Durante quase duas décadas, a companhia aérea TAP Portugal simbolizou, com desenvoltura exemplar, a ineficiência e os maus resultados típicos das estatais europeias. Ao lado de empresas como a italiana Alitalia (privatizada às pressas em 2006) e a espanhola Iberia (incorporada pela British Airways em 2010), esteve bem perto da bancarrota. No auge da crise, em 2014, a TAP superou a marca de € 1 bilhão em dívidas e prejuízo de € 44 milhões em 12 meses – um recorde absoluto, mesmo entre estatais perdulárias. Com uma frota defasada, quadro de funcionários inchado, péssima reputação juntos aos consumidores e controlada por um estado também deficitário, as chances de sobrevivência eram mínimas. “A TAP atravessou um dos períodos mais desafiadores da sua história, com problemas estruturais internos para resolver e dificuldades em se adaptar ao acirramento da concorrência no setor aéreo”, disse à DINHEIRO, em Lisboa, o baiano Antonoaldo Neves, CEO global da companhia desde fevereiro de 2018.

David Neeleman, dono da Azul e sócio da TAP: “Queremos dar continuidade ao legado da TAP e criar uma companhia financeiramente sólida”

O executivo assumiu a cadeira do também brasileiro Fernando Pinto, ex-presidente da extinta Varig, e que havia presidido a TAP durante 17 anos. Avesso a entrevistas, Pinto atua hoje como consultor independente. A troca de comando foi orquestrada pelo empresário americano-brasileiro David Neeleman, dono da Azul Linhas Aéreas, que adquiriu, junto com o bilionário português Humberto Pedrosa, 45% da TAP por € 338 milhões em 2015, através do consórcio Atlantic Gateway. “Queremos dar continuidade ao legado da TAP em matéria de segurança e profissionalismo e, simultaneamente, criar uma companhia financeiramente sólida no longo prazo, que perdurará para as gerações futuras”, disse Neeleman, logo após vencer o leilão.

Pelo acordo firmado no processo de privatização, o governo de Portugal manteve 50% do capital, mas abriu mão de participar da gestão. Os 5% restantes ficaram para os funcionários da empresa, fatia que ajudou a equalizar pendências trabalhistas que poderiam inviabilizar a continuidade das operações. “Tivemos de definir uma estratégia de recuperação que atendesse às expectativas de todas as partes envolvidas, tanto as do governo e da sociedade portuguesa quanto às dos credores e dos novos acionistas”, afirmou Pedrosa, o sócio lusitano de Neeleman e dono do Grupo Barraqueiro, maior conglomerado de empresas de logística de Portugal, com ônibus, caminhões, trens e metrôs.

A turbulenta trajetória da TAP é, ao que tudo indica, uma página virada na história da companhia – e o Brasil, responsável por cerca de 30% do faturamento, é protagonista nesse enredo. No ano passado, a TAP faturou cerca de € 3,2 bilhões (segundo estimativas de mercado, com base no aumento do fluxo de clientes), acima dos € 2,9 bilhões de 2017. Houve também um crescimento de 10% no número de pessoas transportados em todo o mundo: foram 15,8 milhões de passageiros no período, 1,5 milhão a mais do que em 2017. O bom desempenho teve a providencial contribuição da alta de quase 8% no super-rentável trecho Brasil-Portugal, com 1,7 milhão de clientes, embarcados em dez capitais do País. A empresa se consolidou na liderança da rota Brasil-Europa, respondendo por 30% de todos os voos. “O ano foi excepcional para nós, e coroou um intenso trabalho de construção da nova TAP”, afirmou Neves (leia mais na entrevista ao final da reportagem).

A alta de dois dígitos da TAP pode parecer trivial, mas é emblemática, especialmente para o mercado europeu. Um dos principais rivais da empresa – se não o maior –, o grupo franco-holandês Air France-KLM cresceu 2,8% no mesmo período, com 101,4 milhões de passageiros em 2018. Já o grupo alemão Lufthansa cresceu 4,7% a partir de seu hub em Frankfurt. “A performance financeira e operacional da TAP é notável sob vários aspectos, especialmente por se tratar de uma empresa que estava em profunda dificuldade há três ou quatro anos”, disse o consultor Henry Grossbongardt, especialista em aviação comercial. “Nem todas as áreas concluíram seus balanços de 2018 até agora, mas o desempenho da TAP é, muito provavelmente, o melhor entre as grandes companhias europeias”, completou. No ano passado, a TAP registrou lucro de € 100 milhões, o primeiro resultado positivo em quase 20 anos de perdas consecutivas.

Humberto Pedrosa, sócio-controlador da TAP: “Tivemos de definir uma estratégia que atendesse às expectativas de todas as partes envolvidas”

ESTRATÉGIA A recuperação da companhia portuguesa não se deu apenas com a mudança de cidadania dos executivos e controladores. Nos últimos 12 meses, a dupla Neves e Neeleman pilotou uma ousada manobra para tirar a empresa do sufoco e não permitir que o lucro de 2017 se tornasse um fato isolado. A mudança mais visível é a renovação da frota. Somente neste ano, a empresa receberá 37 novos A320 Long Range (para voos de longa distância) e A330-900neo, o mais moderno avião da Airbus. A TAP é, aliás, a única no mundo a operar com esse modelo. Atualmente, três aeronaves voam diariamente entre Brasil e Portugal. Outros dois serão acrescentados a esse trecho ainda no primeiro semestre. Até 2025, a TAP pretende acrescentar outros 34 aviões novos à sua frota. O investimento pode chegar a US$ 20 bilhões, considerando que cada avião custa mais de US$ 250 milhões, de acordo com a configuração de assentos e pacote de opcionais. “Ao colocar os melhores aviões na operação brasileira, a companhia claramente demonstra suas ambições para o mercado nacional”, disse Mario Carvalho, diretor-geral da TAP no Brasil.

