Por definição, ignorância representa o “estado de quem não tem conhecimento ou cultura, seja por falta de estudo, experiência ou prática”. No dia a dia, tendemos a achar que são ignorantes pessoas grosseiras. Ledo engano. Ignorantes são aqueles privados de desenvolvimento cultural e educacional e que tendem a reagir de forma rasa, violenta ou alienada ao mundo no qual está inserido. Agora, com o orçamento público destinado à cultura e educação em risco, deparamos com um ponto de inflexão que pode durar algumas décadas e refletir, diretamente, na nossa economia no futuro.

É fato que, desde redemocratização do País, os investimentos públicos executados com educação e cultura têm se mostrado pouco eficientes. Mas, com a aprovação do teto dos gastos em 2016 – que congelou por 20 anos um aumento brusco nas despesas para conter a dívida pública –, esse tipo de dispêndio orçamentário se tornou ainda mais engessado e ineficaz. Tudo isso num momento em que o mundo enfrenta uma transformação digital que resulta no consumo cada vez mais globalizado de cultura e uma demanda cada vez maior por refinamento na educação.

Nesse contexto de contingenciamento, dois fatos recentes acenderam o sinal de alerta até entre os economistas mais liberais: a aproximação do prazo final para remodelar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que termina em dezembro, e os ruídos na Secretaria de Cultura, que perdeu a alcunha de ministério no ano passado. Enfrentando graves problemas de gestão, a pasta teve seu orçamento diminuído em
quase 35% em três anos.

Segundo dados do IPEA, os gastos com educação e cultura dão retorno direto na economia. Na última pesquisa, referente a 2016, estimava-se que a cada R$1 aportado em educação, o retorno na economia real era de R$ 1,89, ao passo em que o mesmo valor investido em cultura resultava na injeção de R$ 1,59 na economia. “Não é uma questão de ideologia. É uma questão matemática. Do lado da educação, melhores currículos escolares geram pessoas mais preparadas para empregos melhores e mais sábias para lidar com os desafios do mundo moderno”, diz Sérgio Silveira, PhD em educação e único professor brasileiro atualmente no corpo docente da universidade de Yale, nos Estados Unidos. “Por outro lado, o estimulo à cultura nacional dá retorno com geração de emprego e fomento tecnológico”, acrescenta Silveira.

Apesar dessa constatação, o que se vê na gestão atual do presidente Jair Bolsonaro é que o discurso anti-ideologia acaba por colocar em risco os poucos avanços que tivemos nas últimas décadas. No caso da educação, o ministro Abraham Weintraub tem se colocado no centro de polêmicas desde que assumiu a pasta, em 10 de abril do ano passado, depois de uma gestão muito criticada de Ricardo Vélez Rodríguez.

FUNDEB De lá para cá, o ministro bateu na língua portuguesa – como no constrangedor episódio em que escreveu “imprecionante” –, errou números referentes ao próprio ministério e afirmou que mandará para o Congresso uma nova proposta para reformulação do Fundeb. Hoje, cerca de 95% dos recursos públicos para a educação básica, fundamental e média são provenientes desse fundo. Previsto para acabar em dezembro – quando completa 10 anos –, o Fundeb tem sua renovação em debate por senadores e deputados desde 2018. Segundo Weintraub, a ideia é tirar da pauta o texto que vem sendo articulado e trocar por um novo, enviado pelo governo. “Não há chances de atrasarmos ou de o fundo ser extinto. Mas o Congresso não avança. Vamos agir”, disse ele. Maria José Lima, que foi deputada federal pela Bahia e uma das relatoras do Fundeb, alerta para os riscos de interromper os recursos. “Começar do zero já faz parte da tradição que pesa sobre a educação brasileira. Todo governo começa do zero. A única novidade é o tom colocado pelo ministro Weintraub na discussão”, disse ela, que hoje preside a Casa da Educação Anísio Teixeira, em Brasília. “Temos de ter clareza de que a interrupção do Fundeb provocaria uma grande desorganização no financiamento da educação básica e colocaria termo à mais importante experiência de encaminhamento de políticas públicas tendo como base a solidariedade federativa”.

No lado da cultura, as polêmicas também tiram o tom dos recursos frustrados. No último dia 17, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim, divulgou um vídeo com um discurso baseado no proferido por Joseph Goebbels, ministro das Comunicações e Propaganda de Adolf Hitler, durante a Alemanha nazista. O vídeo, que entoava uma música do também alemão e simpático ao nazismo Richard Wagner, foi criticado dentro e fora do governo, o que resultou na exoneração meteórica do secretário. Antes disso, ele já havia criticado a atriz Fernanda Montenegro, além de ser acusado de censurar produções artísticas da Funart. Com a saída de Alvin, o nome mais cotado para assumir a pasta é o da atriz Regina Duarte, apoiadora de Bolsonaro desde a eleição.

