Para o especialista em política internacional, o Brasil não terá uma relação bilateral produtiva com os EUA de Joe Biden sem uma mudança brusca na retórica brasileira — o que parece improvável devido às pretensões eleitorais de Bolsonaro.

O mundo tem passado por transformações profundas nas últimas décadas, quase todas fundamentadas nas relações sociais e de poder. O avanço de líderes populistas e descomprometidos com a democracia ficou evidente na figura de Donald Trump e é o objeto de pesquisa do acadêmico alemão Oliver Stuenkel, coordenador do programa de pós-graduação da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV). Para ele, a escalada do autoritarismo poderá ser contida com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, mas há poucas chances de que o Brasil consiga mudar sua imagem negativa nos próximos dois anos.

DINHEIRO – Qual a sua análise sobre o que está acontecendo nos EUA, depois da derrota de Donald Trump?
OLIVER STUENKEL – Um ano atrás, a previsão era de que Trump ganharia o pleito, mas, principalmene pela má gestão da pandemia, essa reeleição não acabou acontecendo e hoje o Partido Republicano está dividido entre uma ala tradicional conservadora e uma ala pró-Trump, populista, com tendências autoritárias que definem como a oposição vai se comportar. Mas Joe Biden, em função da maioria do Senado depois do segundo turno na Geórgia, tem um mandato para mudanças. Apesar de ser uma maioria pequena, a gente pode aguardar mudanças profundas tanto no âmbito interno quanto no externo. Sempre lembrando que a polarização que estamos vendo no país permanece, e o trumpismo deve se manter forte também.

Onde foi que os EUA erraram para que a situação chagasse a esse ponto de quase guerra civil?
Há uma série de fatores. Entre os internos, estão a desigualdade crescente e a percepção de uma parte muito significativa da população de que a classe política não os atende mais e de que não é capaz de resolver os grandes problemas. Também o fato de a recuperação econômica da crise de 2008 ter sido incompleta e, por isso, ter gerado uma sensação de impunidade da elite financeira, somado aos dados de que os Estados Unidos são o único país desenvolvido que teve ao longo dos últimos anos uma queda na expectativa de vida. Ou seja, uma série de desafios profundos. Essa percepção de que o sistema é ineficaz deu abertura a uma figura antissistema que, também por meio de uma falta de regulação do uso das mídias sociais, conseguiu aprofundar muito a polarização dos Estados Unidos ao longo dos últimos quatro anos.

E quais foram os fatores externos?
Isso data o fim da Guerra Fria, quando havia um projeto nacional de derrotar o grande comunismo. Depois disso, o clima político nos EUA e o tom na política externa pioraram muito. Todas as eleições desde o fim da Guerra Fria demonstraram uma profunda divisão no país. O último presidente a ter 400 votos no colégio eleitoral foi George Bush, em 1988. Desde então, temos sinais de uma polarização que dificulta o processo político. Trump se aproveitou disso ao adotar uma abordagem inédita: chamar a imprensa de inimiga do povo, falar de traidores. E essa estratégia só funcionou porque o sistema já estava bastante fragilizado.

“Ascensão de alguém que rejeita alguns dos pilares do sistema democrático e que não aceita a legitimidade da oposição só ocorre em um sistema em crise” (Crédito:Divulgação)

De que forma o que aconteceu nos EUA durante esse período pode ser comparado à eleição de Jair Bolsonaro no Brasil?
A ascensão de alguém que rejeita alguns pilares do sistema democrático e que não aceita a legitimidade da oposição coloca o sistema em crise. Todos esses atores políticos com tendências populistas ou autoritárias surgem em sistemas democráticos muito fragilizados. O Hugo Chávez não teria surgido se a democracia venezuelana não estivesse fragilizada, e o mesmo se aplica ao Brasil e aos EUA.

Esse ambiente de tensão é negativo ou positivo para o início do governo Biden?
A princípio, o presidente Biden, diferentemente de seus antecessores, deverá dedicar muito mais tempo e energia à política interna. O principal projeto, além, obviamente, de combater a pandemia e lidar com a crise econômica, é pacificar a política interna. O risco de crise permanece elevado e pode haver violência durante a posse e também depois. Esse tipo de polarização elevadíssima e a instabilidade política atrapalham um presidente, dificultam aprovação de novos projetos. Agora, o sistema político americano vai passar uma ou duas semanas lidando com as consequências da invasão ao Capitólio. Sem essa invasão, o país estaria discutindo maneiras de superar a pandemia.