Outra frente da reestruturação da empresa é a busca pela melhoria dos índices de pontualidade, historicamente um ponto fraco da TAP. Todos os dias, nas primeiras horas da manhã, Antonoaldo Neves visita o centro de operações da companhia para verificar os índices de atrasos, cancelamentos e eventuais casos de overbooking. Esse empenho, já empregado com sucesso pelo executivo enquanto presidente da Azul, fez com que o índice de pontualidade na TAP atingisse 91% em janeiro deste ano, segundo a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, na sigla em inglês). Na Europa, a média é de 89%. Isso ajudou a elevar a taxa de ocupação dos voos (load factor), para 81%, acima da média regional de 78%. “O ano de 2018 foi de forte demanda de passageiros. Esperamos desempenho similar em 2019”, disse Alexandre de Juniac, diretor-geral e CEO da IATA, em recente relatório da entidade. “As preocupações estão mais associadas à desaceleração do crescimento no segundo semestre de 2018, com questões como a Brexit e tensões comerciais entre EUA e China.”

A reação da TAP passou, evidentemente, por uma importante injeção de capital. Em 2016, através da Azul, Neeleman fez um aporte de € 120 milhões na empresa. Nos últimos oito meses, no entanto, outros € 240 milhões entraram nos cofres da TAP por meio de empréstimos, sendo € 137 milhões junto ao Macquarie Group, com sede em Londres, e € 70 milhões do Banco do Brasil. “A concessão desses empréstimos endossam a nossa percepção de que o mercado internacional tem aprovado e visto com bons olhos o nosso plano estratégico”, disse Neves. “Graças a tudo isso, a TAP hoje cresce a taxas de mercado emergente, apesar de operar num mercado maduro e estável. E não vamos parar de crescer.”


“Não estamos mais vendendo o almoço para comprar o jantar”

Antonoaldo Neves, CEO global da TAP Portugal

Que balanço é possível fazer desse seu primeiro ano no comando da TAP Portugal?
Um ano de muito trabalho e desafios. Desde que assumi a presidência, em fevereiro de 2018, ajudei a implementar uma extensa série de mudanças internas e externas na companhia. Fizemos ajustes de quadro de funcionários, otimização de custos e modernização de processos. Fizemos importantes aquisições de novas aeronaves, que permitirão voos mais rápidos, confortáveis e com significativa redução de consumo de combustível. Melhoramos todos os índices da TAP, desde pontualidade até o de satisfação do cliente. Em tempos de concorrência acirrada, quem não encantar o cliente está fora do jogo. Ou seja, estamos fazendo o que precisa ser feito.

Toda essa reestruturação será feita por meio de endividamento?
Isso é natural em uma companhia aérea. A dívida serve para financiar o nosso crescimento. Os recentes empréstimos representam uma grande vitória para nós. Antes, a percepção do mercado internacional sobre a TAP era negativa. Agora, está evidente que acreditam na credibilidade, no know-how dos acionistas e na estratégia que estamos implementando para o crescimento da TAP. Graças ao sucesso na execução do nosso plano estratégico, a TAP hoje cresce a taxas de mercado emergente, apesar de operar num mercado maduro e estável. Hoje somos um investimento atrativo, apesar do contexto internacional tão difícil e avesso à concessão de crédito como o atual.

Então, a questão de caixa está equacionada na companhia pelos próximos anos?
Com certeza. Estamos pagando a dívida herdada, mas com uma operação extremamente saudável. Não estamos mais vendendo o almoço para comprar o jantar, como se diz no Brasil. Estamos conseguindo financiar o nosso projeto de crescimento, não por substituição de dívida, mas por uma estrutura de capital sustentável. A TAP hoje tem crédito e ao mesmo tempo paga os seus compromissos. A empresa deixou de ser um ativo tóxico para os bancos. Antes, quando íamos aos bancos, parecia que tínhamos lepra. A primeira pergunta que me faziam era sobre a TAP Manutenção no Brasil, a segunda era sobre como iríamos gerar fluxos de caixa operacional para pagar dívida.

Até onde a TAP quer chegar?
Em receita, passaremos de um patamar de € 2 bilhões para quase € 4 bilhões em quatro anos. Vamos colocar mais 37 aviões de nova geração neste ano. Não há memória de outra companhia no mundo que tenha feito uma renovação tão grande da frota em apenas um ano. A operação em Washington, São Francisco e Chicago será excepcional. Os EUA vão tornar-se um outro Brasil para a TAP. Daqui a três anos, vamos ter cerca de 80 voos para os Estados Unidos e em cinco anos teremos 120. Hoje, o Brasil tem 82 voos por semana. Volta-mos a crescer de forma consistente e estamos preparados para nos consolidar como a mais brasileira das companhias aéreas europeias.