Preocupado com o aumento do desemprego e da poupança, o ex-secretário do Tesouro entende que a retomada do crescimento exige controle dos gastos públicos e estabilidade política.

Secretário do Tesouro Nacional em 2006, ex-diretor do BNDES e ex-economista-chefe do Citi e do Banco Safra, Carlos Kawall faz parte agora da Asa Investments, nova instituição do grupo Alberto Joseph Safra, criada no fim de 2019 como Asa Bank. Sob novo nome, a instituição se reposicionou no início de junho. Ela agora está mais voltada para a gestão de ativos. Em conversa com a DINHEIRO, Kawall afirmou que o mercado de trabalho foi muito afetado pela pandemia de Covid-19 e que haverá aumento da poupança devido à falta de confiança da classe média para consumir. São fatores que devem dificultar a retomada da economia. E o governo não teria situação fiscal suficientemente boa para a injeção de mais estímulos. O economista diz acreditar que as contas públicas podem ser controladas, com a situação política mais estável — e que a taxa Selic deverá cair a 1%.

DINHEIRO – Quando a economia terá uma retomada da crise da Covid-19?
CARLOS KAWALL – Esta crise tende a ser, em tese, mais rápida do que foi em 2008 e 2009. Mas não quer dizer que a retomada se dará em um ano. Para o Brasil, estimamos uma queda de 5,8% do PIB, neste ano, e alta de 2,8%, em 2021. Depois, de 2022 em diante, o ritmo ficará em 2,5%. Então, a queda deste ano só será recuperada em 2023.

O mercado de trabalho seguirá esse ritmo?
Mais da metade da população economicamente ativa está sem trabalhar. Essa é uma métrica que não se usa no Brasil, mas que é muito usada nos Estados Unidos. E é mais adequada ao momento que do que a taxa tradicional de desemprego, que subiu para 13%. É preciso lembrar que a maioria dos desempregados não está ativamente procurando emprego. Quando isso acontecer, o desemprego estará tendendo a 20%. Dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) mostram que, desde fevereiro, foram destruídos 1,4 milhão de empregos formais. O Brasil tinha criado, de 2018 até janeiro de 2020, cerca de 1,3 milhão de postos. A crise destruiu em três meses mais do que o País criou em 26 meses.

Há muita discussão sobre a alta dos preços das ações em oposição aos fortes impactos da Covid-19 na economia real. Esse descasamento está muito grande?
Assisti a uma discussão bem interessante entre Ian Bremmer [cientista político, fundador da consultoria Eurasia Group] e Mohamed El-Erian, um mago da gestão, com passagens pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), Citi e Pimco. Eles discutiram o porquê da dissociação entre a economia real e o mercado de capitais. Para El-Erian, isso acontece por conta da política dos bancos centrais. Houve uma ação muito mais coordenada, muito mais forte em volume de recursos, na área fiscal. Nos países desenvolvidos, a ajuda vai ficar entre 8% e 14% do PIB. El-Erian defende que a adição de liquidez ao mercado e os juros baixos no lower bound (faixa mais baixa possível para ter efeitos de estímulo), chegando a juros reais negativos, são políticas para fazer o investidor realocar os seus recursos para ativos de risco. Dessa forma, os preços das ações são sustentados e o setor imobiliário reage. E, se os bancos centrais começarem a observar queda nos preços dos ativos, vão fazer mais estímulos. Essa é uma ação deliberada, na opinião dele, para dissociar os ativos da economia real.

No Brasil ocorre o mesmo?
Chegamos a juros extremamente baixos e observamos a bolsa se recuperando. Os dados da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) mostram que saiu dinheiro da renda fixa. E, por outro lado, vemos por 21 meses seguidos os fundos de ações com captação líquida de recursos. Também começamos a ver uma recuperação dos imóveis. O financiamento está muito barato frente ao aluguel. E quem está alugando vai receber taxa maior do que a renda fixa. Há também várias empresas indo para a bolsa para captar recursos. Principalmente dos setores ganhadores na pandemia, que querem aproveitar o momento, como as varejistas. Esse descolamento às vezes parece irracional. É óbvio que o mercado não é um julgador perfeito das expectativas. Ele vai para um lado, erra. Mas há lógica.

