Falta de semicondutores, de peças e de contêineres, além da alta cotação do dólar, são alguns dos problemas enfrentados pela indústria automotiva.

A indústria automotiva nacional deve deixar de produzir ao menos 300 mil unidades em 2021. Na cadeia global, esse número pode chegar a 12 milhões se levados em conta os impactos da crise de semicondutores. Um cenário nada animador e que deve se estender até 2023, segundo Luiz Carlos Moraes, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Auto-motores (Anfavea).

Diante do quadro, a entidade revisou as projeções para a atual temporada, com redução de no mínimo 10% na fabricação de automóveis no País — de 2,46 milhões para algo entre 2,13 milhões e 2,22 milhões. “Nosso volume caiu tanto para o mercado interno como para o externo.” A situação pode se agravar ao longo de 2022, mas por outro motivo: a escassez de magnésio, utilizado na produção de ligas de alumínio empregadas na produção dos modelos.

DINHEIRO — A produção de veículos no País teve o pior outubro dos últimos cinco anos (117,9 mil unidades). O mais complicado já passou ou fica difícil imaginar o que vem por aí?
LUIZ CARLOS MORAES – A desorganização da cadeia global de produção, que impactou não só o nosso setor, tem afetado bastante a indústria de transformação. Enfrentamos escassez de componentes e problemas logísticos (falta de contêineres e alta do custo de transporte), por exemplo. Isso tem gerado transtorno na programação da produção. Revisamos a nossa projeção para este ano. Estamos trabalhando com crescimento entre 6% e 10% em relação a 2020, que foi de
2 milhões de unidades no total.

A falta de magnésio já é admitida no setor. O cenário para as montadoras pode piorar em 2022?
Ainda é muito cedo para opinar se vai afetar e o quanto. A questão dos semicondutores já está criando uma dificuldade bastante grande. A perda de produção na indústria global vai ser de 10 milhões a 12 milhões de veículos, por causa da falta de semicondutores em todas as regiões do mundo. A situação só deve se estabilizar em 2023.

Teremos eleições no ano que vem, e decisões políticas acabam por impactar na economia.
A agenda eleitoral é normal em qualquer país, mas não pode estar acima da agenda econômica, da agenda das reformas. Então deveria rodar a vida normal. As reformas sociais deverão ser implementadas mesmo que estejamos em ano de eleição.

O mercado tem sentido esses reflexos?
Já estamos enfrentando uma volatilidade devido às sequelas econômicas trazidas pela pandemia. A inflação aumentou e não só no Brasil. Um instrumento importante para o financiamento de veículos é o CDC. Então, isso aumenta o custo dos juros. No Brasil temos mais volatilidade do que deveríamos, por causa desse problema político. Isso afeta o ambiente de negócios, afeta a decisão de investimentos, afeta a postura do consumidor. Não deveria acontecer.

E as consequências…
Recentemente, por causa dessa discussão dos precatórios, da PEC, o mercado reagiu. Entendeu que a gente pode estar perdendo o controle fiscal. Isso cria uma perspectiva para 2022 não muito favorável, o que não interessa para economia, o que não interessa para emprego, o que não interessa para retomada pós-pandemia. Isso nos preocupa.

Essas dificuldades impactaram diretamente nos preços dos carros?
O impacto no preço é uma combinação de fatores. Primeiro, o regulatório. Os carros, por determinação, têm mais itens de segurança, metas de eficiência energética e de redução de emissões. Isso aumenta a tecnologia embarcada no veículo, além da conectividade. Outro aspecto que provoca aumento do custo são as sequelas na economia por causa da pandemia. O aço subiu mais de 100%. As resinas plásticas e a borracha também tiveram alta. Antes da crise de saúde, o dólar estava em torno de R$ 4. Hoje, R$ 5,50. Isso obviamente tem impacto no custo. E o aumento do preço nas montadoras nos últimos 12 meses foi de 11,5%. Nada exagerado. Obviamente depende do modelo. Pode ser mais ou menos.

“Num mercado normal para cada novo vendido você comercializa de dois a quatro usados. Essa proporção está em seis, sete para cada novo” (Crédito:Mateus Bruxel)

A perda do poder de compra da população com o aumento da inflação complica?
Precisamos ter mais gente empregada no Brasil com mais renda para consumir, e não só automóveis. No último número que vi a população ocupada é de 90 milhões de brasileiros. Isso abrange todo tipo de ocupação: carteira, empreendedor, empregador. Não é um problema do carro. É um problema de renda.

O segmento de seminovos e usados ganhou espaço diante da crise da indústria automotiva. A valorização de alguns modelos chegou a 17% (em um mercado normal, a desvalorização de um carro varia entre 15% e 20% do seu valor após um ano). A previsão é que o mercado continue aquecido?
Num mercado normal para cada carro novo comercializado você tem de duas a quatro vendas de veículos usados. Essa é a proporção. Como o negócio de veículos novos está retraído em razão da indisponibilidade de produtos, o mercado está batendo a relação em seis, sete para cada carro novo. Isso é uma distorção. Esse movimento está acontecendo no Brasil e no mundo inteiro.

