O economista à frente da entidade responsável por fornecer suporte técnico às ações governamentais avalia o estado crítico das contas públicas e detalha o plano do Executivo para o Brasil crescer

Foi citando “A marcha da insensatez”, da historiadora Barbara W. Tuchman, que o presidente do IPEA, Carlos von Doellinger, encerrou esta entrevista à DINHEIRO. O livro faz uma análise de quatro conflitos de consequências desastrosas: a Guerra de Troia, a reforma protestante, a independência dos Estados Unidos e a Guerra do Vietnã. Segundo a autora, todos foram marcados por sucessivos erros de quem estava no poder. Incapazes de enxergar que estavam repetindo erros do passado, governantes e governados caminharam de forma convicta para o precipício. Para von Doellinger, esse é um risco que o Brasil não pode se dar ao luxo de correr. Se a reforma da Previdência não passar no Congresso, o economista, que é neto de alemães, promete não apenas largar o cargo como se mudar para a Alemanha.

Servidor aposentado pelo IPEA, von Doellinger já foi secretário-adjunto do Ministério da Fazenda, presidente do Banco do Estado do Rio de Janeiro, além de consultor do Banco Mundial e do programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Hoje, as questões mais importantes para o Brasil circulam no grupo de WhatsApp do qual ele faz parte, junto com a nata da equipe econômica do governo, comandada pelo ministro de Paulo Guedes, de quem é próximo há anos. Nas páginas a seguir, ele destaca o que essa equipe tem em mente para fazer com que o País cresça em ritmo chinês.

DINHEIRO – O senhor assumiu o IPEA há pouco, mas tem uma longa história no instituto, desde seu ingresso como pesquisador, em 1969. Que cenário encontrou e o que será preciso mudar?

CARLOS VON DOELLINGER – Fui funcionário por 28 anos, saí, fiz consultorias e me aposentei. Depois de velho me chamaram de novo. Participei da comissão que elaborou as sugestões para o nosso estatuto. O IPEA que encontrei é bem diferente e, honestamente, não gostei muito da estrutura. Não é funcional. São sete diretorias, um exagero. Minha ideia é reestruturar as diretorias e definir melhor as atribuições, enxugar e, principalmente, focar nas prioridades, nas grandes urgências do País.

DINHEIRO – Quais são as prioridades?

VON DOELLINGER – O ajuste fiscal, a Reforma Tributária, a Reforma Fiscal de uma forma geral, que tem relação com a simplificação, com a redução de impostos, que tem como objetivo reduzir o ônus da carga tributária e reduzir o custo de transação, com menos encargos acessórios, além da desestatização. Ao lado da Reforma da Previdência, podemos chamar essas de reformas do Estado. Elas vão ser enviadas sequencialmente para não atropelarem o Congresso. Já temos o texto da Reforma da Previdência, depois será enviada a PEC do Pacto Federativo, que já está pronta, mas que ainda não foi apresentada porque estamos aguardando o momento político certo.

“Não entendo essa resistência da classe política em aceitar a realidade”Cabe ao Congresso Nacional compreender a real situação econômica e aprovar as reformas necessárias (Crédito:Andressa Anholete / AFP)

DINHEIRO – Qual desses itens é o mais importante para o Brasil?

VON DOELLINGER – Nos velhos tempos do IPEA, anos 1970 e 1980, o balanço de pagamento era a grande restrição. Depois, passou a ser a inflação. Hoje, é o problema fiscal. Aliás, a Reforma Fiscal sempre esteve por trás de tudo. Agora, chegamos à exaustão, no limite do tudo ou nada. Ou a gente faz ou Brasil para de vez. Se não atacar esse ponto, não tem sucesso. Todo mundo quer investir no Brasil. O investidor está esperando que o governo faça a sua parte de tirar esse ônus fiscal.

DINHEIRO – Se aprovadas as reformas, qual será o potencial de crescimento da nossa economia?

VON DOELLINGER – O potencial é muito grande. Se você resolve isso, o potencial é chinês. O Brasil continua sendo a grande fronteira para os investidores. Aqui você tem disponibilidade de terras. E capacidade de aumentar muito a produção, usando vantagens competitivas, seja na agricultura, na pecuária, na mineração, na indústria de um modo geral e nos serviços de todo tipo.

