26/11/2021 - 12:25
A Ford surpreendeu os brasileiros ao anunciar, em janeiro, o encerramento das suas linhas de produção no País. A decisão resultou no fechamento de parques fabris e na demissão de cerca de 5 mil funcionários. Sob as diretrizes do CEO e presidente mundial Jim Farley, a matriz nos Estados Unidos passou a apostar em veículos de maior valor agregado — todos importados — para aumentar a rentabilidade. Saíram de cena modelos de entrada que geram pequena margem de lucro, como o Ka, então vendido por R$ 50 mil. Entraram automóveis premium, como o SUV Bronco Sport, sucesso nos Estados Unidos e com preço inicial de R$ 272.650. A “gourmetização” da marca se mostrou acertada. No terceiro trimestre deste ano, a Ford voltou a registrar lucro na América do Sul, o que não acontecia havia oito anos.
O fechamento das plantas no Brasil foi parte de uma estratégia para manter a montadora rentável globalmente. Desde a crise econômica de 2013, a operação da Ford na América do Sul acumulava perdas significativas, sendo socorrida economicamente pela matriz. Segundo Farley, a desvalorização das moedas locais (real e peso argentino, principalmente) “aumentou os custos industriais além de níveis recuperáveis”. A Ford comercializou apenas 33.112 automóveis e utilitários no Brasil entre janeiro e setembro, contra 107.922 no mesmo intervalo de 2020. Caiu da quinta posição no ranking de vendas nacional (7,1% de market share), para a décima, com apenas 2% do mercado. Ainda assim, entre julho e setembro, a receita da montadora na América do Sul somou US$ 600 milhões — o que encorajou a matriz a fazer novos investimentos, não na produção brasileira, mas no aumento da oferta de modelos por aqui. Para 2022, está previsto o lançamento da picape Maverick, com preço estimado entre R$ 210 mil e R$ 230 mil.
“Não iremos nos transformar em uma marca de nicho no segmento automotivo, mas vamos focar em produtos de mais alto nível” Luca de Meo, CEO da Renault.
CHIPS A montadora não está sozinha na busca de clientes dispostos a pagar mais por seus carros. A demanda por veículos de patamar superior aumentou no último ano. As vendas de modelos luxuosos como Volvo XC60 (que pode chegar a R$ 400 mil) e BMW 320i (a partir de R$ 280 mil) aumentaram acima de 30% no Brasil este ano em relação a 2020. Enquanto isso, poucos carros de entrada tiveram o mesmo salto, com líderes do segmento avançando apenas na casa de um dígito (gráfico à página 39). Uma das razões para as vendas terem evoluído pouco é a escassez de semicondutores, cuja produção foi afetada pela pandemia. O problema atinge a cadeia global, com previsão de normalização apenas em 2023. Somente neste ano deixarão de ser fabricados pelo mundo 7,7 milhões de unidades.
Por causa da falta de chips, a francesa Renault estima perder 500 mil vendas mundialmente em 2021. A companhia registrou queda de 22,3% nos negócios no terceiro trimestre, com a comercialização de 599 mil unidades. No Brasil, foram 26,5 mil, redução de 15% em relação ao mesmo intervalo de 2020. A retração nas vendas está diretamente ligada à falta de componentes. O faturamento mundial diminuiu 13,4% — e só não caiu mais por causa da aposta em produtos de maior rentabilidade no mercado internacional. A estratégia será adotada também no Brasil, como revelou Luca de Meo, CEO global, em visita à fábrica da montadora em São José dos Pinhais (PR). “Não iremos nos transformar em uma marca de nicho, mas vamos focar em produtos de mais alto nível”, afirmou o italiano. A estratégia é apontada como saída para a crise iniciada com a pandemia, que resultou em queda nas vendas e prejuízos no País. “Tomamos decisões muito duras, mas já vemos uma luz no fim do túnel”, disse o dirigente, referindo-se ao plano de demissão voluntária que desligou 500 colaboradores. Um novo plano de investimento deve começar a ser aplicado em 2023, quando o atual, de R$ 1,1 bilhão, for completado. A nova estratégia vai integrar diferentes mercados por meio de produtos globais. Existe a possibilidade de o SUV Bigster, lançado pela coligada Dacia, ser produzido no País a partir de 2024.
