Triunfam aqueles que sabem quando lutar e quando esperar.” Um dos ensinamentos do filósofo chinês Sun Tzu mais reproduzidos mundo afora, parte do livro A Arte da Guerra, é considerado um guia para comandantes de tropas que se arriscaram em batalhas há pelo menos 2.500 anos. Tem sido também um conselho útil para empresários, executivos e profissionais que buscam sobreviver em tempos conflituosos, como a que se atravessa com a pandemia da Covid-19 — doença que já atingiu mais de 2,5 milhões de pessoas e matou cerca de 180 mil em todo o planeta. A tática milenar tem ajudado também a guiar as iniciativas da maior cervejaria da América Latina, a Ambev, controlada pela AB Inbev. Responsável por 60% do mercado de bebidas no Brasil, a companhia está na linha de frente do combate ao novo coronavírus no País.

Em vez de cerveja, algumas de suas fábricas hoje produzem frascos de álcool gel (mais de 1 milhão de unidades) e máscaras faciais (cerca de 3 milhões). Os itens são doados às secretarias estaduais de Saúde. A Ambev também está erguendo, em parceria com a gigante do setor de aço Gerdau, uma unidade anexa ao hospital municipal no bairro M’Boi Mirim, na periferia da capital paulista e realizando doação de água mineral para o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

O orçamento destinado pela empresa para essas ações é de R$ 110 milhões, inicialmente. Uma cifra equivalente ao porte da companhia. No ano passado, a operação brasileira da Ambev registrou receita líquida de R$ 28,7 bilhões, uma alta de 7,1% em relação a 2018. O lucro líquido alcançou R$ 12,2 bilhões, e o volume de cerveja produzido superou 80,3 milhões de hectolitros (cada hectolitro equivale a 100 litros). Dos 50 mil funcionários da empresa, 30 mil estão no Brasil.

ÁLCOOL QUE FAZ O BEM Algumas fábricas da Ambev estão produzindo mais de 1 milhão de frascos de álcool em gel e cerca de 3 milhões de máscaras faciais, produtos doados às secretarias estaduais de Saúde. (Crédito:Divulgação)

Apesar dos números superlativos, a ofensiva humanitária da Ambev ocorre em um momento de queda vertiginosa do mercado de bebidas. O isolamento social na maior parte dos Estados brasileiros e o consequente fechamento de bares e restaurantes, responsáveis por 61% do consumo de bebida alcoólica no Brasil, fez derreter em 52% as vendas do setor entre os dias 15 e 31 de março, segundo estimativa da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe). A Ambev diz ainda não ter essa conta consolidada.

No comando da operação de guerra da Ambev contra o coronavírus está o CEO da companhia, Jean Jereissati Neto, que assumiu o posto em fevereiro deste ano, dias antes da confirmação dos primeiros casos da doença. Antes de chegar à presidência, ele foi diretor comercial no Brasil e capitaneou a operação da companhia na China. “As nossas iniciativas partiram do desejo de ajudar o Brasil, a nossa comunidade, o nosso ecossistema, neste momento de necessidade”, diz Jeressaiti, em entrevista exclusiva à DINHEIRO. “Somos uma empresa brasileira e acreditamos que esta é nossa responsabilidade.”

Para preparar o álcool gel, a empresa utiliza suas fábricas em Piraí, no Rio de Janeiro, e em Jaguariúna, no interior de São Paulo. O processo de produção consiste em extrair o álcool usado na produção da Brahma 0,0% e purificá-lo na planta de destilação para obter um produto mais concentrado, com base de etanol. A partir daí, ele é transformado em gel, envasado nas cervejarias e distribuído pela frota de caminhões da própria companhia e transportadores parceiros. Os governos estaduais se encarregam de repassar para hospitais. As máscaras faciais, também oferecidas aos profissionais de saúde, estão sendo produzidas a partir do plástico usado em garrafas PET de Guaraná Antarctica por uma empresa parceria em Osasco, na Grande São Paulo.

HOSPITAL DE AÇO Em parceria com a Gerdau, a Ambev está construindo um centro de atendimento no bairro M’Boi Mirim, na periferia da capital paulista. (Crédito:Divulgação)

FRETE GRÁTIS Para a construção da unidade hospitalar anexa ao de M’Boi Mirim, a companhia investiu R$ 5 milhões, com previsão de entrega de 100 leitos até o fim de abril. A unidade, de construção modular, foi erguida pela empresa Brasil ao Cubo. Outra parceria foi na questão logística, com distribuição das unidades de álcool aos Estados. A logtech Cargo X (plataforma conhecida como “Uber dos caminhões”) transportou até agora, arcando com o custo do frete, 26 toneladas, o que totaliza 135 mil frascos. “A gente também quis fazer esse transporte como forma de retribuição. Não ganhamos com essa operação. Vamos entregar o total de 100 toneladas“, diz o CEO da Cargo X, Federico Vega.

