As agências bancárias operaram de forma restrita durante certo ponto da pandemia no Brasil, que mudou a rotina de centenas de milhares de trabalhadores de bancos, fintechs e outros entes do sistema financeiro. Nos bastidores, porém, muitas equipes seguiram trabalhando em um esforço estratégico para criar novas definições e protocolos que os clientes só vão começar a perceber a partir de novembro deste ano. Os dois principais pilares dessa transformação digital dos bancos atendem pelos nomes de open banking e PIX. O open banking obriga os bancos a compartilhar dados sobre seus clientes e serviços com outras instituições, por meio de integração padronizada das plataformas. Essa troca de dados só poderá ocorrer se o cliente aprovar — e será limitada às informações que ele desejar. Em contrapartida, o correntista poderá receber ofertas mais vantajosas de concorrentes dos bancos nos quais tem conta. O open banking é a principal aposta do Banco Central (BC) para estimular um forte aumento de concorrência e a diminuição das taxas dos bancos. “Os nossos projetos são muito abrangentes”, afirmou à DINHEIRO José André Pereira, chefe do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do BC. “Se comparar com o open banking da Inglaterra, que é a referência, estamos indo para um escopo muito maior, que é o do open finance.” Isso significa que, no fim do caminho, haverá trocas de informações até dos investimentos dos clientes.

Em tese, quando tudo estiver pronto, o usuário poderá até acessar uma plataforma que integre suas informações espalhadas por diversas instituições e aplicativos bancários. Isso é importante, considerando que os cinco maiores bancos brasileiros concentram 81% dos ativos totais do segmento, segundo o BC. A promessa é de estímulo à bancarização dos cerca de 40 milhões de brasileiros ainda fora do sistema. Segundo a fintech de conta digital alt.bank, esse movimento poderia injetar R$ 400 bilhões anuais na economia, em cinco anos, e ampliar o PIB nacional em 5,5 pontos percentuais até 2025. “De forma diferente do resto do mundo, no Brasil, a desbancarização não é por falta de infraestrutura, mas por custo”, disse o CEO da fintech de crédito Rebel, Rafael Pereira, que também preside a Associação Brasileira de Crédito Digital.

PIX, por sua vez, é a sigla para o novo sistema de pagamentos instantâneos. Diferentemente dos atuais DOC e TED, será muito mais ágil, operando em tempo real em regime 24×7 o ano todo e com custo bem menor. Na quinta-feira (13), o BC divulgou as primeiras regras para o sistema, que deverá movimentar R$ 16 trilhões anualmente. A ideia do PIX é evitar que alguma empresa domine os pagamentos instantâneos, como aconteceu na China com o WeChat, criado pela Tencent, e o Alipay, do Alibaba. No Brasil, irão concorrer com o PIX as ferramentas de transferência do WhatsApp, PicPay e Mercado Pago. O PIX deverá entrar em funcionamento em novembro deste ano, em uma espécie de “soft opening”, mas o BC antecipou para outubro o envio dos registros das chaves de endereçamento. Assim, os consumidores já poderão se cadastrar e avisar como desejam ser identificados no sistema. Até o final de julho, 980 instituições bancárias haviam aderido ao sistema, incluindo as 34 obrigadas a isso por terem mais de 500 mil contas cadastradas. “Apesar de alguns players dizerem que estão prontos, na prática, ninguém está pronto”, afirmou à DINHEIRO o superintendente de open banking e de pagamentos instantâneos do Itaú Unibanco, Ivo Mosca. “Para o open banking, a gente nem sequer iniciou o desenvolvimento. Até porque toda a camada de especificação desse projeto ainda vai ser definida pelo que o BC tem chamado de autorregulação assistida”, disse Mosca.

O diretor de estratégias para pequenas e médias empresas e para open banking do Itaú, Carlos Eduardo Peyser, afirmou estar otimista com relação aos prazos. “Estamos trabalhando com tremendo afinco, porque o objetivo não é só entregar a exigência regulatória”. Segundo ele, a estratégia é usar o PIX como uma plataforma que permita distribuir outros tipos de serviços – ainda que não revele quais serão. A princípio, os grandes bancos parecem ser os maiores candidatos a perder com a chegada do open banking. Eles possuem informações estratégicas de seus correntistas e precisarão compartilhá-las. São dados que levaram décadas para ser compilados e integrados. Agora, uma fintech poderá chegar e oferecer produtos ou crédito menos custoso com base no perfil do cliente, sem a necessidade de fazer o mesmo investimento. Segundo a federação de bancos, a Febraban, as grandes instituições financeiras vão ter acesso a informações adicionais de seus próprios clientes e também de novos. “Vamos lidar com uma massa de dados bem maior, que, se bem trabalhada, dará um diferencial competitivo muito forte”, disse Leandro Vilain, diretor-executivo de inovação, produtos e serviços bancários da Febraban.