“Para Mohamed El-Erian, a dissociação entre a economia real e o mercado de capitais acontece por conta da política dos bancos centrais de dar liquidez. É uma ação deliberada” (Crédito:Felix Hrhager)

Se houver uma segunda onda de Covid-19, o Brasil terá como conceder novos estímulos?
Entendo que não. A crise tem várias diferenças em relação à anterior, que atacou os países desenvolvidos e preservou os emergentes. Desta vez é horizontal. Quem tem mais capacidade, como Chile e Peru, poderá fazer respostas mais expressivas. Na outra ponta, o Brasil não tem. O déficit público vai ser, este ano, de 10% a 11% do PIB.

Então esse risco ainda existe?
O prêmio de risco no CDS (credit default swap, que indica a percepção de riscos) lá fora e a curva de juros futuros, aqui dentro, se elevariam. Mas já estamos observando, desde o fim de maio, melhora do prêmio de risco, com volatilidade menor e a bolsa subindo. É o que chamamos de melhora das condições financeiras. E, mesmo que o câmbio esteja num patamar alto e continue volátil, ele se acomodou próximo de R$ 5,30. O que está por trás disso, além da curva de contaminações da pandemia? Existe uma leitura de que o quadro político se assentou em comparação com o pior momento, entre março e abril. Houve distensão desses riscos com a aproximação do governo para parte do centrão. Não há consenso perfeito entre a agenda do Congresso e a do governo daqui para frente, mas deixamos de ter ameaças de pauta bomba. E várias lideranças do centrão indicam um compromisso de que o Orçamento de Guerra termina em dezembro.

Mas há gastos ainda no horizonte, como a criação do Renda Brasil.
Segundo Bruno Funchal, novo secretário do Tesouro Nacional, o objetivo é que caiba no teto de gastos. A ideia que muitos tinham era de que a aproximação do centrão poderia trazer uma base mais sólida, mas isso implicaria em aumento de gasto, flexibilização do teto de gastos. Hoje, o mercado vê menos chance de isso acontecer. Ainda mais se a curva da pandemia se mantiver estável, mesmo que num patamar elevado, e começar a ceder em agosto.

Então, o risco fiscal é o grande ponto para a recuperação da economia?
Sim. A dívida pública tinha finalmente mostrado uma pequena queda no fim do passado e parecia que os 80% do PIB já eram um teto. Estávamos enganados. Há previsões de que passe dos 100%, mas estamos mais otimistas. A dívida bruta não deve ultrapassar os 95%.

Mais quedas na Selic podem fazer o papel de estimular a economia?
A inflação está muito tranquila e deve permitir que a Selic possa atingir 1% no início do ano que vem. O que nos preocupa é a característica do distanciamento social afetar mais o setor de serviços do que a produção de bens e os supermercados. Se analisarmos a crise de 2016, ela começou com uma queda da indústria automotiva em 2015 e, depois, foi pegando, de forma mais lenta, o setor de serviços e o emprego. Nos EUA acontece a mesma coisa. Então, a primeira preocupação é de uma crise contundente no setor de serviços, com perda de empregos mais qualificados. A segunda preocupação é o aumento de poupança.

Por quê?
Mesmo que quisessem, as pessoas não podem consumir como antes. O restaurante está fechado. Ou então há o medo de sair de casa, viajar ou ir ao médico. Com isso, o nível de poupança está aumentando.

