Faltavam poucas horas para as celebrações da virada do ano quando os moradores de Americana, no interior de São Paulo, decidiram mostrar aos gestores municipais que a interrupção da coleta de lixo alcançara uma situação limite, tornando-se insuportável. No último dia de 2014, um grupo de descontentes levou os sacos de resíduos de suas casas para a porta da prefeitura. Interromperam a entrada central do prédio. Tomando as escadas do Paço Municipal, a pilha de rejeitos igualava uma cena de degradação que podia ser vista pelas ruas durante as três semanas em que os servidores cruzaram os braços para protestar contra salários atrasados.

Era o prenúncio da crise aguda que se prolongaria nos meses seguintes no caixa da administração da cidade. A queda na arrecadação afeta todas as instâncias da administração pública. Mas é nas rotinas municipais que os efeitos da recessão de quase 8% deste triênio são mais perceptíveis à população. Buracos atrapalham o trânsito e danificam veículos, faltam médicos nos postos de saúde e a merenda escolar piora. Pelos quatro cantos do País, prefeituras correm contra o relógio para minimizar o cenário de caos e evitar pesadelos como os de Americana.

Na maior parte das cidades, o investimento já sumiu. A batalha atual é para conseguir fechar as contas sem deixar nada para trás. É cada vez maior o número de administrações com problemas para honrar a folha de salarial. O pagamento aos fornecedores básicos acumula oito meses de atraso, na média, segundo cálculos da Confederação Nacional dos Municípios (CMN). Em algumas repartições públicas, diminui-se o horário de atendimento ao público para cortar despesas.

“Os municípios estão no caos, quebrados”, afirma o presidente da CMN, Paulo Ziulkoski. “Não tem dinheiro para trocar a luz que quebrou na rua, o transporte escolar está piorando e a qualidade da merenda escolar está em risco.” O problema conjuntural se soma a dívidas passadas e acaba criando uma bola de neve. No primeiro trimestre, 1.400 municípios tiveram parte dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) bloqueados para quitar saldos em aberto com a Previdência.

O FPM engloba a parcela da arrecadação federal de Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) que é repassada às prefeituras. Para cerca de 80% dos municípios, é a principal fonte de renda. Um dispositivo constitucional prevê, porém, um desconto compulsório no repasse quando a admistração municipal possui algum débito com a Previdência. Apenas em março, 100 cidades não puderam contar nem com R$ 1 do FPM porque os recursos foram todos destinados ao pagamento de dívidas.

De um lado, o estoque dos débitos cresce porque falta capacidade para pagar as parcelas ou novas obrigações. De outro, o repasse de Brasília também é menor e acaba sendo todo tomado. No primeiro trimestre, os recursos do FPM recuaram 13,4% quando considerado o efeito da inflação. “Tem de pagar fornecedores, salários e nem sempre há como pagar a conta da Previdência”, afirma Ziulkoski. A confederação cobra uma negociação com o governo federal para resolver as dívidas previdenciárias dos municípios e evitar que o problema se agrave com a conjuntura atual.

Nos cálculos da entidade, o estoque de dívidas dos cerca de 2.500 municípios que têm funcionários atrelados ao Regime Geral da Previdência chega a R$ 100 bilhões. O problema não respeita partidos, nem regiões. Na lista de março, o maior número de cidades afetadas pelo bloqueio era do Estado de São Paulo, responsável por pouco mais de 30% de todo a riqueza nacional. Embora cidades como Americana, Salto e Guarulhos dependam menos dos recursos do fundo do que municípios de regiões menos industrializadas, o bloqueio revela quão profunda é a crise.

“Nesse momento, qualquer recurso faz diferença”, afirma o secretário da Fazenda de Americana, Valmir Frizzarin. Com uma dívida de mais de R$ 1 bilhão, a cidade tenta se enquadrar nos limites de gastos com pessoal previstos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Desde a entrada do prefeito Omar Najar (PMDB), em 2015, após a cassação de Diego de Nadai (PSDB), cerca de 1.000 servidores foram dispensados. Com o caixa comprometido, salários tiveram de ser parcelados, o que acabou provocando novas greves de servidores. 

Secretarias foram extintas e mais de 30 imóveis alugados foram devolvidos. Ainda assim, a previsão é de que ainda serão necessários mais dois ou três anos para equilibrar a situação. “Se os municípios não fizeram reformas, podem faltar merenda, professores, médicos e coleta de lixo”, afirma Frizzarin. “ O risco de inviabilizar a gestão é muito grande, é um rumo de falência.” Medidas semelhantes às de Americana foram adotadas em Santa Barbara D’Oeste (SP), que teve os recursos do FPM zerados em março.

Além do plano de demissões vountárias e do parcelamento dos salários, o prefeito Dênis Andia (PV) determinou, no final do ano passado, a redução do expediente de oito para seis horas nas repartições. Em São Carlos (SP), que também teve 100% dos repasses do FPM retidos para o pagamento das dívidas, a redução no horário de atendimento durou quatro meses e foi preciso reparcelar gastos com energia elétrica e os custos da coleta de lixo. Em meados do ano passado, o prefeito Paulo Altomani (PSDB) havia alertado para o perigo de um “colapso” na administração municipal. “Ficamos bem próximo do risco de colapso”, afirma José Roberto Poianas, secretário de Fazenda da cidade.

“Os problemas são gerais na economia e São Carlos não é uma ilha. Se continuar assim, o segundo semestre será caótico” Em Guarulhos, outra administração que não gozou dos recursos do fundo, o petista Sebastião Almeida decidiu reduzir salários dos servidores em 10%. Nos últimos anos, os prefeitos têm alertado para um crescimento das despesas necessárias para fazer frente a programas estaduais e federal numa velocidade bem superior aos repasses. Também chamam atenção para o dano provocado pelas desonerações promovidas pelo governo federal nos últimos anos – o impacto é estimado em quase R$ 80 bilhões.

Para as administrações, o pacto federativo está fragilizado e deve haver uma melhor distribuição das receitas. O tema é um dos pleitos a ser levado em uma nova marcha que será feita em Brasília pelos prefeitos em maio. A expectativa é que 5.000 representantes tomem as ruas do entorno do Congresso para cobrar o fim da paralisia do País. Com o andar do impeachment, é impossível saber para qual chefe do Executivo o grupo vai direcionar a lista de pedidos, muito menos se haverá chances de ser atendidos.

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