DINHEIRO – A crise deixou alguma marca estrutural na nossa economia?

VON DOELLINGER – A reforma do Estado, a começar pelo Orçamento, pelo pacto federativo, vai remover um câncer que está tomando o organismo. No caso da Previdência, se extrapolarmos a tendência, uma vez que os benefícios vão crescendo a 11% ao ano, em cinco anos 100% do orçamento será para pagar benefício fiscal da Previdência. Se isso acontecer, acabou, não se faz mais nada. Hoje, as despesas discricionárias (não obrigatórias) estão em torno de 5% do total das despesas primárias, incluindo investimento, que é 2%. Isso é ridículo. O Brasil precisa resolver essa questão fiscal. Chegamos a um ponto de impasse, tem que resolver ou o Brasil vai ser um caso de falência.

DINHEIRO – Corremos o risco de um cenário como o da Venezuela?

VON DOELLINGER – Acho que temos este período de governo para mudar a direção e entrar num rumo sustentável de reequilíbrio. Temos que sair do ciclo vicioso do déficit/dívida para o ciclo virtuoso do reequilíbrio. Não entendo essa resistência da classe política em aceitar a realidade. Parece que estão em outro mundo ou talvez achando que o governo está pintando um quadro para assustar. É impressionante a nossa capacidade de negar a realidade.

DINHEIRO – Qual é a sua avaliação sobre a proposta da Previdência?

VON DOELLINGER – Está na medida. Alguma coisa pode ser negociada, como o ministro tem dito. Mas precisamos economizar este R$ 1 trilhão que está previsto. Estão falando: “Dá pra ser R$ 500 bilhões”. Não, não dá. Não resolve. Você empurra o problema mais dois anos para a frente, mas não resolve. Nos últimos 30 anos estamos sempre empurrando com a barriga. O governo sempre usou de expedientes para fugir das questões centrais, para dar um jeitinho.

DINHEIRO – Quais jeitinhos?

VON DOELLINGER – Entre 1979 a 1984, como assessor do ministro Delfim Neto, participei de sete acordos com o FMI. O Brasil não conseguia cumprir nenhum porque as metas do déficit sempre estouravam. Foi superada a crise externa, mas veio a inflação galopante. Por trás, sempre o desequilíbrio fiscal. Veio o Plano Real e tirou a indexação da moeda. Foi feito um programa grande de privatização e venderam todas as joias da coroa. Conseguiram uma grana boa e reduziram a dívida interna quase pela metade.

DINHEIRO – Mas a carga tributária cresceu…

VON DOELLINGER – Para manter em equilíbrio os fluxos de despesa e receita, houve um aumento brutal da carga tributária. No Plano Real, a carga tributária passou de 20%, 22% para 31%. Hoje, está em 34% porque todos os outros presidentes continuaram aumentando, mas o grande salto foi no governo Fernando Henrique Car-doso. E a despesa continuou crescendo.
Se o governo equilibra o patrimônio e reduz, com a venda de ativos para reduzir o passivo equivalente das dívidas, ok, é feito um acerto no patrimônio. Mas, se os fluxos do déficit continuam crescendo, logo a dívida volta e o dinheiro do que a gente vendeu foi para o ralo.

DINHEIRO – E esse aumento da carga tributária não foi suficiente?

VON DOELLINGER – Não foi suficiente. Tanto que a nossa dívida hoje está muito maior em proporção ao PIB do que aquela que o FHC reduziu com tanto sacrifício vendendo as joias da coroa. Hoje, nossa dívida pública está em 78% do PIB, recorde de todos os tempos na história do País.

DINHEIRO – A saída ainda passa pela desestatização e encolhimento do Estado?

VON DOELLINGER – Não temos mais nada de bom para vender, só a Petrobras e o Banco do Brasil. Das 136 empresas que temos, 130 dão prejuízo. O governo é que sustenta. Se extinguir estas porcarias todas, pelo menos você economiza recursos do Tesouro. Agora, receber liquidamente, será muito pouco. Por aí já não dá mais. Tem que vender para dar uma limpeza nestas porcarias que só dão despesa e não geram lucro nenhum. É cabide de emprego e todo mundo sabe disso.

