Nos anos 50, quando a televisão se transformou no eletrodoméstico mais desejado pela classe média, não faltou quem declarasse que o rádio estava morto. Afinal, quem daria atenção a uma mídia baseada apenas em áudio quando já existia uma nova que juntava sons e imagens? Os rumores sobre a morte do rádio foram largamente exagerados. Setenta anos depois, ele segue vigoroso na forma de podcast e transmissão por streaming, que o deixa igualzinho a uma TV.

A Joven Pan, rádio paulistana fundada em 1944, lança em outubro o Pan Flix, um agregador de conteúdo que rodará no YouTube. Ele também estará disponível em forma de aplicativo para smartphones e virá embarcado nas TVs da Samsung. O Pan Flix já chega gigante: somados, os 24 programas da rádio disponibilizados no YouTube tiveram 42 milhões de visitantes (unique visitors) nos últimos 90 dias. O número de inscritos de cada um dos canais também impressiona. O Pânico, talk show bem humorado conduzido por Emílio Surita, tinha 1.909.266 seguidores até quarta-feira 28. Já o Pânico na Internê, canal que reúne material produzido para a TV Band até 2017, tem outros 8.546.085. Na preferência do usuário seguem o Jovem Pan News (1.798.783) e Os Pingos nos Is (1.346.508), que trocou de posição com o Jovem Pan Esportes (1.302.394) na semana passada.

É muito, mas o potencial de crescimento é ainda maior. A pesquisa Video Viewer feita pelo Google em 2018 afirma que 44% dos consumidores de vídeo do País preferem o YouTube, o que dá à plataforma o segundo maior share do segmento, atrás apenas da TV Globo. “O segredo da Jovem Pan foi colocar opinião no ar, já que jornalismo é commodity”, diz Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o Tutinha, presidente do grupo. “Hoje todo mundo dá opinião, mas há cinco anos, quando começamos, ninguém fazia isso”.  O CEO da Jovem Pan, Roberto Alves de Araújo, concorda: “Ninguém compartilha um vídeo de hard news, mas compartilha uma opinião. Nossos vídeos opinativos dão 80% a mais de engajamento.”

Há quem atribua o sucesso da Pan à chamada “onda conservadora” que começou a partir dos protestos de 2013. De fato, boa parte dos colunistas e comentaristas da rádio está alinhada à direita do espectro político. “Esse recorte e enquadramento de público é bastante claro”, avalia Jorge Roberto Tarquini, professor de Crítica da Mídia na Universidade Metodista, em São Paulo, e de Empreendedorismo em Negócios de Mídia na Edição Editorial na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Isso é um posicionamento de marketing e o resultado é mercadológico”. Roberto Alves de Araújo observa, contudo, que há cinco anos, quando a rádio começou a dar destaque à opinião, a popularidade do ex-presidente Lula, mesmo fora da presidência, passava dos 70% e a “onda conservadora” ainda era uma marolinha.

Emílio Surita no Pânico: dois milhões de inscritos no Youtube depois que o programa trocou o besteirol pelo debate político com bom humor e irreverência (Crédito:Divulgação)

INVESTIMENTO

Para subir de posição no mercado de streaming, a emissora investiu R$ 30 milhões em novos estúdios, que serão inaugurados em outubro. Embora não estejam totalmente prontos, já é possível perceber que o Pan Flix terá a cara de uma emissora de TV. Além dos programas atuais, que já são todos gravados em vídeo, vários outros serão criados para as novas plataformas. Depois da opinião, a ideia é apostar no entretenimento.

“Vamos ter um programa de entrevistas parecido com o Roda Viva e apresentado pelo Augusto Nunes”, empolga-se Tutinha. “O Caio Coppola, que faz muito sucesso na rádio, também vai ter o programa dele. Vai ter mesa redonda de futebol, que não temos, e um programa de humor com o Felipe Xavier e o Maurício Meirelles, além do Mulheres da Pan. O piloto já está no YouTube e teve 125 mil views e 32 mil assinantes sem nenhuma divulgação”.

Há mais novidades. O Pânico será completamente reformulado, haverá uma série de conferências ao estilo do TED Talks e a menina dos olhos de Tutinha: uma retrospectiva histórica produzida com o material que a rádio mantém desde os anos 50. Entre os temas listados estão a chegada do homem à Lua, os gols de Pelé, guerra do Vietnã, queda do Muro de Berlim e os ataques de 11 de setembro de 2001.

Para que tudo isso funcione, no entanto, a mudança mais significativa é no modelo de negócios. “A Jovem Pan se posiciona hoje como uma OTT (over-the-top, sigla que designa empresas que distribuem conteúdo via streaming)”, explica Roberto Alves de Araújo. “Nesse segmento, existem dois modelos: ou você ganha com anúncios ou com assinatura, mas nenhum dos dois fecha a conta.” De início, o Pan Flix será gratuito. No futuro, é possível que exista uma área premium, sem anunciantes, repetindo a estratégia “freemium” do Spotify, que mistura ambientes pagos e gratuitos. “Estamos numa fase de disrupção digital onde a audiência já chegou, mas não a monetização”, explica Araújo. “Isso também aconteceu com a TV a cabo lá atrás, a monetização veio depois.”