Além das ações para preservar a saúde e evitar mais contágio, a companhia também vem buscando alternativas para amenizar, um pouco que seja, o impacto da pandemia na saúde financeira aos bares e restaurantes, frontalmente atingidos pelas medidas de isolamento social adotadas pela maioria dos governos estaduais. Uma das marcas da Ambev, a Stella Artois, em parceria com Nestlé e Nespresso, criou a campanha “Adote um Restaurante”, movimento para ajudar financeiramente os estabelecimentos, quando forem reabertos, vendendo vouchers com desconto de 50% para uso nesses locais. O cliente paga metade do valor. A outra parte é bancada pela cervejaria. A primeira fase da iniciativa arrecadou R$ 4 milhões. A estimativa é de chegar a R$ 10 milhões. Dos 100 mil vouchers, 84 mil já foram comercializados e devem beneficiar cerca de 6 mil restaurantes. “O sucesso da ação foi tão grande que Stella Artois está levando esse modelo para outros mercados, como África do Sul, Argentina, Bélgica, Canadá, Chile, México, Paraguai, Peru e Reino Unido”, diz a diretora de marketing da marca, Bruna Buás. Já a marca Bohemia está à frente da ação “Ajude um Buteco”, nos mesmos moldes da campanha da Stella Artois. A campanha vai até 10 de maio, pretende arrecadar até R$ 50 milhões e beneficiar 15 mil bares no Brasil.

Para o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Paulo Solmucci, ações deste tipo são importantes, mas é necessário que haja ajuda agressiva no momento imediatamente após o fim da quarentena. “É importante que empresas como a Ambev ajudem a trazer de volta o cliente após a retomada, porque pode existir um cenário de desconfiança e preocupação dos clientes em relação à segurança do ambiente”, diz. “Por isso, a mensagem de apoio aos bares vai funcionar ainda melhor quando as portas voltarem a abrir”, afirma.

LIVES COM ARTISTAS A empresa patrocina transmissão ao vivo de shows de cantores sertanejos, com a do Gusttavo Lima, que gerou uma representação do Conar. (Crédito:Divulgação)

Segundo a entidade o Brasil tem hoje 1 milhão de estabelecimentos, dos quais 400 mil são restaurantes, 350 mil são híbridos e os outros 250 mil operam apenas como bares. Do total, 90% tem receita de menos de R$ 50 mil por mês. O faturamento anual do setor é de cerca de R$ 300 bilhões e, desde o início da pandemia, já deixou de arrecadar R$ 50 bilhões — números que dimensionam o tamanho do problema. Do faturamento da Ambev, 55% é proveniente de bares de restaurantes.

Como empresa de capital aberto, o impacto do fechamento dos pontos de venda e da queda no consumo desde o início da quarentena se reflete também no valor das ações da Ambev na B3 (antiga Bovespa) e nas análises sobre o cenário daqui em diante. Relatório produzido pela analista de alimentos e bebidas e estrategistas de ações da consultoria XP Inc., Betina Roxo, recomenda posição neutra sobre os papéis da companhia. “Enxergamos a Ambev como uma empresa resiliente do ponto de vista financeiro”, diz ela. “Apesar da redução dos lucros em função da mudança do mix de vendas, entendemos que a empresa é plenamente capaz de passar por esse curto prazo mais desafiador com tranquilidade.”

RECUPERAÇÃO No pregão da quarta-feira 22, as ações da Ambev fecharam em recuperação, a R$ 11,62, poucas horas depois de o governador de São Paulo, João Doria, anunciar o plano de retomada econômica gradual a partir de 11 de maio. No dia 24 de março, quando começou o isolamento social no Estado, o papel da companhia era cotado a R$ 11,29.

Buscando outras trincheiras para ampliar sua ºparticipação na luta contra a Covid-19, talvez tenha sido em uma associação da imagem a campanhas de doação feita pela classe artística por meio de transmissões ao vivo pela internet o único momento até aqui em que caiu água no chope da Ambev. Em uma concorrida live patrocinada pela Bohemia, uma das marcas da cervejaria, o cantor sertanejo Gusttavo Lima passou uma parte considerável das sete horas em que esteve ao vivo cantando seus sucessos levando algum tipo de bebida alcoólica para a boca. O resultado foi uma representação do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) ao músico. A partir daí, as transmissões patrocinadas por bebidas, que também servem como canal para doações, passaram a contar com a inscrição na tela “Beba com moderação”. Aliás, moderação foi a palavra usada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), dirigida pelo etíope Tedros Adhanom, para recomendar, em documento, a diminuição no consumo de bebidas alcoólicas em casa nesse período de confinamento.

