Se há uma tradição que não muda a cada 31 de dezembro é a definição de metas e promessas para o ano que se inicia. Avançar, melhorar, ajustar, crescer… Na gigante Anheuser-Busch InBev (AB InBev), maior cervejaria do mundo, a resolução de Ano-Novo também foi definida: encolher de tamanho, com venda de ativos de menor rentabilidade, para encorpar o caixa e fortalecer financeiramente a companhia. A fórmula não é tão simples como encontrar o equilíbrio de água, malte e lúpulo que resulta em uma cerveja, mas tem sido bem-sucedida pelo grupo em todo o mundo.

A estratégia começou a ser elaborada no ano passado. A empresa se desfez de ativos para reduzir o endividamento e amenizar o impacto da queda de volume global no consumo de cerveja a partir do isolamento social pela pandemia da Covid-19. A AB InBev reduziu seu endividamento em US$ 29,5 bilhões — passando de US$ 104,2 bilhões, ao final de 2018, para US$ 87,4 bilhões, em junho de 2020, uma diminuição de 16,1%. Parte considerável dessa dívida veio da compra, após três ofertas rejeitadas, da sul-africana SAB Miller, em 2016, por US$ 109 bilhões.

A cervejaria argumenta que, mais leve, terá mais fôlego para enfrentar o cenário de retomada no mundo pós-pandemia. Olhando por outro prisma, a imagem é a do copo meio cheio. Nem para pessimismo, nem para excesso de confiança. “Durante a pandemia, as pessoas se voltaram a marcas que conheciam, que confiavam e que costumavam consumir”, disse o CEO global da AB InBev, o brasileiro Carlos Brito, durante teleconferência com investidores, em outubro. “O sucesso da operação envolveu a maneira como fomos ágeis em nos adaptar às novas necessidades dos consumidores”, afirmou.

O empenho em reduzir o endividamento será intensificado nos próximos meses. O foco no core business, a cerveja, será ampliado. No último dia de 2020, a AB InBev anunciou venda de 49,9% da operação de fábricas de latas de alumínio nos Estados Unidos a um consórcio de investidores liderado pela Apollo Global Management, o que rendeu a captação de US$ 3 bilhões. O controle operacional segue nas mãos da cervejaria. No comunicado de 31 de dezembro, a empresa afirmou que a transação “permite criar valor adicional ao acionista, otimizando o negócio a um preço atrativo e gerando receitas para pagar dívidas”. A companhia também concluiu, em junho, a venda da operação da cervejaria Carlton & United Breweries, subsidiária australiana, por US$ 10,8 bilhões para a japonesa Asahi Group Holdings.

Outra movimentação importante foi o resgate de títulos de vários países, que somaram US$ 15,7 bilhões. Foram resgatados US$ 11 bilhões em abril e US$ 4,7 bilhões em julho. “Continuaremos a administrar nossa carteira de dívida, da qual 95% detém taxa de juros fixas e os vencimentos estão bem distribuídos ao longo dos anos”, resume o documento divulgado ao mercado e acionistas.

Com valor de mercado de US$ 139,5 bilhões e dona de marcas como Brahma, Skol, Budweiser, Corona, Beck’s e Stella Artois, entre as mais conhecidas, a companhia foi fundada em 2008 a partir da fusão entre InBev (junção da brasileira Ambev com a belga Interbrew, em 2004) e a americana Anheuser-Busch, dando origem à AB InBev.

O movimento da cervejaria sediada na Bélgica e que tem como sócios os bilionários brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, não afeta a operação da brasileira Ambev, quem tem a AB InBev como principal acionista, com 62% do capital. Sólida e com ações de tecnologia implementadas durante a pandemia, a empresa brasileira conseguiu superar a crise adaptando-se, principalmente, à mudança no perfil do consumo de cerveja no Brasil, que deixou de buscar a bebida nos bares, então fechados, para comprar pela internet e em supermercados.

