As críticas recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à política de juros e controle de inflação do Banco Central (BC) têm nome e sobrenome: Roberto Campos Neto. O presidente da autarquia que define a política fiscal do país foi indicado ao cargo em fevereiro de 2019, pelo antecessor de Lula, Jair Bolsonaro. Campos Neto é o primeiro no cargo após a Lei Complementar 179, que instituiu a autonomia política na presidência da autarquia federal, decretada também em fevereiro de 2019.

O mecanismo estabelece mandatos de quatro anos para presidente e diretores do BC, com o argumento de blindar esses servidores de eventuais intervenções por parte do Executivo em medidas como os juros básicos, a Selic, e controle de inflação. Definido pelo Comitê de Política Econômica (Copom) do Banco Central, a taxa está atualmente em 13,75%, patamar considerado elevado por Lula.

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Campos Neto nega ter proposto aumento da meta de inflação e defende aproximação com Lula

Na última terça (07/10), o chefe de governo voltou a criticar a decisão do Copom sobre os juros básicos. “Nós não temos inflação de demanda”, disse Lula, durante reunião com jornalistas no Planalto, atirando contra o presidente do BC. “Acho que esse cidadão que foi indicado pelo Senado tem a possibilidade de maturar, de pensar e saber como é que vai cuidar desse país, porque ele tem muita responsabilidade”, completou.

Por um lado, economistas ouvidos pela DW afirmam que as pressões de Lula sobre Campos Neto para baixar a Selic são uma maneira de transferir a responsabilidade para a instituição por um provável baixo crescimento econômico neste ano – 0,8% segundo o Focus. Já os analistas políticos apontam para a proximidade do atual presidente do BC com o ex-presidente Bolsonaro, o que tem causado desconforto no governo atual.

Juros e inflação

A Selic regula o acesso ao crédito, com níveis mais altos levando, ao menos na teoria, a um menor consumo como forma de conter a inflação, mantendo-a dentro da meta, que é definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), colegiado composto pelos ministros da Fazenda, Planejamento e pelo próprio presidente do BC.

Essa meta para este ano está em 3,25%, e conta com tolerância de 1,5% para cima e para baixo. De acordo com a última edição do Boletim Focus, a expectativa é que a inflação ultrapasse essa meta em 2023 (foi projetada em 5,79%, em pesquisa Focus do Copom, divulgada nesta segunda-feira, 13).

Isso aconteceu em 2022. Cada vez que a meta é estourada, o presidente do BC precisa prestar contas ao ministro da Fazenda, como ocorreu recentemente.

Além da Selic, as pressões sobre o BC também vêm recaindo na meta de inflação. Segundo Ecio Costa, o professor titular de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mudar essas balizas econômicas “na marra” tampouco significaria um maior acesso ao crédito, porque o mercado continuaria cobrando mais caro pelo crédito. “Se você tira ou eleva essas expectativas, os juros não necessariamente vão cair, porque se a expectativa de inflação é mais alta, o mercado precifica os juros num patamar mais elevado, para justamente conter essa inflação”, explica.

Ele diz que os demais países emergentes têm seguido, no geral, metas de inflação de 3%, dentro do que é defendido pelo CMN. “Quando você tem esse processo inflacionário, os alimentos têm uma inflação mais alta que os demais itens. Se vai para 5% ou 6% no geral, para os mais pobres talvez esteja 10%, o que faz o poder de compra cair. Aí temos um problema sério”, complementa.

Durante a pandemia, a Selic chegou a 2%, o que, para Costa, foi justificado pela queda na atividade econômica causada principalmente pelo isolamento social, o que gerou deflação em alguns meses.

A Selic voltou a aumentar durante 2021 e 2022, chegando aos patamares atuais em agosto do ano passado. O economista aponta que a inflação só não foi maior em 2022 por causa da PEC dos Combustíveis, que limitou o ICMS. “Ainda há pressão inflacionária aqui, como nos outros países”, acrescenta.

Autonomia do Banco Central

Embates entre chefes de governo e presidentes de bancos centrais não ocorrem apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed), que também goza de autonomia junto ao Executivo, foi alvo constante de Donald Trump durante o mandato do ex-presidente republicano. Ele chegou a chamar a instituição de “patética” justamente pela política de juros. Na União Europeia, a independência dos bancos centrais dos países-membros foi uma exigência da Alemanha para a construção do bloco continental.