O Pan Flix, porém, entra na corrida com alguma vantagem: a audiência já existe e só precisa ser reempacotada. Na terça-feira 27, a emissora contratou Guilherme Lima para comandar a transformação digital da área comercial. Ele trabalhou na Rede Globo Digital, na Microsoft e na In Loco e tem a missão de mudar a percepção do mercado anunciante. Veículos tradicionais, como rádios e revistas, vendem espaços publicitários fixos que são intercalados ao editorial. O modelo ainda funciona, mas as marcas buscam cada vez mais causar impacto no cliente, independentemente da plataforma. Vem daí a ascensão dos “influencers”, que hoje disputam uma verba publicitária antes restrita às empresas de mídia. Mas isso não incomoda o Pan Flix. Na verdade, estimula. “Nós temos a possibilidade de criar 600 a 700 milhões de impactos por mês só na rádio”, diz Roberto Alves de Araújo. “No YouTube, onde temos uma audiência crescente e a capacidade de entrega é muito maior, conseguimos entregar 2,7 bilhões de impactos.”

A equipe do Pan Flix: nos últimos 90 dias, programas somaram 42 milhões de Unique Visitors no Youtube (Crédito:Claudio Gatti)

A Joven Pan agora é partnersale do YouTube. Isso significa que, além da mídia programática do Google, exibida nos canais, ela pode vender a própria publicidade. O rádio deixa de ser o centro do modelo de negócios e passa a ser apenas mais um canal. A venda passa a ser “360” e inclui as redes sociais, os aplicativos e os canais Pan Flix no YouTube.

A aproximação do Google com a mídia tradicional começou há um ano com o projeto Google News Initiative, espécie de fórum para limpar a barra com as empresas jornalísticas. Oficialmente, a ideia é ajudar jornais, revistas e rádios a sobreviverem no ambiente inóspito da disrupção digital. Mas o fato é que o Vale do Silício é hoje atacado por direita, esquerda, conservadores e liberais. A crescente concentração de renda e a difusão de ideias extremistas são atribuídas às empresas tec da Califórnia. Com razão. Novas tecnologias desmontam setores inteiros da economia e, com o declínio da mídia tradicional, o debate político migra para as redes sociais, onde proliferam as fake news. Ajudar as empresas jornalísticas a sobreviver no novo ambiente é essencial para a boa imagem do Vale do Silício.

CONTEÚDOS “SEGUROS” Além disso, o YouTube precisa de conteúdo brandsafe para não afastar anunciantes. Um dos casos mais rumorosos a envolver a plataforma é o do sueco Felix Kjellberg, o PewDiePie, um dos maiores youtubers do mundo com 100 milhões de seguidores e faturamento anual de US$ 15,5 milhões, segundo a revista Forbes. Em 2017, ele colocou no ar vários indianos segurando cartazes onde se lia “Morte a todos os judeus”. Ele diz que era piada. A ideia era demonstrar que, por apenas US$ 5, era possível contratar um indiano para fazer qualquer coisa.

A explicação piorou uma situação já muito ruim e vários anunciantes entraram em atrito como YouTube, exigindo que seus comerciais só fossem associados a conteúdos “seguros”. O YouTube foi buscar ajuda na mídia tradicional — e a Jovem Pan foi uma das primeiras parceiras. Com a associação, a venda de publicidade é muito mais assertiva. O CEO Roberto Alves de Araújo explica a diferença: “No modelo off-line você vendia a audiência que o instituto de pesquisa dizia qual era. Tinha o pós-venda, naturalmente, mas não a garantia de que um grupo de pessoas com determinado perfil veria de fato o anúncio. No on-line é completamente diferente: você precisa garantir a entrega.”

O espectador sempre foi o principal ativo de uma empresa de comunicação. Mas num serviço como o do Pan Flix, as informações sobre o consumo de informação são muito mais objetivas. É possível saber exatamente o que o usuário acessa, por quanto tempo e em qual plataforma. “É um mundo mais democrático e mais aberto”, diz Tutinha. “Hoje o que vale é o conteúdo e até um cara com uma câmera de celular pode derrubar um presidente.” O professor Jorge Tarquini concorda: “O streaming vai irmanar todos os veículos e a Jovem Pan saiu na frente.” Ousadia pressupõe riscos, mas isso parece não incomodar os arquitetos do Pan Flix. “Nós não temos medo de errar”, diz Roberto Alves de Araújo. “É melhor errar do que ter medo de fazer”.