O advogado, professor e ativista entende que combater o racismo nas empresas exige o mesmo engajamento e mobilização dedicados a enfrentar o assédio sexual.

A pele negra é pouco presente no mercado corporativo do Brasil. E quanto mais se estratifica os cargos de chefia nas companhias, mais ela desbota. Nas 500 maiores empresas brasileiras, há apenas 5% de executivos negros — um vexame social em um país onde a maioria insiste na tese de que não é racista. Criada em 2015 para mudar esse cenário, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial pretende, nos próximos quatro anos, aumentar para 8% essa presença nas corporações. Hoje são 61 empresas que participam do movimento e se comprometeram em adotar dez compromissos pela inclusão racial. Ambev, Cargill, Coca-Cola, Magazine Luiza, Petrobras, Grupo Pão de Açúcar, Carrefour são algumas das companhias que fazem parte do movimento. Para o advogado Raphael Vicente, que comanda a Iniciativa Empresarial e também é professor e coordenador-geral da Faculdade Zumbi dos Palmares, acredita que o momento é oportuno para discutir o racismo no mundo corporativo. A morte brutal do negro George Floyd por um policial americano branco, no dia 25 de maio, e que desencadeou uma série de manifestações em cidades dos Estados Unidos e de outras partes do mundo, pode servir para que haja mobilização por ações concretas para maior participação dos afrodescendentes no mercado de trabalho. Isso só vai mudar, segundo Vicente, quando as empresas reconhecerem que há um problema no Brasil. Para ele, o retrocesso em políticas públicas afirmativas por parte da administração Bolsonaro dá sinais contrários à população e dificulta a clareza sobre a necessidade de enfrentar o racismo no País. O advogado que evita usar capuz na rua para não ser alvo de discriminação racial, diz que a sociedade precisa assumir a responsabilidade de fazer algo além de posts em redes sociais. “As declarações na internet são positivas, mas está na hora de ação que mostre se, de fato, as vidas negras importam.”

DINHEIRO – O mundo corporativo brasileiro é racista? 
RAPHAEL VICENTE – A prática racista é, sim, presente no mundo corporativo, que reproduz as características da sociedade. Há o racismo enquanto ação institucional e enquanto indivíduo. Hoje há um mercado de trabalho para os negros e outro para os brancos. Os negros não têm as oportunidades de evolução que um branco tem. As grandes companhias dizem que olham para competência na hora da contratação e não para cor. Mas, por esse argumento, também não haveria diferença quanto a presença de mulheres, o que não é verdade. O fato é que há diferença salarial gritante entre homens e mulheres e diferença salarial gritante entre negros e brancos. Quando falamos de gênero, há mais facilidade de perceber a discrepância. Quando falamos de cor da pele, há resistência grande em reconhecer a dificuldade de aceleração na carreira e de políticas afirmativas. Há essa distorção no mercado.

Qual tem sido a participação de negros nas grandes companhias brasileiras?
Cerca de 70% dos desempregados brasileiros são negros. Com a pandemia e o aumento da taxa de desemprego, o negro será ainda mais afetado. Números do Instituto Ethos mostram que, entre as 500 maiores empresas no Brasil, temos 5% de executivos negros. Em cargos de gerência, o número gira em torno de 15%. Entre estagiários, são 45%; em cargos de entrada e supervisão, 26%. E, quanto mais vai subindo a hierarquia, o negro começa a sumir. É impressionante. Não vemos negros no comando de empresas ou em conselhos de administração. O único caso que se tem notícia é de Rachel Maia (CEO da Lacoste no Brasil). Em conselho, não conheço nenhum. Nos Estados Unidos, há 9% de negros em cargos executivos.

“A imagem do joelho do policial no pescoço de Floyd é algo tão chocante que conseguiu fazer com que muita gente se colocasse naquela situação” (Crédito:Divulgação)

Quais as razões de não termos mais CEOs negros no Brasil?
O racismo é um dos fatores. Há alguns anos, o Ministério Público do Trabalho fez uma ação questionando os bancos sobre o fato de não haver grande número de promoções de negros, em comparação com profissionais brancos com a mesma qualificação. Não é normal no Brasil ver negro na presidência de uma grande corporação. Não é só isso, mas é um fator preponderante. Na promoção de um funcionário, entra o caráter subjetivo. E quanto mais presente o elemento subjetivo, mais é possível que o fator racismo possa estar presente na tomada de decisão. Se as empresas não tomarem uma atitude contra o racismo, esse quadro não irá se resolver sozinho.

O que as empresas precisam fazer?
A gente precisa de ações, assim como as que têm sido adotadas em relação à participação feminina no quadro das companhias. O ingresso de negro nos quadros executivos, nos últimos anos, vem crescendo a taxa de 0,20% ao ano. Isso quer dizer que, sem ação, o negro levará 200 anos para ter representatividade no mundo corporativo. Isso apenas para equalizar o percentual na população negra da cidade de São Paulo, que é de 37%. Como uma empresa pode falar em ética, integridade, governança, se sequer olha para o recorte de seus quadros? É muito importante a hashtag, a peça publicitária, mas tudo isso passa. A questão é sobre a atitude que será tomada a partir disso, reconhecer se há ou não o problema. Enquanto não reconhecer que há o problema, não acontece nada. É uma questão de mudança de cultura corporativa, de valores.