Para o professor de economia do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), Ricardo Rocha, as críticas de Lula à autonomia do BC vão contra o praticado nos primeiros dois governos do petista, que teve Henrique Meirelles à frente da autarquia. “Quando o Meirelles presidiu o BC, ele tocou a política monetária do jeito que tinha que tocar. Nos dois mandatos do Lula, teve momento de taxas de juros muito altas, então não me parece que a briga dele é técnica”, afirma Rocha, que diz que uma das justificativas para o embate pode ser uma pressão ao próprio CMN para que se aumente as metas de inflação. Ele lembra que, com a Guerra na Ucrânia, podem haver novos choques nos preços de energia em breve.

Segundo a legislação, a deposição do presidente do Banco Central deve ser aprovada por maioria simples no Senado (41 votos de 81 parlamentares). O professor do Insper, porém, diz que a reação do mercado a uma medida como essa seria péssima. “Se isso acontecer, juros e câmbio vão ter um salto muito grande. É mais ou menos dar um tiro no pé”, acrescenta.

Costa, da UFPE, lembra que a autonomia do BC foi importante principalmente nas eleições de 2022, quando a autarquia comandada por Campos Neto não reduziu a Selic às vésperas do pleito. “Se o Banco Central não fosse autônomo, possivelmente o presidente [Bolsonaro] não teria deixado assim. Teria acontecido alguma interferência, como houve no passado. Era um ano eleitoral, qualquer notícia positiva ajudaria muito”, destaca.

Resquício do bolsonarismo

Politicamente, no entanto, a questão entre Lula e Campos pode ir além de uma briga por rumos econômicos, chegando a uma disputa ideológica. Segundo o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), o contexto político atual faz o terceiro governo de Lula ser bem diferente dos dois primeiros mandatos.

“Lá atrás, Lula assumiu na esteira do FHC. Estava habituado a uma ideia de república estável, de princípios democráticos. Agora a oposição não é mais galante de tucanos esclarecidos – tem um grupo de aloprados golpistas que aparelharam o Estado. Nessa conjuntura, uma das preocupações dele é a garantia das instituições republicanas contra o golpismo bolsonarista”, analisa Lynch.

O pesquisador da UERJ afirma que, por causa disso, o presidente do Banco Central é visto como um meio pelo qual o bolsonarismo tenta se manter. “Ele vê o Campos Neto como alguém que não é confiável. O problema é menos a independência do BC do que a pessoa do Roberto Campos, que é comprometido com o projeto neoliberal do Paulo Guedes até o pescoço”, acrescenta.

Durante as eleições de 2022, Campos Neto foi votar vestido com a camisa da seleção brasileira, num ato simbólico de apoio a Jair Bolsonaro. Mais recentemente, o presidente do Banco Central também foi flagrado em um grupo de WhatsApp com outros ex-ministros do governo anterior. Para Carolina Botelho, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e Opinião Pública (Doxa/IESP) da UERJ, esse último ponto coloca em xeque a independência de Campos Neto.

“A autonomia do BC não tira o caráter político de quem está cumprindo o mandato. A indicação é um cargo político”, diz ela. “Portanto, é bastante surpreendente ver que Campos Neto mantém um diálogo com o ex-governo. Essa é a grande questão. A crise veio daí, de um presidente que se outorgou a autonomia pela Constituição, o que não dá liberdade para conversar com pessoas do governo Bolsonaro”, acrescenta.

Botelho afirma que cabe ao gestor do BC agir com responsabilidade, assim como a responsabilização. “Numa situação republicana, o próprio presidente do Banco Central deveria se desculpar ou mesmo se demitir, porque isso fere um espaço político importante que ele ocupa. Essa mensagem que ele deu para a sociedade é desastrosa. Ele está como um presidente de um banco de um novo governo conversando com ministros e elites estratégicas de um outro governo”, opina a cientista política, que vê o movimento de Lula como uma forma de evitar um problema de governabilidade. “O jogo está claro, e há poucas razões para crermos que eles são cooperativos”, conclui.