“O Brasil é de longe o mercado com o maior potencial da América Latina, pois tem uma economia diversificada, uma população jovem e aberta às novas tecnologias” alexander wehr CEO do BMW Group para América Latina.
Ao priorizar SUVs, que se tornaram os queridinhos dos brasileiros, a Renault irá aposentar os modelos Sandero e Logan até o fim de 2023. A nova geração dos dois carros já circula pela Europa, mas não será fabricada no Brasil. As mudanças no portfólio de produtos devem incluir a reestilização do Renault Kwid, que seguirá como versão de entrada da bandeira, além de ganhar uma versão elétrica, chamada de Kwid E-Tech (na Europa, Dacia Spring). De acordo com o CEO, possivelmente o carro mais em conta do segmento, posto ocupado pelo JAC e-JS1, que custa R$ 150 mil. A reformulação da picape Renault Oroch também está prevista para ocorrer no ano que vem.
A crise dos semicondutores também levou a GM no Brasil a apostar, mesmo que por poucos meses, em veículos de maior rentabilidade. No início deste ano, a companhia suspendeu a produção do Onix, líder de vendas desde 2015 e com preço inicial de R$ 63 mil à época, para priorizar a fabricação do SUV Tracker, que custava R$ 96 mil — atualmente, os modelos partem de R$ 72 mil e R$ 110 mil, respectivamente. Com a retomada do abastecimento de chips, a fabricação do hatch recomeçou já no segundo semestre, em Gravataí (RS).
LUXO A aposta no segmento premium ganha evidência com o reinício da produção do Range Rover Evoque no Brasil, na planta do grupo Jaguar Land Rover em Itatiaia (RJ), de onde já sai o Discovery Sport. O Evoque chegou a ser produzido ali entre 2016 e 2019, mas, por questões estratégicas, passou a ser importado. O novo modelo tem duas versões: SE, por R$ 377,9 mil, e R-Dynamic HSE, por R$ 407,9 mil. As duas estarão disponíveis em dezembro. Na visão de Frédéric Drouin, presidente da Jaguar Land Rover América Latina e Caribe, o Evoque ofertará o mesmo grau de tecnologia e luxo apresentado pela família Range Rover no mercado mundial. “O Evoque traduz a essência da marca Land Rover, entregando uma visão de luxo moderno através do design, da qualidade e da eficiência”, disse.
A fabricante britânica que hoje pertence a um grupo indiano afirma deter 27% de market share do segmento premium no Brasil — pouco atrás da alemã BMW, com 30% de participação (mais que a soma das conterrâneas Audi e Mercedes-Benz ). Com 26 anos no mercado brasileiro, a atual líder do luxo anunciou um aporte de R$ 500 milhões para produzir novos modelos na planta de Araquari (SC). O investimento será feito ao longo dos próximos três anos e se soma ao R$ 1,2 bilhão já investidos na operação de manufatura brasileira desde 2014. O recurso adicional permitirá à marca fabricar aqui todas as versões a combustão dos novos SUVs X3 e X4 para o mercado nacional. Segundo o presidente e CEO do BMW Group para a América Latina, Alexander Wehr, o anúncio reforça o compromisso da marca com os clientes e com o desenvolvimento de novas tecnologias para o País. “O Brasil é de longe o mercado com o maior potencial da América Latina, pois tem uma economia diversificada, uma população jovem e aberta às novas tecnologias”, afirmou.
A unidade fabril catarinense é a maior da América do Sul dedicada a automóveis premium. Segundo a BMW, a produção de novos modelos, incluindo um inédito e ainda não revelado pela matriz, virá acompanhada de melhorias na operação. A equipe de engenharia local será envolvida no desenvolvimento dos softwares de digitalização. As atualizações também produzir o veículo mais potente de fabricação nacional, com motor de 387 cavalos.
A julgar pelos recentes anúncios das montadoras, não faltarão veículos premium para quem estiver disposto a pagar por eles. Algo paradoxal em uma economia que não acelera — e se mostra incapaz de frear a inflação, o dólar e os juros.