Desde a Peste Negra até a Covid-19 não foram poucas as tragédias na saúde pública que castigaram o Brasil. Certamente o coronavírus não será a última delas. A diferença do que ocorreu nas outras crises, incluindo a Gripe Espanhola no início do século 20 e explosão da Aids na década de 1980, está na completa falta de consenso por parte do poder público em todas as esferas de poder. Como consequência, sobra desinformação e é baixíssimo o envolvimento da sociedade civil. Com governadores, prefeitos e o presidente da República protagonizando uma versão tupiniquim da Torre de Babel, atravessar esse período tão desafiador se tornou ainda mais difícil. Sem uma estratégia coordenada sobre como tornar eficaz o isolamento social, quais as possíveis formas de tratamento para a doença e, sobretudo, de que maneira será possível reativar a economia, a população segue atônita enquanto políticos caminham com agendas pessoais e de cunho ideológico para tratar um mal que não escolhe lado político.

MESMA TECLA Fixação de Bolsonaro sobre uso da cloroquina e fim do isolamento social virou contrapartida para liberação dos recursos aos estados. (Crédito:Pedro Ladeira)

No terça-feira 19 o Brasil registrou 1.179 mortes por Covid-19 em 24 horas. A cifra é maior registrada para um único dia em todos os países que foram, em algum momento, epicentro da crise. O recorde se deu quando sequer ministro da Saúde havia em Brasília. Com a saída de Nelson Teich, que ficou menos de um mês à frente da pasta, o presidente Jair Bolsonaro nomeou o general Eduardo Pazzuelo como ministro interino. O número de mortes poderia bem menor caso não houvesse tamanho desprezo pela ciência por parte do presidente, que usa parte de seu tempo defendendo métodos não comprovados para o tratamento da doença — outra parte do tempo é reservada para pressionar os governadores a encerrar o isolamento social. É evidente que o executivo federal não é capaz de dar uma resposta adequada à pandemia que já custou cerca de 20 mil vidas no País e está devastando a economia. Segundo o Comitê de Secretários de Fazenda dos Estados (Comsefaz), a queda na arrecadação de estados e municípios pode chegar a 50% no acumulado de 2020, ou cerca de R$ 44 bilhões a menos à disposição dos governadores e prefeitos.

CONTRAPARTIDAS Com o poder de assinar o cheque que salvaria os estados, o ministro da Economia, Paulo Guedes, pediu a Bolsonaro contrapartidas para a sanção do Projeto de Lei Complementar (PLP) 39/2020, que trata do socorro aos estados e municípios. Entre os pedidos está a obrigação dos governadores e prefeitos de não reajustar salários por 18 meses. Apesar de não ser consenso entre os chefes dos Executivos estaduais, esse não é o principal problema. A sinalização dos governadores é que há forte pressão do Palácio do Planalto para que seja abrandado o isolamento e incluído no protocolo de combate à doença a cloroquina, remédio sem comprovação de eficácia e que mesmo assim se tornou uma obsessão de Bolsonaro — a ponto sua produção ser acelerada em três laboratórios das Forças Armadas. A estimativa do ministério da Defesa é que os laboratórios militares possam produzir mais de 500 mil comprimidos por semana, o que poderia ser diretamente escoado para os estados, caso eles aceitem usar o procedimento.

“Tenho conversado com todos os Poderes. a solução tem que ser conjunta” Romeu Zema Governador de Minas Gerais (Novo).

Para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), não há espaço nenhum para Bolsonaro impor contrapartidas na liberação dos recursos de socorro aos estados. “É lamentável que o presidente da República queira fazer uma negociação diante de uma medida que já foi aprovada pelo Congresso Nacional e que deve ser colocada em prática”, afirmou. “Negociar com aquilo que representa um direito dos estados é algo absolutamente inaceitável. Não há o que negociar”. Para Doria, qualquer medida que envolva negociação política ou ideológica está fora de questão. “São Paulo não negocia nada. Estamos preocupados em salvar vidas. Não há espaço para negociação política de qualquer natureza. Só haverá entendimento se houver consenso em salvar vidas”, afirmou. O governador paulista participo na segunda-feira 18 da primeira live realizada pela revista ISTOÉ.

Do outro lado do espectro político, mas com opinião similar à de Doria, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), afirma que a pressão exercida por Bolsonaro para flexibilizar o isolamento é real. “É como se houvesse a possibilidade retomar a economia sem vencer o coronavírus”, afirmou à DINHEIRO. Para Dino, a parada econômica não deriva do decreto dos governadores, mas da doença em si. “Temos apenas uma forma séria de retomar a atividade [econômica], que é vencer a pandemia”.