O governo apresenta alguns dados de que não houve perda de renda. Isso não compensaria o problema?
É verdade que, com o programa de renda emergencial, a adição de renda foi praticamente equivalente à perda, segundo pesquisas do IBGE. Mas não é a mesma coisa. Primeiramente, porque o auxílio focou em pessoas de baixa renda e trabalhadores informais. Há regiões onde o nível de renda ficou muito maior, em média, do que antes da crise. Para pessoas de até certo nível de salários mínimos, houve até aumento médio de 200% da renda, o que significa que essas pessoas estão acumulando gordura para os próximos meses. Mas, no Sul e Sudeste, acontece o efeito contrário. Muitas pessoas, como profissionais liberais, não tiveram trabalho nenhum por meses. Numa economia de renda média mais alta, esses programas não terão quase nenhum tipo de impacto.

E essas pessoas seriam mais capazes de puxar o consumo, não?
Não é uma crítica ao programa. Ele foi feito de forma rápida. Mas não se deve confundir o lado social do programa com o impacto econômico que pode causar.

O Brasil depende muito do consumo, já que é difícil imaginar a volta rápida dos investimentos produtivos?
Se temos 20% de desemprego e 80% de empregados, o futuro da economia depende desses últimos. Se eles poupam mais e assumem uma postura defensiva, retardam a recuperação da economia. As suas decisões de consumo vão definir a empregabilidade dos outros. É uma discussão muito parecida com a dos estímulos aos mercados. Eles pretendem mover o consumidor e o empresário para uma posição mais otimista, mas acontece que o Brasil não tem condição de fazer um programa de ajuda de renda ainda maior. Isso é o legado do nosso desajuste fiscal. Até que reagimos bastante. Mas agora entraríamos numa linha contraproducente. Se fizermos mais estímulos, entramos em espiral de desconfiança.

“Não se deve confundir o lado social do programa de auxílio emergencial com o impacto econômico que pode causar” (Crédito:José Itamar)

O programa de compras de títulos privados, por meio do BC, vai ser usado no Brasil?
No pior momento da crise, emprestamos experiências de países desenvolvidos. Assim como foi nos EUA, também no Brasil era proibido a compra de títulos privados. Roberto Campos Neto [presidente do BC], diz que, como o mercado de capitais cresceu muito nos últimos anos, substituindo o crédito bancário, vai acabar retardando o crescimento, se ele sofrer muito. Para o sistema bancário, temos todos os instrumentos para agir. Demos liquidez, reduzimos requisitos de capital e conseguimos atacar o problema. Acontece que o mercado de capitais é outro segmento. O BC tem até de 31 de dezembro para comprar títulos privados. Depois, o mandato expira. O entendimento do órgão é que pode utilizar esse mecanismo com objetivo de política monetária. Se o juro já estiver no ponto mais baixo, ele entra em ação. Do jeito que a coisa está indo, a tendência é não precisar fazer compras. Muitas vezes o mais importante é a sinalização. Já basta para o mercado saber que o BC está do seu lado.

O câmbio alto preocupa?
Hoje, a alta do dólar parece mais solução do que problema. O próprio BC identificou que o endividamento externo privado conta, em grande medida, com proteção cambial. Hoje, as empresas que exportam possuem, em média, tantos ativos no exterior quanto passivos aqui. Na crise de 2008, houve muita companhia com problemas, casos da Sadia e da Aracruz, e isso preocupou muito. Desta vez o BC não vê esse problema e a inflação está baixíssima. Pode ser que o câmbio até ajude a inflação a ser um pouco mais alta. Se não fosse pelo câmbio, a inflação seria ainda mais baixa do que o 1,7% que prevemos para este ano. Não parece um grande problema o dólar subir até R$ 6. Nos sentimos um pouco mais pobres com isso. Mas, para o Brasil, o câmbio mais alto vai ajudar na recuperação e é conse-quência do juro baixo. Para a classe alta e média, era uma maravilha o juro a 15% e o dólar a R$ 3. Mas paciência: para a economia, é melhor o patamar atual.