uma das práticas mais recorrentes da gestão Bolsonaro é testar a opinião pública sobre ideias em relação às quais não há consenso sequer dentro do próprio governo – muito menos entre os demais poderes e a sociedade. É o balão de ensaio, termo usado tanto na química quanto na aeronáutica para experimentos cujo resultado é incerto. No primeiro caso, mistura-se em um tubo de vidro componentes para observar a reação que provocam. No segundo, um pequeno balão é liberado na atmosfera com o objetivo de sinalizar a direção dos ventos. O governo age das duas formas. Desorientado, lança propostas com o intuito de medir a reação. Quando uma delas é bem aceita, segue-se em frente. Se for rechaçada, basta dizer que era fake news – outra armação bastante utilizada pelo governo. Ao fatiar a proposta de reforma tributária, a equipe econômica seguiu esse raciocínio. Primeiro, apresentou uma fórmula praticamente inerte, incapaz tanto de causar reações adversas quanto de resolver qualquer desequilíbrio fiscal. Agora, tenta adicionar um novo ingrediente, esperando as reações do Congresso, do mercado e da população em geral para saber se avança ou desiste. Nesse caso, o item a ser adicionado à proposta de reforma é uma variação da temida CPMF, o impopular imposto sobre movimentações financeiras. Como ocorre em muitos experimentos científicos, o resultado foi adverso.

Coube, então, ao ministro Paulo Guedes dourar a pílula, defendendo a tributação como único remédio para desonerar a folha de pagamento. Nem isso bastou. A chance de retorno da mordida fiscal nas transações dos brasileiros pegou tão mal, que não adiantava negar a veracidade da notícia, como se faz na política do balão de ensaio. Ao invés de servir para tatear a viabilidade da criação de um novo imposto, a ideia pode dissolver a proposta de reforma tributária como um todo, além de já ter criado indisposições com os presidentes da Câmara e do Senado. O governo, além de querer impor uma nova versão da CPMF, tem o desafio de unificar e simplificar o sistema tributário brasileiro. O assunto é discutido há décadas, mas nenhum presidente conseguiu levar adiante.

A proposta elaborada pela equipe do ministro Paulo Guedes concorre com outras duas: a PEC 45, criada na Câmara dos Deputados, e a PEC 110, originária do Senado. Desconsiderando ambas, o executivo federal criou o Projeto de Lei (PL) 3887, fatiado em quatro partes, que prometia mudar as estruturas enraizadas do complexo sistema tributário brasileiro. Por melhor que fosse a proposta, ela já saiu errada da gaveta de Guedes. Sem uma relação amistosa com o Congresso Nacional, em meio a uma pesada crise econômica e às vésperas de eleições municipais no País, não adiantava que os presidentes da Câmara e Senado sinalizassem interesse em levar a discussão adiante. O fato é que a questão da CPMF se sobressaiu, desgastando a equipe do Ministério da Economia.

Contrariado, Paulo Guedes chegou a dizer que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), estaria em conluio com a esquerda para barrar projetos liberais do governo. A resposta veio a cavalo. Maia rebateu, afirmando que o governo não tem votos para aprovar nem privatizações, nem a CPMF e que “não adianta culpar os outros”. Ele ainda chegou a declarar que o ministro estava “desequilibrado” e recomendou que ele assistisse ao filme A Queda, que retrata as últimas horas de Hitler no comando da Alemanha nazista. Nessa intriga, o teor da reforma se perdeu. E nela ainda residiam dúvidas pertinentes.

Segundo o especialista João Cipriano, sócio da aérea tributária do escritório Miguel Neto Associados, o PL 3887 levará à judicialização, principalmente do setor de serviços, que terá sua alíquota média triplicada com nova Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). O imposto substituiria as atuais contribuições sobre a receita e a folha de pagamento das empresas (Confins e PIS/Pasep). Mas há um longo caminho para convencer governadores e prefeitos – hoje responsáveis, respectivamente, pela arrecadação do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do ISS (sobre Serviços) – de que o governo federal não dificultará o acesso a esses recursos. “Por mais que concordem com a reforma, eles se sentem mais seguros sendo responsáveis pela arrecadação direta”, afirmou Cipriano. Mais cético, Felipe Fleury, sócio do Zockun & Fleury Advogados, entende haver despreparo dos estados e municípios sobre essa substituição tributária. “Não acho que eles estejam prontos. E não acho que seja fácil de explicar”, disse.

Wallace Martins

“Porque Paulo Guedes interditou as discussões da reforma tributária? Ele está desequilibrado. Recomendo ao ministro assistir ao filme A queda” Rodrigo Maia presidente da Câmara dos deputados.

PEC 45 Na quarta-feira (30), uma nova versão da proposta para a reforma tributária do Comitê Nacional de Secretários da Fazenda, Finanças, Receitas ou Tributação dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz) foi enviada ao Congresso. Ela altera alguns pontos em relação ao texto anterior, encaminhado no fim de 2019, como a inclusão de serviços digitais dentro do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O texto é o preferido de Rodrigo Maia e já gerou atritos entre ele e Guedes, por obrigar a União a criar um fundo para bancar as perdas de arrecadação nas exportações, isentas de tributação. Para diminuir o conflito, o fundo mudou de nome, trocando a palavra “compensação” (das exportações) por “incentivo”. Esse fundo teria repasse de até R$ 480 bilhões em 10 anos e é defendido por Maia. É que o presidente da Câmara endossa o pedido dos governadores. Guedes, por outro lado, é totalmente contra o aumento do dispêndio da União no que considera uma recriação da Lei Kandir, alvo de disputas entre o governo federal e estados por mais de 20 anos.

Enquanto a Câmara flerta com outras propostas, Guedes tentar provar que a primeira das quatro etapas de reforma a ser apresentada pelo governo (a unificação de PIS e Cofins) seria suficiente para reduzir a burocracia do sistema. “A adoção da CBS poderá mostrar aos estados e municípios os ganhos que um imposto sobre o valor agregado irá trazer ao País, o que pode angariar o apoio desses entes, em um curto espaço de tempo”, afirmou. Para ele, a CBS é o “primeiro e importante passo para o incremento da qualidade tributária”. Com seu balão desgovernado, Bolsonaro precisou recuar. Enterrou a CPMF e admitiu que não há ambiente político para votar a reforma tributária antes das eleições municipais, em novembro. Paulo Guedes, que já vem perdendo espaço no governo, tentou contornar a situação, mas outro ministro, o das Comunicações, Fabio Faria, admitiu que era hora de pisar no freio. Segundo ele, está clara a resistência dos políticos em tratar de um assunto tão sensível em um período de forte aproximação com suas bases eleitorais. Para Faria, isso não foi uma derrota, mas uma mudança de estratégia. Contrariado, Guedes se limitou a dizer que o calendário é político e que ele não poderia fazer mais nada. O balão esvaziou de vez.