O softpower da cultura

Fenômeno Mundial
Sul-coreanos BTS arrecadaram US$ 3,6 bi em 2019. (Crédito:Chris Pizzello)

No meio de tantas incertezas e tantos recomeços, tudo o que o Brasil tem feito em nome da cultura e educação está gerando poucos resultados positivos de médio e longo prazos. A título de comparação, do outro lado do mundo, um país asiático decidiu que essas duas vertentes do conhecimento precisariam ser estimuladas. Os resultados são estrondosos. Em 1960, a renda per capta do Brasil (US$ 3,39) era quase o dobro da registrada na Coreia do Sul (US$ 1,75). Nos anos 1970, já com o Brasil sob o regime militar, as duas rendas se equipararam em US$ 3,42. Hoje, a renda brasileira gira em torno de US$ 11,80, enquanto a da Coreia do Norte está em quase US$ 30 (cerca de 160% mais alta). “Essa mudança começou nos anos 1990, quando, em meio a uma crise econômica, o governo coreano entendeu que precisava se modernizar. O primeiro passo foi investir em educação”, afirma Daehan Hideyoshi Minguk, especialista em economia asiática. “Para ser ter uma ideia, a região forma hoje seis vezes mais engenheiros do que o Brasil e 70% dos jovens cursam universidades”, destaca Minguk.

Definida a prioridade em educação, um segundo passo foi entender a cultura como algo promissor para imagem do país frente ao resto do mundo. Ainda na década de 1990, o então presidente Kim Young-sam tomou uma decisão que mudaria a Coreia do Norte, que era um consumidora voraz de conteúdo, mas não produzia. “Naquele momento, o presidente pensou ‘para que importar se podemos fazer aqui?’. Assim, nasceram as novelas locais. A partir de então, foi criado um ministério para o fomento cultural, e o volume produzido só cresceu”, conta Minguk.

A partir dos anos 2000, a música coreana ganhou espaço na Ásia. Até que, em 2012, um vídeo atravessou a fronteira do ocidente. Com letra satirizando o “modo americano de viver”, a canção Gangnam style, do cantor Psy, rendeu aos cofres coreanos cerca de US$ 380 milhões, entre 2012 e 2013, e foi considerada um projeto piloto bem sucedido. Depois disso, o governo coreano estimulou diretamente o nascimento do que hoje é conhecido como K-Pop (bandas de jovens coreanos, com cinco integrantes e que são uma febre mundial entre adolescentes). Segundo a Billboard, em 2018 apenas a banda BTS, a mais famosa desse nicho, levou para a Coreia US$ 3,6 bilhões. “Mas não é só o dinheiro. É a mensagem internacional. A exportação de cultura ajuda na consolidação de uma imagem para o mundo, e tem um enorme efeito moral para a diplomacia do país”, diz Minguk. Sérgio Silveira acrescenta que há um termo em inglês para definir essa influência cultural: softpower (algo como “poder suave”).

INFLUÊNCIA Silveira explica que essa expressão é usada para países que querem impor sua influência ao mundo, mas sem usar coerção de dinheiro ou supremacia militar. Exemplo desse movimento mundial foi visto no último dia 7 de janeiro, quando o filme O Parasita, do sul-coreano Bong Joon-ho, ganhou o Globo de Ouro de melhor filme. Em seu discurso de vitória, o cineasta falou que um novo mundo se abriria quando as pessoas aceitassem ver filmes em outras línguas, além do inglês. Sucesso de crítica, a película também está entre as favoritas para abocanhar um Oscar, em fevereiro.

Diante de tudo isso, o diplomata Jeong Gwan Lee, que foi embaixador da Coreia do Sul no Brasil de 2015 a 2018 e escreveu o livro Brasil aos olhos da Coreia”, avalia esse projeto de longo prazo mudou a cara do seu país. Segundo ele, os efeitos são palpáveis e duradouros. “O Brasil já tem feito parte da lição de casa, principalmente no controle maior das contas. Também está certo em se mostrar aberto ao comércio mundial. Agora, precisa dar atenção à sua base”, diz Lee. “Educação e cultura são vetores importantes de crescimento. Levando em conta o investimento em relação ao PIB, o Brasil é um dos países que mais gasta com educação. O problema é que o gasto poderia ser mais bem direcionado”. O diplomata, que hoje dá aulas em Seul, capital da Coreia do Sul, ressalta que sua experiência no Brasil foi fantástica e que os dois países ainda podem se ajudar em todas as esferas, basta investir mais em salas de aulas (e de cinemas).

“A arte brasileira da próxima década será heróica e nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às inspirações urgentes do nosso povo – ou então não será nada” Roberto Alvim, ex-secretário de Cultura ao reproduzir fala nazista.