SOCORRO A BARES Campanhas das marcas Stella Artois e Bohemia estão arrecadando recursos para ajudar donos de estabelecimentos fechados durante a pandemia. (Crédito:Divulgação)

Essas ações humanitárias como as da Ambev começam a fazer com a que a imagem de empresas fixe na memória da população como companhias que se preocupam com o cenário além de suas unidades. Pesquisa realizada pela HSR Specialist Researchers nas últimas quatro semanas aponta ranking das 20 empresas mais transformadoras do País após o início da pandemia. A rede varejista Magazine Luiza manteve a ponta da tabela nas quatro semanas, seguida pelo iFood. A Ambev esteve na terceira posição nas três primeiras medições, quando perdeu um degrau para a companhia de streaming Netflix. “O destaque da Ambev se justifica no fato de ter realizado ações inéditas, como usar a fábrica para produzir álcool em gel. Isso ganhou força aos olhos do consumidor”, diz a sócia-diretora da empresa, Valéria Rodrigues.

Com a imagem preservada, a Ambev também volta o foco para o momento em que garçons poderão retirar das geladeiras as garrafas da bebida para as mesas, mesmo mais distantes do que o antigo normal. A presidente da Associação Brasileira de Bebidas, Cristiane Foja, acredita em uma retomada rápida após o pico da crise, mesmo que ainda seja difícil cravar a partir de quando. “O consumo de bebidas alcoólicas responde imediatamente à renda. Temos que seguir firmes trabalhando, buscando apoio junto ao governo e demais entidades para que o setor possa se reerguer rapidamente e conquistar novamente um patamar mais elevado de faturamento”, afirma Cristiane. Esse talvez seja o happy hour mais aguardado da história. Pela Ambev e por todo setor cervejeiro.

ENTREVISTA
“Vivemos um momento de construção coletiva de soluções”

Jean Jereissati Neto, Ceo da AMBEV. (Crédito:Claudio Gatti)

Como foi a decisão de realizar ações humanitárias no Brasil para contribuir no combate à Covid-19?
Em momentos como este, todos podem e devem fazer tudo que está ao seu alcance para ajudar. As nossas iniciativas partiram do desejo de ajudar o Brasil, a nossa comunidade, o nosso ecossistema, neste momento de necessidade. O que estamos doando, na verdade, são nossas capacidades, competências e tempo dos nossos times para ajudar a resolver questões sociais urgentes.

Que ações foram tomadas para proteger os colaboradores?
Contratamos um dos melhores infectologistas do País para orientar nossas decisões e a primeira coisa que fizemos foi afastar os grupos de risco e adotar o home-office para os nossos times administrativos e de vendas. Nossas cervejarias e centros de distribuição continuaram operando, mas com grande reforço de todos os cuidados necessários. Além disso, assumimos o importante compromisso de não demitir por três meses, para dar segurança psicológica para todo o nosso time.

Há funcionários afastados por conta da Covid-19?
Temos 13 colaboradores diagnosticados com Covid-19 e alguns outros suspeitos. Entre os diagnosticados, três já estão curados. Acompanhamos caso a caso e damos todo o suporte necessário, médico e assistencial.

Quando e como a companhia vislumbra que deverá ser o momento pós-pandemia na economia e para o setor de bebidas?
Ainda é difícil ter clareza em relação ao momento da retomada. A pós-pandemia deverá ter duas fases. Uma de abertura, acompanhada de um sentimento de esperança, mas também de muita ansiedade quanto aos riscos à saúde, a necessidade de seguir novos protocolos de prevenção. Passado esse momento, virá uma nova normalidade, cuja definição ainda é uma grande incógnita.

Como lidar com o dilema, apresentado por autoridades, entre saúde versus economia?
É preciso conciliar os cuidados com a economia e os cuidados com a saúde. Um não pode excluir o outro. A quarentena é uma medida inevitável em um país como o Brasil, mas as realidades são muito diferentes e é preciso granularidade para avaliar o nível das restrições de acordo com cada realidade e a velocidade da reabertura. Também é importante ajudar as pessoas a passarem por esse momento de quarentena, seja com auxílio financeiro para os que estão em situação de maior necessidade, seja com entretenimento gratuito para que consigam suportar esse momento de isolamento, como estamos fazendo com as lives de artistas brasileiros. Vivemos um momento de construção coletiva de soluções: governos, sociedade civil, academia, empresas e trabalhadores. Todos precisam ser ouvidos e considerados.