Imagine a sua vida desta maneira. Um dia você acorda e descobre que está proibida de ir ao trabalho. Nunca mais poderá sair na rua sem a companhia de seu pai, irmão ou marido. Terá de andar com uma túnica, a burca, que cobre todo o corpo, inclusive o rosto. Se não estiver vestida até os pés, será chicoteada e espancada. As janelas de sua casa serão pintadas de preto para que você não veja ou seja vista.

Na casa ao lado, a sua vizinha acaba de morrer durante o parto porque foi proibida de ser tratada pelo médico de plantão no hospital. Ela deu à luz uma menina, que não poderá ir à escola, cantar, dançar, praticar esportes. Enquanto isso, você consola uma amiga, viúva, mãe de três filhos, que sustentava a família com o salário de professora. A escola foi fechada e ela não tem mais permissão para trabalhar. Nem mendigar a ex-professora pode. Isto também é proibido. Se você ousar pintar as unhas, terá os dedos decepados. Mesmo assim, você ousa. Vai até o mercado negro, arriscando a própria vida. Compra esmalte e batom. Por baixo dos panos negros, você se pinta para manter a dignidade. Na hora de dormir, você apaga a luz e chora pela jovem mãe que foi metralhada com o filho nos braços. O garoto estava com uma forte diarréia. Desesperada, ela saiu correndo de casa em busca de ajuda médica. Seu único erro: foi vista em público sem a companhia do marido.

Num pedaço montanhoso e árido do centro-oeste da Ásia, este pesadelo é real. O endereço das atrocidades é o Afeganistão, país devastado por guerras, rebeliões e, mais recentemente, pela sandice dos fundamentalistas islâmicos do Taliban. Eles ganharam espaço na mídia ocidental, em março passado, quando destruíram duas gigantescas estátuas de Buda, esculpidas em um penhasco, entre os séculos 2 e 5, na província de Baiyan. O mundo ficou chocado. Há, porém, muito mais sendo implodido no Afeganistão. Desde que a milícia religiosa Taliban assumiu o poder, em setembro de 1996, a vida das mulheres afegãs virou um inferno. Com leis que incluem apedrejamento e forca para as mulheres adúlteras e espancamento para aquelas que deixarem o tornozelo à mostra, o regime do Taliban praticamente baniu a figura feminina da sociedade afegã. Para entender o horror que visitou o Afeganistão é preciso ouvir as histórias destas mulheres de rostos belos e olhos fortes que vivem por baixo do véu da intransigência.

Como zumbis, elas se arrastam pela vida à espera da próxima pedrada, da próxima rajada de metralhadora, do próximo insulto. Elas só não têm medo de uma coisa: da morte. Já estão mortas. Só aguardam a hora de serem enterradas. Agora, você vê as fotos da humilhação, da dor, do descalabro, do abandono. E você escuta o lamento desesperado que ecoa dessas imagens. E enquanto os seus olhos estiveram sobre esse retrato, você vai entrar num ponto do planeta onde a mulher está retornando ao pó.

Mas você vai saber também que nem tudo está perdido. No meio desse cenário árido de desesperança, surge uma resistência. É a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (Rawa), uma entidade formada por duas mil mulheres que vivem na clandestinidade dentro e fora do Afeganistão. A Rawa foi fundada em 1977, em Cabul, por um grupo de intelectuais afegãs lideradas por Meena (para proteger os familiares, elas não usam o sobrenome), com o objetivo de lutar contra a invasão soviética. Dez anos depois, Meena, com apenas 30 anos, foi assassinada por agentes da KGB, a polícia secreta da União Soviética. Atualmente, a Rawa, que transferiu a sua sede para Quetta, no Paquistão, representa a única força de oposição aos homens do Taliban. A principal tarefa da Rawa é atender os 2,6 milhões de refugiados afegãos. Nos campos de refugiados, a Rawa mantém hospitais e escolas para meninas e meninos. Mesmo sob a intensa vigilância Taliban, a entidade atua secretamente no Afeganistão. Escolas clandestinas para meninas e assistência médica para mulheres nas áreas mais remotas do país são as principais ações dessas bravas guerreiras.

DINHEIRO conversou com uma das líderes do Rawa, a afegã Mehmooda, que vive num campo de refugiados no Paquistão. Ela, assim com todas as integrantes do Rawa, vem recebendo ameaças de morte. ?Não vamos desistir nunca?, avisa. Ninguém melhor do que Mehmooda para contar o que está ocorrendo com a economia do Afeganistão, devastada por essa exclusão social das mulheres afegãs. ?O Aiatolá Khomeini, o horrível tirano do Irã, disse certa vez: ?a economia pertence às bestas.? Assim pensam também os talibans?, explica Mehmooda.

