O ministro da Economia, Paulo Guedes, fere desde a campanha eleitoral de 2018 o que a física quântica chama de o paradoxo Schrödinger. Trata-se de um experimento da primeira metade do século 20, em que o austríaco Erwin Schrödinger coloca um gato dentro de uma caixa fechada. Estando lá, e sem que o físico pudesse ver se ele estava vivo ou não, o animal se encontrava num estado paradoxal de vivomorto, ou seja, enquanto não se abre a caixa, não é possível definir uma situação. Na epopéia de Guedes, não é um gato, mas uma cifra: R$ 1 trilhão. Esse número permeia os discursos do ministro há anos, e na analogia do paradoxo Schrödinger, é como se Guedes tentasse garantir que esse dinheiro existe, mas antes mesmo de abrir o cofre para comprovar.

“No brasil, o fetiche da cifra trilhardária serve apenas para agradar o presidente e a opinião pública em ano eleitoral” Cícero Mtias, economista da universidad de Chile

Esse trilhão tão desejado por Guedes já apareceu em caixas distintas. Venda de imóveis da União, redução de gastos com a previdência, revisão do tamanho do Estado. Tudo isso levantaria um valor que faria inveja para qualquer governo anterior. Mas não aconteceu. Agora, no último ano de governo, com uma agenda esvaziada, perdendo confiança do mercado e de seus pares na política, a última cartada é buscar o trilhão em outra caixa. Desta vez, da iniciativa privada através de investimentos que serão feitos a perder de vista. Segundo o ministro, são R$ 800 bilhões já contratados e outros R$ 300 bilhões por meio de vendas, concessões e leilões. “Não acreditem que o Brasil não vai crescer. Estão errando dizendo que não vamos crescer neste ano”, disse Guedes. De acordo com o ministro, esse recurso virá de diversos setores, mas os principais são telecomunicações, petróleo, gás natural, cabotagem e saneamento básico.

EMBAIXO DA TERRA Obra de saneamento, entra na conta de todos os governos, mas nunca saem do papel (Crédito:Lalo de Almeida)

Mas por trás de grande parte desse dinheiro, há outro nome. Tarcísio de Freitas, o ministro da Infraestrutura. Dentro do governo Bolsonaro, e fora das asas de Guedes, a pasta comandada por Freitas (que já esteve no governo Dilma e depois no governo Temer) parece ser a única capaz de dar conta da cifra mágica de Guedes. O problema, para o comandante da economia, é que além do recurso não ser mérito de sua equipe econômica, não é um dinheiro que será visto num horizonte próximo. É como se o gato da caixa não tivesse nascido ainda, e o observador precisasse esperar por décadas para poder comprovar se ele está vivo ou não.

A falácia do investimento contratado e as cifras bilionárias não é nova. Em 2015, para reativar a economia, o governo Dilma Rousseff apresentou o Programa de Investimento em Logística (PIL), que prometia R$ 280 bilhões em investimentos em 30 anos. Ele se somava ao antigo Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), que no mesmo ano previa investimentos na ordem dos R$ 400 bilhões. Tudo isso sem calcular a inflação do período. De qualquer forma, o resultado desses numerões todos está aí: concessões de aeroportos com contratos bilionários sendo devolvidos ao Estado; rodovias entrando com ação no Supremo Tribunal Federal afirmando que os projetos apresentados possuíam problemas metodológicos que distorciam a demanda; acusações de fraudes e investigações travando contratos no Tribunal de Contas da União…
Em 2016, Michel Temer lançou o Ponte Para o Futuro. O mesmo PIL, mas com um contrato menos leonino para o governo e flexível para os empresários. Eram outros R$ 120 bilhões esperados em concessões e venda de ativos.

“As concessões envolvem cifras enormes, que levarão décadas para ser aplicadas, e boa parte delas nem chegará a ser totalmente efetuadas” Erico Heck barroso, um dos criadores do PAC

Mas com a instabilidade econômica, nenhum contrato de grande porte foi firmado. Parte deles, inclusive, ficou para o governo Bolsonaro celebrar. Em uma versão ainda mais branda e com menos exigências e contrapartidas, uma grande parte das concessões firmadas neste governo usam a estrutura e dinâmica ditada pelos antecessores.

EM CIMA DA ÁGUA Com projetos que nem foram escritos, plano é conceder vias de cabotagem (Crédito:Domingos Peixoto)

Érico Heck Barroso, economista e que esteve no desenvolvimento do PAC durante o governo Lula, explica que as falas de Dilma, Temer e Bolsonaro com relação à contratação de investimentos é mais psicológica do que efetiva. “São cifras enormes que levarão décadas para ser aplicadas e boa parte tem chances reais de não ser efetuada”, disse. Na avaliação dele, programas como o PAC exigiam que o governo investisse também, o que é mais fácil de controlar e fazer girar a economia do que agora. Para o Estado, outra contrapartida seria deixar de ter uma despesa com um ativo que não demandará mais dinheiro. Pelo menos até a página dois. “Não há muita transparência nas contas públicas sobre como se dá essa redução de gasto e para onde é direcionado o que se poupa”, segundo ele, em geral, o retorno acaba se perdendo dentro do próprio setor.

NÃO VALE DE NADA? Para Cícero Matias, doutor em políticas públicas e professor de economia da Universidad de Chile, Paulo Guedes tem tentado desviar de um problema usando uma pequena manipulação. “Uma coisa é você reduzir a folha de pagamento do Estado em R$ 1 trilhão em 30 anos. São reduções práticas, apesar de ser de longo prazo, tem implicação direta no presente”, disse. Segundo ele, quando se fala em investimento privado, trata-se de um importante vetor de desenvolvimento do País, mas para o governo fica apenas o valor da outorga, e o retorno para o Estado é secundário, quando não nulo.

“Mas usar esta cifra se tornou uma arma de governos que estão com problemas para tomar decisões eficientes, seja por má administração ou inabilidade política.” Chile, Argentina e Uruguai passaram por processos exatamente iguais e tiveram saltos importantes de desenvolvimento, mas não resolveram os problemas de Estado “A solução para os governos da América Latina é a busca por um Estado menor. Mais eficiente e fiscalizador. Que desperdice menos.” Para chegar lá, Matias sugere que sejam criadas duas frentes de atuação: concessões e redução do Estado. Ao mesmo tempo, mas com focos e objetivos completamente diferentes. “No caso do Brasil, esse fetiche do trilhão de Guedes serve apenas para agradar o presidente e a opinião pública. Não tem o menor valor prático.” As metas podiam ser bem menores, desde que viessem acompanhadas de perspectivas fiscais de redução no peso do Estado. “Esse é o pulo do gato”, afirmou Matias. Gato esse que, no caso de Guedes, segue dentro da caixa e, durante as próximas décadas, seu único estado será de vivomorto.