DECISÃO TOMADA O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mantém plano de isolamento e diz não negociar essa questão. “Estamos preocupados em salvar vidas” (Crédito:Rogério Galasse)

ABERTURA GRADUAL Com a capital São Luís entre as recordistas de contágio no País, o governador impôs fortes restrições à mobilidade em seu estado, mas já sinaliza com um cronograma de retono à normalidade. “Paradoxalmente, quem quer retomar a economia o mais rápido possível são os que têm coragem de sustentar as medidas preventivas”. Na avaliação do governador, ainda que houvesse autorização pública para o fim do isolamento, isso pouco ou nada traria em termos de resultado econômico. “Alguém acha que as cadeias produtivas vão se estabelecer num contexto de grave pandemia? Alguém acha que haverá investimento privado com pessoas morrendo?”, questiona.

Ainda que a discussão sobre a retomada da economia esteja no plano das ideias, os efeitos da queda de arrecadação dos estados já é certo. Em Minas Gerais, o governador Romeu Zema (Novo) afirmou que não há recursos para pagar integralmente os salários do Executivo e fazer os repasses aos outros Poderes: “A lei me manda fazer as duas coisas. Agora, se essa lei resolvesse meu problema de caixa, eu ficaria imensamente satisfeito”. De acordo com Zema, todos os contingenciamentos possíveis já foram feitos, mas o alívio financeiro só se daria com medidas estruturantes e de médio e longo prazo. “Tenho conversado com todos os Poderes, a solução tem que ser conjunta”, disse, sem citar diretamente o presidente Bolsonaro.

ABERTO AO DIÁLOGO O governador do Piauí, Wellington Dias (PT) defende que haja espaço
no governo federal para discutir soluções harmônicas e que envolvam também os empresários. (Crédito:Keiny Andrade)

Na quarta-feira 20, por meio de uma videoconferência, os 27 governadores do Brasil tentaram afinar os discursos e montar uma pauta de demandas a ser levadas ao presidente da República. Além de cobrar a liberação dos recursos para o socorro dos estados, os governadores também prometem encaminhar a Bolsonaro sugestões para facilitar o acesso ao crédito em bancos públicos e privados. Para o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), a discussão do combate à pandemia e retomada da economia precisa deixar de ter exclusivamente cunho político para que haja efetivamente integração. “A primeira posição é de diálogo e integração entre governadores, presidente da República, prefeitos e o setor privado nas medidas para a área da saúde. Isso, acima das divergências”, afirmou.

RETÓRICA É incerto o tamanho e a profundidade das contrapartidas que Bolsonaro pode impor no meio do caminho para liberação dos recursos. Para o governador do Maranhão, a politização do uso da cloroquina é o tipo de retórica que o presidente não deveria assumir, muito menos obrigar que outros gestores o façam. “Estamos atrasados na recuperação econômica porque ele [Bolsonaro] está há dois meses com uma agenda errada. Tentando fazer aquilo que ele não pode fazer, que é receitar remédio”. De acordo com Dino, o uso do medicamento foi transformado em guerra política. “Bolsonaro não aceita nenhum tipo de controle contra suas vocações despóticas e enxerga nos governadores uma resistência a esses apetites autoritários que ele tem”.

“Temos apenas uma forma séria de retomar a atividade [econômica], que é vencer a pandemia” Flávio Dino Governador do Maranhão (PCdoB). (Crédito:Kleyton Amorim)
Sem aprender nada com as pandemias passadas e experimentando na prática, as políticas públicas brasileiras seguem se apoiando excessivamente na arena política, sem considerar os efeitos que ela acarreta sobre a população.

O papel dos prefeitos na crise

MAIS VERBA Cidades elevaram em até 84% os gastos com saúde e aguardam socorro para honrar compromissos.

Em ano eleitoral, a pressão sobre os prefeitos que vão tentar a reeleição é grande. Pensando nisso, o presidente Jair Bolsonaro reforça o discurso para que eles afrouxem o isolamento social em troca de recursos federais. Na terça-feira 19 a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) fez um apelo ao presidente para que vete o artigo que poupa algumas categorias do congelamento de salários até 2021. Segundo o texto enviado pelo Senado, além dos profissionais da saúde que atuam no combate à pandemia, professores e agentes de segurança pública também ficariam blindados do congelamento.

Segundo o presidente da frente, Jonas Donizette, as prefeituras têm se esforçado para garantir a folha de pagamento atual. “No contexto de desemprego e do grande número de trabalhadores informais em nosso País, é desconexo tratar de reajuste de salário neste momento. Assim, solicitamos veto ao texto que versa sobre esse assunto no projeto”, diz. Segundo ele, mesmo antes da pandemia, os municípios brasileiros já elevaram para 54,4% os recursos próprios na saúde.

A postura da FNP foi endossada pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) que dias antes havia enviado ao ministro Paulo Guedes uma carta afirmando ser inoportuno qualquer aumento de salários e concessão de bônus ou gratificações a agentes públicos “neste momento em que as perdas de receita são imensuráveis e as perdas de renda das famílias brasileiras e das empresas”.