor das famílias das centenas de vítimas fatais da catástrofe de Brumadinho. Espera-se que, ao menos dessa vez, a Vale aprenda.


Sistema de descarte da Samarco teria evitado tragédia da Vale

Desde outubro, um entra-e-sai de caminhões, tratores e retroescavadeiras dá um clima de movimentação às instalações desativadas da mineradora Samarco, em Mariana (MG). O trânsito de máquinas e funcionários se explica pelas adaptações que a empresa está fazendo em seu modelo de descarte de rejeitos. Para voltar a operar, a empresa, protagonista do maior desastre ambiental da história do País, há três anos, propõe aposentar o sistema de represas, utilizando apenas o modelo de cavas. Ele consiste em secar a lama e compactar o barro em imensas valas, de onde o minério foi retirado, reduzindo a zero o risco de deslizamentos ou rompimentos. O modelo de cavas, até cinco vezes mais caro, poderia ter evitado a tragédia de Brumadinho. “A Cava é um local confinado, o que confere ainda mais segurança”, afirmou o presidente da Samarco, Rodrigo Vilela. “O início das atividades de implementação do novo sistema de disposição de rejeitos é um passo fundamental para a retomada das nossas operações”, acrescentou o executivo.

Chamado de Cava Alegria Sul, o local terá capacidade para receber 16 milhões de metros cúbicos e será utilizado como área para disposição de rejeitos oriundos do processo de beneficiamento do minério. A Samarco obteve, em dezembro de 2017, junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad), as licenças prévia (LP) e de instalação (LI), que permitem a preparação do local. Por possuir uma formação rochosa e estável, permite a contenção segura do rejeito nela depositado. A previsão é de que as intervenções estejam concluídas no segundo semestre deste ano. No pico das obras, cerca de 750 empregados diretos e indiretos estarão no canteiro de obras.

Colaborou: Moacir Drska