Qual o papel da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial nesse sentido?
A Iniciativa Empresarial é uma plataforma de coordenação entre agentes empresariais e sociedade civil, justamente porque entendemos que para mudar essa questão do racismo é necessário chamar aqueles que têm poder de decisão e de transformação. A proposta é construir pontes para avançar quanto à presença de negros nas corporações. O movimento começou em 2015, e justamente com a constatação de que, entre 2010 e 2015, quadruplicou o número de negros no ensino superior, mas praticamente não se mexeu no mercado de trabalho. O que se discutia antes é de que negros não eram contratados porque não tinham formação universitária. Agora que têm, por qual razão não são contratados? Hoje, entre empresas e órgãos de classe, são 61 empresas signatárias desse movimento, que respondem pela receita de R$ 1,2 trilhão e envolvem 900 mil colaboradores diretos. São empresas que têm interesse de aprimorar e rever suas práticas. As companhias se comprometem a estabelecer 10 compromissos pela inclusão racial, que vão desde comprometimento de executivos até comunicação das ações adotadas. Por trás de cada compromisso, há ferramentas de gestão, métricas e indicadores. Por isso, a gente orienta as empresas a começarem pelo compromisso que está mais próximo da sua realidade. E quando estiver bem implementado, passa para o próximo. Temos objetivo de chegar em 2024 com pelo menos 8% de negros nos quadros executivos. Criamos, também, banco de talentos, programas de mentoria e de qualificação. Mas ainda temos um longo caminho.

A brutal morte de George Floyd pode acelerar esse processo?
Sim. Vamos elencar três pontos objetivos para que as empresas possam se comprometer imediatamente. Não podemos permitir que as manifestações acabem sem que nada mude. Para isso, vamos propor a criação de um fundo financeiro para realizar ações. Também vamos buscar metas claras para inclusão. Muitas não têm meta alguma e precisamos dessa métrica. Também vamos mostrar a necessidade de parte da política de compras direcionada para empreendedores negros, que, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), correspondem a 60% do total. O movimento vai se chamar Vidas Negras Importam, assim como a hashtag que ganhou força no mundo. Sem isso, vamos continuar apenas nos posts das redes sociais. É o mínimo de resposta ao clamor mundial. E isso vai depender da nossa capacidade de mobilizar a partir da morte de George Floyd, que trouxe a real dimensão do tamanho da brutalidade que o racismo pode causar. A imagem do joelho do policial no pescoço de Floyd é algo tão chocante que conseguiu fazer com que muita gente se colocasse naquela situação de agonia, tudo o que se vê há anos não só nos Estados Unidos como no Brasil.

E por que o brasileiro não foi às ruas protestar contra o racismo?
É triste ver que no momento em que o mundo se manifestava contra o racismo, no Brasil tínhamos formadores de opinião dizendo que o racismo é normal. A ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel chegou a dizer que os negros americanos são os que mais matam, portanto são os que mais morrem. Esse é um pensamento muito disseminado no Brasil, de que a imagem do negro está associada à criminalidade. Não podemos esquecer do caso do menino João Pedro (baleado dentro de casa, no dia 18 de maio, no Rio de Janeiro, durante operação policial) e do músico Evaldo dos Santos (que foi morto e teve o carro alvejado por mais de 80 tiros de fuzil por soldados do Exército, em abril de 2019, no Rio de Janeiro). Eles não conseguiram trazer essa comoção como no caso de Floyd. Não podemos brincar com o efeito devastador que o racismo provoca. As declarações na internet são positivas, mas está na hora de ação que mostre se, de fato, as vidas negras importam.

“É triste ver que no momento em que o mundo se manifestava contra o racismo, no Brasil tínhamos formadores de opinião dizendo que o racismo é normal” (Crédito:Drew Angerer)

A falta de políticas afirmativas por parte de Bolsonaro não legitima esse discurso?
Nos últimos 20 anos, vimos alguns avanços, como Fies, ProUni, o estatuto da Igualdade Racial, mas o que vemos hoje são sinais, por parte da atual gestão, de que o racismo não existe e de que há vitimização, a ponto de o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, dizer que o movimento negro é “escória” e criticar Zumbi dos Palmares. Isso dá sinais contrários à sociedade e faz com que muita gente perca a direção do caminho certo.

O senhor já passou por episódios de racismo?
Muitas vezes. Negro de terno geralmente é segurança. Em um episódio, estava numa confraternização e vieram me perguntar, achando que eu era o porteiro, como fazer para agendar festas no espaço. Já me pediram para guardar carros. É algo tão impactante que ficamos sem reação. Eu não uso touca e nem ando de capuz e evito ficar parado em frente de estacionamento ou lojas. Em um bar, procuro afrouxar a gravata para não ser confundido com um segurança ou algum funcionário do estabelecimento. Você pode ter títulos, dinheiro, mas na hora que você é confundido por conta da cor da pele, o racismo vem e te dá uma rasteira. Situações como essa mostram que, por mais que você faça, vai ser visto como mais um negro, sem condições de estar no nível das outras pessoas. É muito difícil de explicar o quanto isso nos fere. É muito perverso.