Para o CEO da fintech Gorila, Guilherme Assis, o open banking significa para o setor financeiro aquilo que o e-commerce foi para o varejo. O consumidor poderá entrar numa plataforma de alguma instituição e comparar as taxas cobradas numa conta corrente, juros de financiamentos e fechar com quem oferece custos menores. “O conceito vai mudar, porque a necessidade de agências para operações financeiras será cada vez menor”, afirmou Assis. “A pandemia de coronavírus mostrou isso. As pessoas estão sendo obrigadas a se digitalizar.” É aí que open banking e PIX se comunicam.

SEM BOLETOS Segundo o BC, o uso do PIX custará apenas R$ 0,01 por lote de 10 transações, pago pelo lado recebedor. Hoje, DOC e TED custam cerca de R$ 1 para os bancos, que podem cobrar até R$ 10 do cliente pelo serviço. Com um valor insignificante e a concorrência ampliada, a tendência é que o cliente nem seja cobrado. Além disso, também os boletos de cobranças de serviços como energia e água, além de tributos, poderão ser substituídos pelo PIX. Isso tiraria mais uma fonte de receita das instituições. “Poderá haver migração de parcela de todos os instrumentos para o PIX, sem a eliminação de nenhum deles. Até mesmo do dinheiro, que é bastante custoso para a sociedade”, disse Carlos Eduardo Brandt, chefe-adjunto do Departamento de Competição e Estrutura do Mercado Financeiro do BC. Uma outra funcionalidade mencionada que pode operar no PIX é permitir fazer saques de dinheiro no varejo, diminuindo a necessidade de caixas eletrônicos.

Outros agentes de mercado que podem ser afetados pelo PIX são as empresas de maquininhas e as bandeiras de cartões. Isso ocorrerá se as pessoas se acostumarem a fazer transferências pelo sistema, em vez de usar plástico – em especial, os cartões de débito. Um estudo da consultoria alemã Roland Berger estimou que credenciadoras poderão perder R$ 13 bilhões em faturamento anual com o PIX. Essas empresas, no entanto, não pretendem esperar sentadas. Para o CEO da Mastercard, João Pedro Paro Neto, o PIX vai complementar e não concorrer com o seu negócio. Pode ainda incentivar a migração de mais pagamentos para o QR Code, uma forma de pagamento digital que avançou no Brasil durante a quarentena. A mesma postura é adotada por Tulio Oliveira, vice-presidente da Mercado Pago, que afirmou à DINHEIRO que o PIX deve estimular o mercado de pagamentos digitais.

Beto Nociti

“Se comparar com a inglaterra, que é a referência, estamos indo para um escopo muito maior, que é o open finance” João André Pereira, chefe de regulação do sistema financeiro do Banco Central.

Segurança Se o aumento da concorrência já seria motivo suficiente para tirar o sono de muitos executivos e banqueiros, há outro aspecto que pode causar mais preocupação. Segundo o sócio-líder da consultoria KPMG, Cláudio Sertório, no open banking, a questão que está deixando todo mundo de cabelo em pé é a responsabilização. “Se os dados do cliente vazarem na hora de transitar entre instituições e ele quiser reclamar, quem vai assumir a responsabilidade depois de eles rodarem todo o mercado?”. Se o mercado atingir o ponto do open finance, esse temor de perda de sigilo fica ainda mais preocupante, por envolver investimentos pessoais.

Quanto ao PIX, o temor envolve questões mais analógicas e até de risco de violência física. Funcionando 24 horas por dia, inclusive em feriados, o novo sistema de pagamentos permite transferências em tempo real, a qualquer hora. Segundo definições preliminares do BC, pelo menos 50% das transações precisarão ser efetuadas e confirmadas para os dois pontos da transmissão em até seis segundos (algo que DOC e TED não fazem – será o fim da desculpa “fiz a transferência, mas o meu banco não completou”. Ou seja, o dono do comércio poderá contar com o recurso em seu caixa praticamente em tempo real. Não precisará esperar a adquirente da maquininha fazer o depósito em um ou mais dias úteis, conforme o contrato. As empresas poderão criar um código de barras próprio para que sua clientela faça transferências sem a necessidade de intermediários. Algo sem precedentes.

Essa agilidade, porém, traz uma forte preocupação quanto à criatividade de criminosos. CEO e cofundador da PagBrasil, fintech de processamento de pagamentos, Ralf Germer está otimista, mas lembra que no Brasil as pessoas costumam sair com pouco dinheiro no bolso, por causa do risco de assaltos nas ruas. Com o PIX, andar com o telefone celular será praticamente a mesma coisa que estar portando todo o dinheiro da sua conta-corrente. “Um criminoso pode te assaltar e dizer ‘abra seu aplicativo do banco, escaneie meu QR Code e passe todo o seu dinheiro para a minha conta’”, disse Germer. Para ele, o conceito e as normas de segurança atuais terão de ser repensados. “Nós até criamos alguns mecanismos que revertem a operação, porque pode haver desistência de compra em um ponto de venda”, afirmou Germer. A inteligência artificial pode ajudar muito a proteger o cliente, por meio do monitoramento de transações fora do padrão e outras rotinas de verificação. A digitalização do sistema financeiro irá modificar a maneira como o dinheiro troca de mãos. Como em tantas novidades, ela não chega imune a alguns riscos.