O fortalecimento desse segmento levanta novamente a questão da necessidade de renovação da frota brasileira?
Com mais veículos seminovos e usados rodando, precisamos atacar a descarbonização no Brasil. E isso envolve uma combinação de políticas. Combinar maior eletrificação, no caso de carros híbridos, híbrido flex, plug-in e elétricos. Precisamos deixar numa velocidade mais próxima à da Europa.

E o que mais pode ser feito?
Ampliar a utilização de biocombustíveis, como o etanol em veículos leves, biodiesel, HVO (óleo vegetal hidrotratado), que é o diesel verde, uma nova tecnologia para os pesados, combinando também a redução da idade média da frota, por meio da inspeção técnica veicular e renovação. A Anfavea defende uma política pública nessa direção que significará também investimentos relevantes em infraestrutura.

De quanto seria esse investimento?
O nosso estudo aponta para investimentos de R$ 14 bilhões no intuito de que se tenha pelo menos 155 mil postos de recarga. O investimento na indústria de biocombustível será importante também para ajudar na descarbonização, além de um programa de inspeção técnica veicular que deve ser feito de forma planejada, em etapas. No Brasil quem mais emite gases de efeito estufa é o desmatamento. O setor de transporte é o responsável por 13%, dos quais 91% vêm do rodoviário. Nossa proposta foi a implementação de uma política pública para atacar o transporte. Não é só o veículo novo que vai resolver o problema. Precisamos tratar a frota velha.

As montadoras que importam veículos para o Brasil (Volvo, por exemplo) têm apostado nos híbridos e elétricos. Já a Volkswagen, que produz no País, tem investido em biocombustíveis. Há um choque em relação à opção de qual caminho deve ser seguido?
Não se trata de choque, mas de complementariedade. A própria Volkswagen está importando veículos elétricos. A célula de combustível é uma tecnologia estudada aqui no Brasil, inclusive célula de combustível com etanol. Todas estão na mesa. A indústria de biocombustíveis é um ativo do Brasil e de forma planejada e estruturada pode ajudar no processo de descarbonização. É uma transição. Então, vejo como um complemento.

E em relação aos pesados?
Ainda não há uma solução tecnológica para os pesados cumprirem longas distâncias. Não vai ser possível eletrificar um caminhão, porque a quantidade necessária de baterias é grande. Perde-se capacidade de carga. Uma solução para longas distâncias ainda é um desafio. Não só no Brasil. O biocombustível vai ajudar a fazer a transição.

“Ainda não há uma solução tecnológica para os pesados cumprirem longas distâncias. Não vai ser possível eletrificar um caminhão” (Crédito:Istock)

Na Europa e na Ásia os governos têm dado incentivos para o desenvolvimento do mercado de eletrificados. No Brasil, não. É o setor privado que precisa colocar a mão no bolso e investir?
Acho que todos juntos, setores privado e público, temos condições de construir uma política para o País para os próximos dez a 15 anos levando em consideração as características dele, indo na direção da eletrificação, que será o resultado final. Vale ressaltar que a nossa energia elétrica é mais limpa que a utilizada na Europa. Energias hidrelétrica, eólica e solar têm um potencial enorme, a exemplo do potencial para descarbonização com os biocombustíveis.

Na Europa já há prazo (2035) para o fim da produção de carros a combustão. Levaremos mais tempo no Brasil ou já estamos a caminho?
Nosso estudo mostra um cenário que chamamos de convergência global. Em 2035, mais de 60% dos veículos novos no Brasil já terão algum grau de eletrificação. Poderá ser um híbrido, um plug-in, um elétrico. Um número relevante. São mais de 2,5 milhões de unidades já tendo essas novas tecnologias. Agora, o biocombustível vai ajudar a frota existente, que já roda por aqui.

A indústria automotiva tem passado por transformações. Uma das mais recentes é a aposta em serviços como aluguel e assinatura de carros, que têm ajudado as montadoras a ampliarem a receita. É um caminho sem volta?
Essa tendência já existia antes da pandemia. O consumidor está mudando também. Não necessariamente precisa ser dono do carro, mas quer usá-lo. As ferramentas de aluguel de carro, ou de assinatura, vieram para ficar. E a indústria está atenta, porque significa que precisa oferecer mais serviços para esse cliente que está demandando outro tipo de mobilidade individual, um outro formato.

Qual cenário você desenha para o futuro do setor?
Pegando o gancho da descarbonização, a primeira consequência que vejo é que não dá para importar 2,5 milhões de veículos. Passaremos por uma grande transformação na nossa indústria para fazer pesquisa e desenvolvimento para esses veículos. Adaptar a linha de produto, desenvolver fornecedores, preparar a rede de concessionários para atender a essas novas tecnologias.

E quais serão as vantagens?
Oportunidades para a indústria de baterias do Brasil, para a indústria de semicondutores. A indústria de biocombustíveis também precisará de investimentos relevantes para aumentar a utilização dos produtos. Vejo um novo boom de investimentos com a transformação tecnológica junto. Traz também oportunidade para ser uma plataforma de exportação dessas tecnologias para outros países da América Latina ou outras regiões do mundo.