Ainda que o volume total das bebidas produzidas pela companhia belgo-brasileira nos primeiros nove meses de 2020 tenha registrado queda de 7,9% sobre o mesmo período do ano anterior, os números do terceiro trimestre confirmam o processo de retomada, com alta de 2,2% sobre 2019. Em relação à receita, também há queda comparando o período de janeiro a setembro do ano passado, com US$ 34,1 bilhões, contra US$ 38,9 bilhões nos primeiros nove meses de 2019. No segundo trimestre, auge da pandemia, o faturamento alcançou US$ 10,2 bilhões, contra US$ 13,5 bilhões no mesmo período do ano anterior. Já no terceiro trimestre, essa diferença diminui. A companhia faturou US$ 12,8 bilhões, pouco menos que o reportado nos meses de julho a setembro de 2019, que ficou em US$ 13,1 bilhões.

SOLIDEZ Com grandes desafios ainda a enfrentar, a gigante global da cerveja mostrou grande resiliência no período crítico e viu, nos últimos meses, seus valores na Bolsa de Nova York passarem a alcançar ritmo constante de crescimento. No pregão de terça-feira (5), a ação da companhia fechou avaliada em US$ 70,75, valor abaixo apenas do registrado no fim de janeiro de 2019, quando foi negociada a US$ 75,30 (6,04% a menos). Desde o fim de março, os últimos pregões mensais na bolsa localizada em Manhattan foram de sucessivas subidas, salvo pequena oscilação negativa no fim de outubro. Mesmo que ainda falte um pouco para recuperar para valer o patamar e se aproximar dos dados do início do ano passado, a negociação do papel da AB InBev foi 101,1% superior ao pior preço do ano, registrado no dia 18 de março, nos primeiros movimentos dos governos em todo mundo para o isolamento social, negociada, à época, a US$ 35,18.

O momento de transformação da cervejaria coincide com as especulações sobre uma eventual troca do comando. Desde o início, a empresa está nas mãos do executivo Carlos Brito. Quando o tema é sucessão, o CEO desconversa. “O que posso dizer é que farei esse tipo de apresentação para vocês por muitos trimestres ainda”, afirmou. “Não há nada para se preocupar.”

Ainda que negue a mudança, o mercado enxerga três nomes como possíveis substitutos de Brito no comando da cervejaria: o catarinense Michel Doukeris, presidente para a América do Norte da companhia — visto como favorito —, o carioca Ricardo Tadeu de Souza, que cuida da área de comércio digital, e Carlos Eduardo Lisboa, presidente para a América Central. Os três têm a Ambev como origem, a exemplo de Carlos Brito, que está na companhia desde 1999, ainda na época da Brahma.

AUMENTO NO PÓS-COVID O volume total de bebidas produzidas pela companhia registrou alta de 2,2% no terceiro trimestre, o que confirma o processo de retomada. (Crédito:Matt Cardy)

DESTAQUE BRASILEIRO No balanço do terceiro trimestre da AB InBev, a operação brasileira, com a Ambev, é destaque positivo. O texto considera “um desempenho muito saudável do nosso negócio de cerveja no Brasil”, que, em volume, registrou alta de 25%. A receita das marcas globais da companhia no País cresceu 8,1% no período. Outro ponto observado foi o investimento em plataformas de e-commerce, como o Zé Delivery, hoje presente em todos os estados brasileiros, a partir de tecnologia para conectar redes de varejo aos consumidores, para entrega de bebida gelada. E de forma rápida. “A pandemia mudou a forma como fornecemos os produtos, mas os consumidores se mostraram fiéis a marcas que confiam. Além disso, tudo está sendo digitalizado”, afirmou Brito.

Fato é que o mercado de cervejas no Brasil conseguiu atravessar relativamente bem a turbulência sentida principalmente entre abril e maio, auge do isolamento social e de fechamento de bares e restaurantes no País. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Cerveja (CervBrasil) mostram que o volume comercializado em 2020 deve, no mínimo, ser igual ao de 2019, com 13,7 bilhões de litros, e possibilidade de ser um pouco acima. Os números devem ser consolidados até o fim do mês.