“Não temos mais estatais boas para vender, só a Petrobras e o Banco do Brasil. O resto é cabide emprego” Plano do governo é vender quase todas as 136 estatais, a maior parte delas dependentes do Tesouro Nacional (Crédito:Bruno Santos/Folhapress)

DINHEIRO – Se a Reforma da Previdência não for aprovada ou não trouxer a economia esperada, a saída será aumentar impostos?

VON DOELLINGER – Não quero nem pensar nessa hipótese. Se não for aprovada, não quero estar aqui para ver, vou pedir asilo aos meus primos na Alemanha.

DINHEIRO – O Paulo Guedes sai do governo se não aprovar a reforma?

VON DOELLINGER – Não sei. Isso você tem que perguntar para ele. Eu é que não vou querer estar aqui no Brasil.

DINHEIRO – O que acontece com a economia se a Reforma da Previdência não passar?

VON DOELLINGER – Lamento muito pelas gerações futuras. Já estou na reta final, mas tenho oito netos. Quem vai sofrer são essas novas gerações. Desde os anos 1970 estamos fugindo do ajuste das contas públicas. Eu estava na equipe de transição da Nova República de Tancredo Neves e o ministro que iria assumir era o Francisco Dornelles. Na época, o Brasil tinha o orçamento do governo federal, das estatais e o orçamento monetário, que felizmente acabou. O Dornelles estava escrevendo o discurso de posse do Tancredo. Ali a gente já deixou claro que era preciso dar uma ênfase nos gastos e escrevemos: “É proibido gastar”. Essa frase ficou famosa no discurso do Tancredo, que foi lido pelo José Sarney. Já nessa época estava claro que era esse o problema.

DINHEIRO – Que Brasil o senhor espera daqui a quatro anos?

VON DOELLINGER – Um Brasil com inflação mais baixa que estes 3,8%. Não espero uma inflação germânica, mas uns 2% acho que dá para chegar.

DINHEIRO – O Congresso pode ser um obstáculo na aprovação das reformas?

VON DOELLINGER – Espero que não. Caso contrário vai afundar todo mundo. Eles precisam entender que é necessário ter grandeza de espírito. A oposição vai ser sempre contra. Mas o resto conseguiria encaminhar a provação. É preciso que entendam que isso é sobrevivência.

DINHEIRO – Uma das últimas pesquisas do IPEA revelou que os pobres são os que mais sofrem com a inflação. A inflação é, inclusive, maior para eles. Como resolver esse problema?

VON DOELLINGER – Isso sempre foi um problema. No tempo da hiperinflação era o mecanismo mais perverso de concentração de renda. Quem tinha aplicação financeira se defendia da inflação. Chegamos a ter indexação diária dos ativos financeiros. Lembro da hiperinflação da Alemanha, de 1921 a 1923, no fim da primeira guerra, quando as pessoas recebiam o pagamento de manhã e saiam para comprar tudo o que encontravam porque os preços dobravam à tarde. A Alemanha ficou vacinada contra a inflação e o ajuste fiscal e hoje é o único país do mundo que tem superávit fiscal nas contas públicas e superávit no balanço de pagamento.

DINHEIRO – A taxa selic está em 6,5% há cerca de um ano e a atividade ainda não responde. O que falta para responder?

VON DOELLINGER – O problema é que a inflação está dando uns repiques. O Copom (Comitê de Política Monetária) manteve os juros porque estamos tendo probleminhas. Não que esteja ameaçando subir, mas a hora não está propícia para subir juros. O governo tem que mostrar um pouco mais de serviço nas reformas porque essa é a expectativa do setor privado. Tem que mostrar algum resultado e por isso o Banco Central, conservador, manteve a taxa. Temos que fazer esse ajuste nos fluxos, principalmente nas despesas. O bloco principal é a Previdência, que representa 50% das despesas primárias. Depois a gente vai poder fazer as outras reformas do Estado, o pacto federativo e tudo mais e mostrar serviço para poder voltar a crescer.