Então o foco de Biden será olhar mais para dentro do país?
Não. Isso não quer dizer que ele deixará a política externa de lado. Os EUA são uma potência global e têm laços que fazem com que o tema seja discutido diariamente. Mas a política externa se constrói a partir da política interna. Um país dividido, com muitas crises internas, terá menos capacidade de influenciar o mundo. O mesmo se viu aqui no Brasil a partir de 1995. Após superar a hiperinflação, o País passou a ter uma política externa muito ativa. E isso acabou em 2013, após as manifestações. Aí começou uma fase de instabilidade. Com isso, o Brasil se retirou do palco internacional porque seus mandatários tiveram de dedicar grande parte de seu tempo e energia aos desafios internos.

Quais são os efeitos da derrota de Trump nos planos de Bolsonaro, tanto na política interna quanto no campo internacional?
Bolsonaro decidiu, logo depois de sua eleição, transformar a política externa em uma plataforma para mobilizar seus seguidores mais radicais. Essa foi uma estratégia consciente para se comunicar com esse grupo porque ele foi eleito na expectativa de rupturas e de uma política antissistema. Só que Bolsonaro sabia desde o início que, em algum momento, ele teria que abandonar o discurso anticorrupção, antissistema, e anti “velha política”. Como na política externa ele tem mais espaço e menos limitações, ela se tornou um palco e tanto.

Para o Brasil, esse estilo de gestão vai causar grandes problemas, não?
A política externa de Bolsonaro já causou um estrago gigante. O País passou por crises bilaterais inéditas com a China, com a Alemanha, com a Argentina, com a França. Agora, com a eleição de Biden, Bolsonaro perdeu seu aliado mais relevante.

Não se pode esperar uma reviravolta na relação?
A expectativa, tanto de especialistas brasileiros quanto de analistas americanos em Washington, é de que não será viável manter uma relação bilateral produtiva a não ser que haja uma mudança brusca na retórica brasileira, o que me parece improvável. Bolsonaro teria de trocar seu chanceler, Ernesto Araújo. O fato é que a vitória de Biden não ajudará em nada o governo Bolsonaro.

Qual o custo dessas ações para economia?
A política externa tem causado um grande estrago econômico, mas ela é fundamental para estratégia de Bolsonaro. Uma guinada para moderar o discurso externo carrega esse custo de perder esse grupo. Quem observar os grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro, perceberá que a política externa é muito importante. Lá, todos defendem que as eleições dos Estados Unidos foram fraudadas, que os chineses inventaram o coronavírus, que os europeus querem ocupar a Amazônia. Com base nisso, o ministro Ernesto Araújo tem um papel na estratégia de reeleição de Bolsonaro, que terá as provocações contra Biden como um elemento para manter a temperatura elevada.

E o prejuízo político?
O custo será alto. O Brasil, por sua falta de poderio militar, utilizou a diplomacia como uma maneira de defender seus interesses nacionais nas últimas décadas. O País teve uma forte atuação na ONU para defender seus interesses, sabendo que isso seria impossível por sua capacidade militar. Diferentemente dos Estados Unidos de Trump, o Brasil é fraco e vulnerável militarmente. Hoje, perdeu influência nesses órgãos. Em grande parte porque ataca esses fóruns. O Brasil deixou de ser confiável.

“A grande questão é até que ponto Biden é capaz de consertar vários dos estragos causados à democracia americana nos últimos anos” (Crédito:Morry Gash/AFP)

No curto prazo, qual deverá ser a reação do mundo contra o Brasil?
A retórica radical no âmbito externo facilita a vida daqueles no exterior que querem achar razões para não ratificar o acordo comercial com o Brasil e torna o País menos atraente aos investidores porque aumentam o risco de boicotes contra produtos brasileiros em mercados externos. Todos esses riscos vão aumentar ainda mais porque Bolsonaro tem uma péssima reputação entre democratas que, certamente, não vão apoiar nenhum tipo de facilitação de comércio, de investimento ou de qualquer medida de aprofundamento entre os dois países. Mesmo assim, eu acho que o maior custo vem depois. O Brasil terá de pagar um custo alto por muitos anos pois é cada vez mais visto como fonte de problemas e, na hora de achar soluções para grandes desafios globais (como uma vacina ou mudanças climáticas), o Brasil não está na mesa. Mesmo pós-Bolsonaro, daqui dez anos, o Brasil terá de lidar com as sequelas.

Como estão as grandes democracias mundiais?
É difícil mensurar a qualidade das democracias. Há fortes sinais de que há risco de erosão da democracia em muitos países, mesmo que em muitos casos os governantes busquem preservar algum verniz democrático. É o que vemos na Turquia, nas Filipinas, na Venezuela, na Hungria, no Brasil, mesmo nos Estados Unidos. O que veremos neste ano são movimentos a favor da democracia. Algumas potências emergentes, sobretudo a China, são autoritárias e isso pode ter um impacto negativo para o futuro da democracia. A questão é até que ponto Biden é capaz de consertar os estragos causados à democracia americana nos últimos anos e de que maneira sua vitória pode inspirar outros candidatos que estão buscando vencer adversários populistas e autoritários ao redor do mundo.