 

Sob a doutrina taliban, o Afeganistão vive a sua pior crise financeira. O desmantelamento econômico do país começou um pouco antes, em 1992, com a queda do governo pró-soviético de Najib e o avanço do grupo político Jehadi que iniciou uma fase de guerrilhas no país. Em 1996, quando o Taliban assumiu, as coisas só pioraram. ?Até 1992, por exemplo, US$ 1 equivalia a 5 mil afegans (a moeda local). Hoje, US$ 1 vale 84 mil afegans?, diz Mehmooda. Não há sistema bancário, não há indústria, não há qualquer tipo de infra-estrutura no país que não esteja em frangalhos. Por um dia de trabalho, um afegão recebe hoje menos de US$ 1, enquanto um quilo de carne de carneiro não sai por menos de US$ 1,3.

Do ponto de vista externo, o Taliban só é reconhecido por três países: o Paquistão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes. Portanto, toda e qualquer ajuda financeira oficial dos países desenvolvidos foi suspensa. A ONU recomendou a seus membros uma série de sanções econômicas, como o bloqueio de contas bancárias dos talibans e a proibicão da aterrisagem ou decolagem de aviões de pessoas ou empresas ligadas ao grupo radical. Internamente a situacão também é caótica. O Afeganistão está quebrado. Nas últimas duas décadas, guerras, instabilidade política e crise social arruinaram a economia afegã, basicamente agrícola. Trigo, arroz, milho e cevada estão entre as principais culturas do país. Sua geografia montanhosa e desértica, somada a longos períodos de estiagem, impede a auto-suficiência agrícola, ainda mais com metade da mão-de-obra disponível, as mulheres, retirada das lavouras. O país depende da importação de mais de 40% dos alimentos que consome. Desde que o Taliban assumiu, o Paquistão tem sido o único país a vender comida ao Afeganistão. Na terra afegã, o que mais floresce é a papoula, planta que dá origem ao ópio, droga alucinógena cujo comércio está nas mãos da máfia russa.

A retirada das mulheres do mercado de trabalho foi a gota d?água para o colapso total do país. Cerca de 90% dos professores e 50% dos médicos do Afeganistão eram mulheres. Escolas e hospitais foram fechados. ?Hoje é comum encontrar ex-professoras e ex-secretárias se prostituindo pelas ruas da capital Cabul?, conta Mehmooda. Com 22 milhões de habitantes, o Afeganistão é um dos países mais pobres do mundo. A maioria da população (80%) não tem água potável e a taxa de analfabetismo é de 67%.

AULAS SECRETAS

Escolas para meninas funcionam clandestinamente

Atualmente, segundo a Unicef, 95% das crianças afegãs estão fora das escolas. Em Cabul, algumas mulheres (integrantes da Rawa) dão aulas para meninas em escolas clandestinas, dentro de suas próprias casas. Elas representam a única chance para uma geração inteira de garotas que correm o risco de ficar no isolamento do analfabetismo.

Muitas dessas garotas, que enfrentam o duro regime para aprender a ler e a escrever, nem sempre voltam para casa. No caminho delas, além dos fuzis da milícia, há 20 milhões de minas terrestres. Foram deixadas em território afegão pelos soviéticos que durante 11 anos (entre 1979 e 1988) ocuparam o país. Calcula-se que dez pessoas morram por dia nos campos minados. Além das mortes, as minas praticamente encerraram a exploração econômica do solo afegão, rico em minerais, pedras preciosas, gás natural e petróleo. Ironicamente, um dos principais problemas do país no momento é a falta de dinheiro para importar petróleo.

A turbulenta história política do Afeganistão pode ser uma das explicações para a chegada ao poder dos extremistas do Taliban. Em 1919, o Afeganistão declarou sua independência da Inglaterra. No mesmo ano, iniciou uma aproximação com a recém-criada União Soviética (o Afeganistão foi um dos primeiros países a reconhecer o governo comunista). Os dois países mantiveram boas relações até a invasão soviética, em 1979. Após a retirada das tropas soviéticas, o Afeganistão sucumbiu a uma guerra civil. No meio dos destroços, surgiu a milícia Taliban, formada por estudantes de Teologia. Fundado por Mohammed Umar Akhunzada, ex-guerrilheiro que lutou contra os soviéticos, o Taliban colocou o Afeganistão na máquina do tempo e voltou à era medieval. ?A maior parte dos membros do Taliban não sabe ler nem escrever, pois estudaram em escolas religiosas e foram preparados apenas para ler o Corão, o livro escrito pelo profeta Maomé, e textos antigos?, conta a afegã Mehmooda.

Os atos de selvageria dos radicais islâmicos foram comparados aos que os nazistas fizeram aos judeus, na Polônia, durante a Segunda Guerra, pelo influente jornal The New York Times. O grande temor do povo afegão é que esse período negro, que ocorre num ponto distante do mundo ocidental, se transforme em apenas um trágico dado histórico, assim como o próprio holocausto. ?A nossa luta é para manter a sociedade afegã em pé, com escolas, hospitais, comida e música ? mesmo que isso aconteça dentro das celas escuras em que se transformaram os lares afegãos ou nos campos de refugiados?, afirma a DINHEIRO a destemida Mehmooda.

? Contatos para contribuição à causa da mulher afegã podem ser feitos pelo e-mail (rawa@rawa.org) ou por carta P.O Box 374 Quetta, Paquistão.