O fechamento dos principais pontos de vendas de bebidas no auge da pandemia não alterou apenas o canal de compra, mas o formato da embalagem. Até 2019, 60% da cerveja consumida era em embalagens retornáveis, basicamente as garrafas de vidro de 600 ml. Hoje, o cenário se inverteu, com 70% para latas e long neck.

Para o diretor-executivo da CervBrasil, Paulo Petroni, a extensão do auxílio-emergencial até o fim de 2020 e a chegada do verão contribuíram para a recuperação nas vendas de cerveja no País. “As quedas de abril e maio foram compensadas a partir da recuperação de setembro. Em novembro, o cenário já era de alta”, afirmou.

Especialistas do tema no Brasil corroboram com o fato de que a Ambev é um dos principais pilares da AB InBev e demonstrou robustez no período mais crítico de 2020, inclusive com lançamentos de produtos durante a pandemia, como a Brahma Duplo Malte. Usando um termo muito usado na Economia, a brasileira é vista como “vaca leiteira”, que tem produtos que geram muito lucro, são estabelecidos no mercado e reconhecidos pela qualidade e reputação.

Os números da Ambev no penúltimo trimestre de 2020 confirmam o bom desempenho da subsidiária brasileira. Entre julho e setembro do ano passado, a empresa registrou receita de R$ 15,5 bilhões, alta de 31,1% sobre o mesmo período de 2019, com R$ 11,9 bilhões. De janeiro a setembro, a companhia alcançou R$ 39,8 bilhões, ante R$ 36,7 bilhões nos mesmos meses de 2019. O lucro líquido ajustado, de R$ 2,49 bilhões, foi 2,2% superior ao mesmo período de 2019. Outro ponto a ser considerado é que sua principal concorrente no País, a Heineken, enfrentou problemas de desabastecimento por falta de insumos, como vidro para produção de garrafas.

O analista do setor de alimentos e bebidas da XP Inc., Leonardo Alencar, acredita que um ponto importante a ser destacado é a compreensão da equipe de liderança da cervejaria em ampliar o leque de opções para atender a novos perfis de clientes. “A empresa tem um enorme diferencial competitivo, que é a grande capilaridade comercial e a força de distribuição no Brasil”, afirmou. “A Ambev também vem conseguindo explorar o espaço para novos produtos, com lançamentos importantes, como o da linha Premium.”

Em relatório sobre o desempenho da cervejaria brasileira, a XP diz: “Poucos mostraram a mesma resiliência em 2020, com players menores ainda fragilizados pela pandemia.” Segundo a CervBrasil, a Ambev hoje tem 55% de market share, com a Heineken com 21%, e o grupo Petropólis, que produz a Itaipava, com 16%. O restante fica com as demais empresas do segmento.

Analista do banco Itaú BBA, André Hachem entende que a empresa soube compreender a nova necessidade do consumidor a partir do isolamento social. “A Ambev se destaca entre as concorrentes, principalmente pela evolução tecnológica. Há desenvolvimento grande focado em acesso aos clientes”, disse. Além do Zé Delivery, ele destaca a mudança na plataforma B2B da Ambev, que facilitou a forma do cliente comprar os produtos, por meio de aplicativo e com a ajuda maior do vendedor, que passou a ser mais uma espécie de consultor, trazendo dicas de consumo, mostrando opções, discutindo o melhor cenário para o ponto de venda.

Graças ao bom desempenho da subsidiária brasileira e às ações tomadas em 2020, a AB InBev tem grandes motivos para acreditar que 2021 será um ótimo ano para brindar os resultados no cenário de retomada. E com o copo cheio. De cerveja.

O QUE É A AB INBEV

Divulgação

Em 2004, foi criada a InBev, a partir da fusão da brasileira Ambev com a belga Interbrew

Quatro anos depois, a companhia comprou a americana Anheuser-Busch, dando origem à AB InBev

Fundada pelos bilionários brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos
Alberto Sicupira

Tem como CEO o executivo brasileiro Carlos Brito

Dona de marcas como Brahma, Skol, Budweiser, Corona, Beck’s e Stella Artois

Valor de mercado: US$ 139,5 bilhões