Em 2017, quando a economia ainda tentava se recuperar da conjuntura recessiva que havia culminado no processo de impeachment de Dilma Rousseff, uma inédita autorização de saque das contas inativas do FGTS surgiu como salvação para impulsionar o consumo. Liberados por Michel Temer, os saques somaram R$ 44,4 bilhões, beneficiando diretamente quase 26 milhões de famílias. Dois anos depois, já com Bolsonaro na presidência, mas ainda sem qualquer sinal de pandemia, o ministro da Economia Paulo Guedes reformulou a ideia de Temer para injetar mais R$ 28 bilhões na economia. Na ocasião. Saques de até R$ 500 por conta, incluindo as ativas, chegaram a 60 milhões de trabalhadores. Veio a Covid e, novamente, recursos do FGTS puderam ser sacados, no valor de um salário mínimo. Somado aos saques pela data de aniversário, liberados em 2021, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço já despejou um total de R$ 120,8 bilhões em quatro anos. Agora Guedes quer liberar o fundo para quem está endividado. A proposta esbarra em dois problemas. Antes de entrar em cada um, vale destacar o que há de positivo nela.

O endividamento das famílias brasileiras é recorde. Ele fechou 2021 no maior nível em 11 anos, segundo a Confederação Nacional do Comércio. Em dezembro passado, estava em 76,3%. Contrair dívidas enquanto a taxa básica de juros estava em 2% ao ano poderia ser algo administrável, mesmo que os bancos e financeiras continuassem cobrando juros exorbitantes dos tomadores de empréstimos. Com a Selic podendo chegar a 12,25% ao ano ainda em 2022, como apontou o mais recente Boletim Focus, do Banco Central, a tendência é que o dinheiro fique bem mais caro para quem precisa de crédito — exatamente o caso dos endividados.

Sacar recursos do FGTS para liquidar dívidas que estão crescendo pode gerar alívio no orçamento familiar. Além disso, recursos que hoje estão inacessíveis seriam injetados na economia, podendo estimular o consumo — que também está represado pela alta da inflação. Em tese, haveria menos endividados e mais dinheiro circulando, o que é bom para produzir crescimento econômico. Isso posto, vamos aos problemas.

O primeiro é de alçada. Quando assumiu o ministério da Economia, no primeiro dia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes tornou-se automaticamente ministro do Trabalho, uma vez que as duas pastas haviam sido fundidas como parte do plano liberal de enxugar a máquina pública reduzindo o tamanho do Estado. Mas o próprio Bolsonaro recriou o Ministério do Trabalho em dezembro do ano passado, nomeando como titular Onyx Lorenzoni, então na Secretaria-Geral da Presidência da República. Desde então, é dele — e não de Guedes — a responsabilidade de gerir os recursos do FGTS. Ou seja, a ideia do ministro da Economia pode chegar ao gabinete vizinho no máximo como sugestão.

O segundo problema reside em um terceiro ministério, o do Desenvolvimento Regional, comandado por Rogério Marinho, com quem Guedes jamais se entendeu. É Marinho quem decide para onde vão os recursos do FGTS. Ele e sua equipe discordam da visão do ministro da Economia de que o dinheiro fica parado no fundo. Eles têm razão. É por meio dele que o governo financia parte da indústria da construção civil, transferindo os recursos para o programa de habitação popular Casa Verde Amarela. Aplicado dessa forma, o FGTS ajuda a gerar empregos em um setor que demanda mão de obra de forma maciça. Isso também gera renda, movimentando a economia.

Guedes sabe de tudo isso, é claro, mas preferiu acenar com a ilusão de um novo saque do FGTS porque tem outra ameaça fiscal batendo à sua porta: o reajuste linear de R$ 400 a todo os servidores da União, que Bolsonaro tem avaliado como estratégico para melhorar suas chances de reeleição. Guedes não quer dar o aumento para evitar mais ameaças ao controle do Orçamento. Ele afirmou recentemente que “perdas salariais foram sofridas no mundo inteiro” e que é preciso coragem para dizer que não há como buscar reposição. Do contrário, seria mergulhar “no passado tenebroso de reindexação.” Quando falta dinheiro é preciso fazer escolhas. Guedes não quer (com razão) dar aumento ao funcionalismo. Mas não quer ser o responsável por uma conjunção de fatores em que a alta dos juros e do endividamento trave ainda mais a economia. Só que agora, a chave do cofre não está mais com ele.